O que a política tem feito para reverter o desamparo de mulheres que trabalham como cuidadoras
A economia do cuidado entrou no debate político brasileiro recentemente; mulheres puxam demandas e mudanças
Meses após a sanção da Política Nacional de Cuidados, o Brasil vê dificuldades em implementar e aperfeiçoar as ações nesse sentido. As lacunas que afetam quem cuida e quem é cuidado foram reveladas no estudo “O trabalho de cuidado nas comunidades de Fortaleza: o retrato do São João do Tauape”.
Os dados preliminares sobre a dimensão local do cuidado foram divulgados no dia 30 de junho, em audiência pública na Assembleia Legislativa do Ceará (Alece).
Os entrevistados admitiram carências no que diz respeito a ajuda financeira, aposentadoria e benefícios; companhia no cuidado, como um ajudante; creche ou escola especializada; atendimento psicológico e psiquiátrico; saúde pública, com oferta adequada de postos e médicos; espaços de lazer, convivência e esporte; transporte, ambulância e acessibilidade e terapias diversas.
O trabalho ocorre no âmbito do programa Cientista Chefe, fruto de parceria entre a Secretaria do Trabalho do Estado (SET-CE), a Universidade Federal do Ceará (UFC) e a Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap).
A professora Ana Maria Fontenele, do Departamento de Teoria Econômica da UFC, está na coordenação da equipe, em conjunto com a cientista-chefe do Trabalho (FUNCAP/SET-CE), Jacqueline Franco Cavalcante.
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Entre as várias dificuldades, dos cuidadores ouvidos – 94,88% são mulheres e, destas, 86,46% são negras e 54,13% assumem sozinhas o encargo –, metade confessou viver mais um problema: a impossibilidade de tocar projetos pessoais devido à dedicação integral ao cuidado.
“Isso demonstra um nível de desesperança muito grande. Os áudios que nós captamos são extremamente desesperançosos no futuro, é de cortar o coração. A gente tá vendo uma pesquisa científica, analisando dados reais, mas não tem como não nos sensibilizarmos diante do levantamento desses dados", expressou Carolina Cidrini, pesquisadora do projeto, durante a audiência.
Ao fim dos trabalhos, previsto para fevereiro de 2026, a equipe espera ajudar a formular, no Ceará, políticas concretas de suporte aos públicos prioritários da Política Nacional de Cuidados. Enquanto isso, encaminha medidas emergenciais na comunidade estudada.
Considerando que 88,1% dos entrevistados disseram não possuir renda ou, quando têm, equivale a até um salário mínimo, os pesquisadores buscam viabilizar condições para a adoção do empreendedorismo dentro dos domicílios onde a atividade de cuidado é desempenhada. Esse é um exemplo de ajuda imediata oferecida pelos pesquisadores.
“(Estamos planejando) outros projetos relacionados a apoio ao trabalho de cuidado. Ou seja, extensão de carga horária extracurricular das escolas, espaços para recebimento de idosos, além de uma linha de projetos soltados para a bem-estar da cuidadora. Essas são as nossas abordagens nesse momento”, adiantou a pesquisadora, responsável por supervisionar e coordenar as atividades de campo.
Bancada feminina em ação
Em busca de viabilizar a aplicação das iniciativas estudadas pelo Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) do Cuidado, o Legislativo tem se antecipado no sentido de promover a regulamentação laboral, a concessão de licenças, a formatação do orçamento para a área e o dimensionamento do peso econômico dessa atividade, entre outras medidas.
Um dos frutos do Grupo de Trabalho do Cuidado na Câmara dos Deputados, formado por membros da bancada feminina, foi o projeto de lei 2947/24, que inclui a Política Nacional no rol de programas e projetos beneficiados pelo Fundo Social do pré-sal.
Diversos atores são unânimes ao elencar a disponibilidade orçamentária como o principal desafio para a implementação das ações almejadas.
Em entrevista ao PontoPoder em 2024, a deputada federal Sâmia Bonfim (Psol-SP), relatora do GT na Câmara, afirmou que essa era uma queixa recorrente ao longo das articulações. “Muitos gestores alegam isso. ‘Adoraria dar mais estrutura, condição, mas aqui é tudo muito contado, e às vezes falta (dinheiro)’”, disse.
Caso aprovada, a medida representará uma “fonte segura de recursos para o seu desenvolvimento”, aponta a deputada.
Em junho, a proposta foi aprovada pela Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Câmara dos Deputados. Agora, está na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família (CPASF) cumprindo prazo para recebimento de emendas.
O texto será analisado ainda, em caráter conclusivo, pelas comissões de Finanças e Tributação; e de Constituição e Justiça e de Cidadania. Sem necessidade de passar pelo plenário da Câmara, será encaminhado diretamente para o Senado, onde vai passar por nova rodada de apreciação até sua aprovação e posterior sanção.
Outra iniciativa de destaque foi apresentada pela deputada cearense Luizianne Lins (PT), visando apurar o valor econômico e do impacto da economia do cuidado no desenvolvimento econômico e social do país.
Como o objetivo de dimensionar a economia do cuidado, que trata das atividades realizadas sem remuneração no ambiente doméstico, o projeto recebeu substitutivo de Talíria Petrone (Psol-RJ). O relatório indica a criação de uma conta à parte no sistema de contas nacionais. Os dados ajudarão na definição e implementação de políticas públicas na área.
“É como se você pegasse uma conta, que a gente chama de conta satélite, que não vai ser contada para efeito do cálculo do PIB, mas é fundamental que esteja sendo calculada”, pontuou Luizianne Lins.
Segundo o texto, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) será responsável por fazer esse cálculo – e as deputadas esperam que isso ocorra em breve.
Depois de aprovado no Senado e da sanção do presidente Lula, a ideia é que a gente continue acompanhando a implementação. Então nós temos que discutir, por exemplo, com o IBGE como ele vai fazer essa mensuração, porque não dá para gente esperar o próximo censo. E isso ignifica o quê? Recurso para fazer a pesquisa.
A proposta foi aprovada em 1º de julho pelos deputados federais em plenário e seguiu para o Senado. “Eu sempre digo que lei a gente tem para tudo na vida. Muitas vezes, elas são desconhecidas, às vezes não são cumpridas, etc. Então, a gente tem que fazer valer o que a gente aprova aqui na Câmara”, reforçou Luizianne.
O fato de 88% dos cuidadores entrevistados em Fortaleza não terem acesso à renda ou receberem até um salário mínimo por mês – muitas vezes, como benefícios sociais – contrasta com estudo divulgado pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas, o FGV IBRE, em 2023.
O levantamento revelou que se o encargo do cuidado fosse contabilizado no Brasil, acrescentaria 13% ao PIB nacional.
Também pensando nisso, o assunto virou objeto de discussão do novo Código Civil, que pode trazer compensação pelo trabalho doméstico em caso de divórcio, ou morte do cônjuge ou companheiro. O texto que tramita no Congresso diz o seguinte sobre o capítulo “Do Regime de Separação de Bens”:
Art. 1.688. Ambos os cônjuges ou conviventes são obrigados a contribuir para as despesas do casal na proporção dos rendimentos de seu trabalho e de seus bens, salvo estipulado em contrário no pacto antenupcial, ou em escritura pública de união estável.
§ 1º No regime da separação, admite-se a divisão de bens havidos por ambos os cônjuges ou conviventes com a contribuição econômica direta de ambos, respeitada a sua proporcionalidade.
§ 2º O trabalho realizado na residência da família e os cuidados com a prole, quando houver, darão direito a obter uma compensação que o juiz fixará, na falta de acordo, ao tempo da extinção da entidade familiar.”
O projeto chegou ao Senado em janeiro deste ano, mas não avançou ainda.
Desafio orçamentário
A lei que instituiu a Política Nacional de Cuidados vincula o custeio das suas ações a dotações consignadas aos órgãos e às entidades da administração pública federal participantes do Plano Nacional de Cuidados e a recursos destinados por órgãos e entidades da União, dos estados e dos municípios.
Além disso, as despesas podem ser empenhadas com recursos provenientes de doações, de qualquer natureza, feitas por pessoas físicas ou jurídicas, do País ou do exterior, e verbas nacionais ou internacionais.
A nova lógica, então, busca intensificar a atuação do Poder Público sobre o assunto, dando assistência no ato de prover o cuidado e valorizando cuidadores, sobretudo em famílias com renda reduzida.
“Do ponto de vista de financiamento, a gente tem um modelo, hoje, que é privado, que é muito dependente das condições socioeconômicas das famílias, e a gente quer passar para um modelo público misto. Pensando no diamante dos cuidados, é chamar a responsabilidade do Estado, mas também a responsabilidade da iniciativa privada”, disse Jordana de Jesus, da Secretaria Nacional da Política de Cuidados e Família.
A declaração foi feita durante o seminário “Cuidado em debate”, promovido pelo Ministério do Desenvolvimento Social no fim de junho.
A ideia apontada por Jordana no evento recente já havia sido adiantada à reportagem no ano passado. À época, o PontoPoder publicou um material sobre como a política estava começando a se apropriar da agenda do cuidado, mas não na velocidade necessária para garantir assistência às pessoas que cuidam e que são cuidadas precariamente.
O desafio orçamentário nas três esferas de governo foi posto, ainda, por Luana Pinheiro, diretora de Economia do Cuidado do Ministério do Desenvolvimento Social. A entrevista foi dada ao PontoPoder também no ano passado.
A gente sabe que a margem para financiamento da política não é ampla. Estamos disputando o orçamento com diferentes áreas – todas demandas muito justas, a gente sabe disso. [...] A gente tá trabalhando muito proximamente com os ministérios da Fazenda, do Planejamento, a Casa Civil, para tentar construir as estratégias necessárias para garantir o financiamento dessa política.
Apesar de existir a intenção de trazer expressamente uma previsão de despesa para o cuidado no Orçamento da União, isso fica mais difícil sem um plano unificado. Há a perspectiva, ainda, de monitorar os gastos na área de maneira integrada, medida discutida com o Ministério do Planejamento.
Tudo isso está posto no Guia para Pactuação do Plano Nacional de Cuidados. O documento explica a metodologia adotada pelos ministérios e outros órgãos na formulação do programa. Entre os tópicos discutidos, está o valor global da ação (2024-2027) e o seu espaço no Plano Plurianual do período em questão.
A terceira rodada de entregas no GTI, que estava prevista para o ano passado, traria o detalhamento do financiamento e execução das ações pretendidas, indicando necessidade de criação de ação orçamentária ou até mesmo de suplementação de recursos pela União.
Quanto a isso, a Rede Orçamento Mulher, vinculada à da Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados, elaborou uma série de emendas ao Orçamento de 2025, visando incorporar questões de gênero a essa discussão.
Uma das sugestões se dirigia à atuação das agências financeiras oficiais de fomento (AFOFs), como Banco do Nordeste (BNB) e Caixa Econômica Federal (CEF), na implantação de infraestrutura social do cuidado.
Essa estrutura abrange serviços como creches e cuidados a idosos, essenciais para “permitir que mulheres e outros grupos vulneráveis participem de forma plena no mercado de trabalho”.
Além disso, de modo geral, a ampliação no número de Secretarias Municipais de Políticas para Mulheres é indicada como um caminho para garantir a execução de políticas públicas para cuidadoras. Em 2024, por exemplo, apenas 1.045 das mais de 5 mil cidades brasileiras possem órgãos do tipo.
Ainda há muito a avançar nesse sentido, mas o número divulgado em fevereiro deste ano é quatro vezes maior do que o observado em 2023, de 258 secretarias.
Assistência de cuidado
Para além de políticas para as cuidadoras, é necessário garantir a assistência necessária aos outros públicos da Política Nacional de Cuidados.
Alexandre Alcântara, conselheiro nacional dos Direitos da Pessoa Idosa, órgão vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, e titular 1ª Promotoria da Pessoa Idosa de Fortaleza, vê o cenário para a terceira idade com pessimismo.
Ele acompanha de perto a situação das políticas setoriais no Ceará desde 2013. Já a nível nacional, a atuação é mais antiga, desde 2003. “O Estado brasileiro é muito lento em responder às necessidades da população idosa, principalmente da população idosa com incapacidade”, avalia.
Embora reconheça a importância das políticas para a infância, por exemplo, ele destaca a desproporcionalidade em relação aos idosos no Ceará. Ele fez um destaque especial ao déficit de Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs), de Centros-Dia e de geriatras na rede pública de saúde.
O promotor lembra recomendações de fechamento de ILPIs em situação irregular no Ceará e a interdição judicial da Casa São Gabriel, em Fortaleza, após denúncias de maus tratos a idosos.
A literatura aponta que as políticas públicas para a pessoa idosa costumam ser mais reativas do que proativas. Lembra do fechamento da Casa São Gabriel? É uma verdadeira situação caótica. Ou seja, nós temos a expansão de instituições de longa permanência clandestinas, e quando se fecha uma instituição dessa, é um corre-corre para poder alocar em locais seguros essas pessoas.
Já no campo da primeira infância, o Tribunal de Contas do Estado do Ceará (TCE-CE) tem intensificado o monitoramento das ações múltiplas na fase mais importante do desenvolvimento infantil.
Em dezembro de 2024, o presidente da Corte, Rholden Queiroz, comentou o retrato encontrado em todo o Estado. Se por um lado foi animador saber que aproximadamente 99% dos municípios possuem planos para a primeira infância, por outro, um dado divulgado pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal acendeu um alerta.
O levantamento da entidade mostrou que cerca de 61% das crianças em situação de pobreza — mais de 62 mil meninas e meninos — em todo estado estavam fora das creches. A contradição, argumentou ele, indicou que algo estava errado.
Então foi montada uma equipe multidisciplinar, em parceria com a Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap), para acompanhar a execução dessas políticas públicas.
As atividades se iniciaram em abril de 2024 e, um ano depois, o tribunal encabeçou o lançamento de um Pacto Cearense pela Primeira Infância para sanar os entraves apontados em auditoria operacional.
Entre os problemas encontrados, estão a dificuldade de integrar diferentes áreas da gestão pública para o desenvolvimento das políticas públicas — a necessária intersetorialidade dentro da administração pública — e o investimento de recursos voltados a programas e projetos para a Primeira Infância.
Também ganham atenção na discussão sobre cuidados das pessoas com deficiência. Conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) de 2022, boa parte das 18,6 milhões de PCDs de 2 anos ou mais são analfabetas e não alcançaram o ensino superior nem o mercado de trabalho.
Quanto ao ensino básico obrigatório, as pessoas com deficiência apresentavam taxa de analfabetismo de 19,5% – sendo a mais alta no Nordeste (31,2%). Se considerada a faixa etária de 25 anos ou mais, 63,3% não tinham instrução ou tinham apenas o fundamental incompleto. Já 11,1% tinham o fundamental completo ou médio incompleto.
Com ensino médio completo, apenas 25,6% das pessoas com deficiência. O número diminui ainda mais no que diz respeito ao ensino superior, chegando a 7% de acesso nesse recorte.
Esses e outros problemas se refletem na participação das PCDs no mercado de trabalho. Segundo a Pnad Contínua de 2022, somente 29,2% das pessoas com deficiência estavam ocupadas, o que contribui para o cenário de pobreza desse público.
Tarefa de muitas mãos
É da Política Nacional de Cuidados a função de estabelecer os princípios, diretrizes e objetivos nesse sentido. Já o plano vai operacionalizar esses tópicos, articulando as demandas ouvidas no período de consultas na definição de ações setoriais. Metas, indicadores, prazos e órgãos responsáveis por cada compromisso também serão pontos abarcados no novo momento.
Considerando princípios como intersetorialidade, interdependência, interseccionalidade e transversalidade, o plano dividirá suas ações em cinco categorias. São elas:
- Serviço: serviços públicos ou privados direcionados a cuidadores e a quem necessite de cuidado, como centros-dia, acompanhamento e cuidado domiciliar de pessoas idosas e com deficiência, programas de formação, etc;
- Tempo: garantia do tempo necessário ao cuidado, com a concessão de licenças parentais (maternidade e paternidade), de cuidados ou para que as pessoas tenham tempo para usufruir do convívio familiar;
- Benefício: renda nos domicílios, por meio de aposentadoria, benefício-cuidador, benefícios assistenciais e, ainda, não monetários, como acesso a bens como fraldas, medicamentos, etc;
- Transformação Cultural: ressignificação do cuidado como um trabalho, uma necessidade, um direito e um bem público;
- Regulação: mudanças na lei para adequar as relações e condições de trabalho das profissões de cuidado (ex. garantia de direitos trabalhistas e previdenciários e proteção social às trabalhadoras domésticas remuneradas e às cuidadoras e cuidadores remunerados de pessoas idosas e com deficiência) e os serviços (a exemplo de educação e saúde ofertadas pelo mercado privado).
Nesse sentido, algumas propostas mais palpáveis já são discutidas abertamente. Além dos exemplos já citados em algumas categorias, há o investimento em serviços que diminuam o tempo dedicado ao cuidado indireto, como lavanderias coletivas, restaurantes populares, cozinhas solidárias e comunitárias e hortas comunitárias.
A oferta de formação sobre cuidados para gestores federais, estaduais e municipais; o fortalecimento das estratégias de prevenção e erradicação do trabalho infantil e do trabalho escravo nos setores de cuidados, a exemplo dos cuidadores não remunerados; e outras medidas também estão no radar.
Durante o seminário Trabalho, Cuidado e Parentalidades, promovido em março pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em Brasília, a secretária nacional de Política de Cuidados e Família do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), Laís Abramo, comentou o assunto.
Na ocasião, ela afirmou que a demora no lançamento do Plano Nacional, inicialmente previsto para maio de 2024, deve-se a questões orçamentárias. Em março, o Orçamento da União de 2025 ainda não tinha sido aprovado pelo Congresso. Segundo Abramo, os últimos detalhes estavam sendo finalizados.