As fake news não vão ofuscar nosso Oscar
É absolutamente constrangedor que, diante de um feito histórico, tenhamos que desmentir absurdos. Que o cinema e a arte nos ajudem diariamente a reforçar e cuidar da democracia

É quarta-feira de cinzas e não tem quem tome o Oscar que o Brasil ganhou neste carnaval. O filme “Ainda estou aqui”, dirigido por Walter Salles, levou a estatueta de melhor filme internacional no domingo. Assisti ao filme no cinema, uma experiência coletiva que não evitava que o público jorrasse as lágrimas que Eunice segurava na tela grande. Como mensurar a dor e a fortaleza de uma mãe que teve o marido arrancado de casa e da vida pelo Estado e seguiu em frente? Eunice ali, mostrando silêncio, mas também o sorriso como resistência.
Fernanda Torres encarnou essa Eunice com o seu olhar profundo. Não trouxe a estatueta de melhor atriz, mas encantou jornalistas e diretores do mundo inteiro com uma elegância bem-humorada e muita história para contar. Falou da grandeza de sua mãe, do amor pelo teatro, do Carnaval que a acolheu nos blocos. Exaltou a força do cinema independente e lembrou de como a cultura produz memória e liberta. Em cada entrevista, o orgulho de sermos brasileiros e a coragem de enfrentar nosso passado.
Veja também
É absolutamente constrangedor que, diante de um Oscar histórico e do encantamento do mundo e de nós mesmos, tenhamos que dizer que Fernanda Torres não deu declarações antivax na pandemia ou que Rubens Paiva não era criminoso. É absurdo ver Marcelo Rubens Paiva, filho de Rubens e Eunice e autor do livro que deu origem ao filme, ser agredido em bloco de Carnaval.
A gente sabe de onde vem isso. A mentira é uma arma da extrema-direita que insiste em apagar o passado enquanto flerta com ditaduras. É por isso que eles atacam os incentivos à cultura, contorcem fatos e atacam a realidade. Acontece com frequência de cairmos nessa, eu sei. Mas hoje, não.
Não tem fake news que ofusque o nosso primeiro Oscar. Que o cinema e a arte nos ajudem diariamente a reforçar e cuidar da democracia, essa jovem senhora que requer atenção constante. Que o sentimento ufanista venha com pertencimento, com orgulho e alegria.
Nos últimos dias, as buscas por informações sobre o que aconteceu com Rubens Paiva cresceram na internet. Em Brasília, visitantes tiram selfies com o busto do ex-deputado na Câmara dos Deputados. Não são raras as visitas ao túmulo de Eunice Paiva, em São Paulo.
O filme movimenta curiosidade e ajuda a produzir memória. Ao observarmos a dor desta família, reforçamos que está fora de qualquer pacto social aceitar que o Estado arranque um homem de casa e de sua família para assassiná-lo. Que seus agentes passem décadas sem admitir o crime enquanto uma esposa e mãe precisa seguir em frente com dificuldade de fazer o básico.
Ainda estamos aqui. E seguiremos cuidando da democracia brasileira.
* Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora.