Primeira Infância: os desafios para 'tirar do papel' políticas públicas para crianças no Ceará
Quase todos os municípios cearenses possuem plano municipal voltado à Primeira Infância, mas ainda existem barreiras para a eficácia das políticas
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"As crianças de até 6 anos são motores que ajudam a conduzir as mudanças", define a Organização das Nações Unidas (ONU) ao estabelecer as metas globais para os próximos anos — em compromisso assumido por 193 países, incluindo o Brasil, todos signatários da Agenda 2030.
O cuidado com os primeiros anos de vida, a chamada Primeira Infância, passa a ser ponto fundamental para o desenvolvimento sustentável mundial. No Brasil, ganha força de lei e cresce na agenda política do País. A garantia de um desenvolvimento integral das crianças, no entanto, não é alcançada apenas "com uma canetada".
"A partir da cooperação, da atividade compartilhada, da troca de vivências, de experiências é que a gente vai construir esse avanço na Primeira Infância", resume Rholden Queiroz, presidente do Tribunal de Contas do Estado do Ceará (TCE-CE).
A Corte de Contas encabeça o Pacto Cearense pela Primeira Infância, lançado no início de abril, que visa fortalecer a governança, aprimorar a gestão de recursos e ampliar e qualificar os serviços das políticas públicas voltadas à Primeira Infância. Uma das principais ferramentas para isso é o Plano para Primeira Infância — nacional, estadual ou municipal.
Esta reportagem integra série produzida pelo Diário do Nordeste sobre as políticas públicas para Primeira Infância e a atuação de entes públicos para garantir a efetividade das iniciativas voltadas a crianças em seus primeiros anos de vida.
Referência em políticas públicas voltadas à Primeira Infância — inclusive, com programas estaduais sendo modelo para iniciativas federais e de outros entes federados —, o Ceará é um dos estados com maior número de cidades com Plano Municipal de Primeira Infância. Das 184 prefeituras cearenses, 179 elaboraram e aprovaram o documento, o que representa 97,8%. Os dados são da Pesquisa de Informações Básicas Municipais (Munic 2023).
"Ele é um instrumento de planejamento. Uma pactuação não só do governo, mas da sociedade mais ampla, sobre onde a gente quer chegar com relação à Primeira Infância a longo prazo": a definição é feita por Karina Frasson, gerente de Políticas Públicas da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal — instituição voltada à promoção do desenvolvimento das crianças brasileiras.
"E para isso são desenhadas metas, estratégias para que isso seja alcançado, olhando a Primeira Infância como um todo, nos diferentes setores e intersetorialmente", detalha.
A elaboração de planos municipais para a primeira infância, alinhados ao Marco Legal da Primeira Infância, é um compromisso assumido por prefeituras cearenses que se tornaram signatárias do Pacto Cearense pela Primeira Infância. Contudo, não apenas a elaboração e a aprovação dos planos municipais pelo Poder Legislativo são importantes. É necessário garantir que o planejamento seja efetivado — o que ainda tem encontrado entraves no Ceará.
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Esse é o apontamento de auditoria operacional realizada pelo TCE Ceará. Entre os desafios encontrados, estão a dificuldade de integrar diferentes áreas da gestão pública para o desenvolvimento das políticas públicas — a necessária intersetorialidade dentro da administração pública — e o investimento de recursos voltados a programas e projetos para a Primeira Infância.
O que diz a legislação brasileira?
A "prioridade absoluta" da criança na garantia de direitos — como saúde, alimentação, educação e lazer — foi estabelecida ainda na Constituição Federal de 1988. O Estatuto da Criança e do Adolescente, na década de 1990, também reforça a proteção nas primeiras fases da vida.
No início da década de 2010, o Plano Nacional para a Primeira Infância (PNPI) foi desenvolvido pela Rede Nacional Primeira Infância (RNPI), no qual são delineadas as estratégias para a atuação governamental no tema.
O documento foi aprovado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), o que confere a ele legitimidade como política pública, apesar de não ter sido aprovado pelo Congresso Nacional. O Plano foi atualizado em 2020, com um planejamento até 2030. Desta vez, ele passa a ser guiado pelo Marco Legal da Primeira Infância — legislação aprovada em 2016.
Os dois regramentos federais estabelecem a necessidade de que estados e municípios elaborem plano para a Primeira Infância próprio como forma de cumprir a "prioridade absoluta", garantida constitucionalmente, das crianças. "Implica o dever do Estado de estabelecer políticas, planos, programas e serviços para a primeira infância que atendam às especificidades dessa faixa etária, visando a garantir seu desenvolvimento integral", diz artigo do Marco Legal.
O Plano Nacional pontua ainda a necessidade de aprovação dos planos estaduais, distritais e municipais pelo Legislativo como forma de desvincular "o Plano de um determinado partido e de um governo em particular e o ligar às funções permanentes do Estado na prestação de um serviço essencial para uma população específica: as crianças pequenas".
"O plano municipal, estadual ou do território precisa ser bem construído", elabora Karina Frasson. "Construído com base em um diagnóstico que diga respeito aos desafios e aos avanços dessa realidade local, o que é preciso avançar mais, o que é preciso manter".
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"Um plano que contempla diferentes áreas, um plano que seja construído para diferentes setores do governo, mas que também escute os principais beneficiários dessa política, que são as crianças e as suas famílias e que também têm uma participação dos outros Poderes", acrescenta Frasson.
Falhas na efetividade do Plano para Primeira Infância
"O grande desafio é nós fazermos com que esses planos se transformem em realidade da vida das nossas crianças", resume o governador do Ceará, Elmano de Freitas (PT). O Governo do Ceará foi um dos signatários do Pacto Cearense Pela Primeira Infância durante solenidade realizada no último dia 7 de abril.
"É um ganho institucional muito importante favorecer que nós tenhamos um ambiente em que o Governo do Estado, o Governo Federal, os municípios, a sociedade civil e o Poder Judiciário possam dialogar sobre como podemos aperfeiçoar, melhorar e implementar os planos que temos para a Primeira Infância no estado do Ceará", destaca o gestor.
As prefeituras cearenses também são signatárias do Pacto Cearense. Na solenidade realizada para o lançamento do Pacto, na sede do TCE Ceará, estiveram presentes os gestores municipais da Região Metropolitana de Fortaleza. Também devem ser feitos eventos em diferentes regiões do Ceará para que as gestões municipais possam aderir aos compromissos elencados no documento.
Um deles é focado especificamente na efetividade do Plano Municipal para a Primeira Infância. "Elaborar, implementar, monitorar e divulgar os planos municipais para a primeira infância, alinhados ao Marco Legal da Primeira Infância e baseados em evidências locais, com objetivos, metas e indicadores claros", detalha o texto.
A meta tenta solucionar falhas encontradas pelo TCE Ceará na elaboração e execução de planos municipais de cidades cearenses em auditoria operacional realizada em 2023 — e com resultados aprovados pelo Pleno da Corte, em setembro do ano passado.
"(O TCE) tem a possibilidade constitucional de organizar auditorias em políticas públicas para analisar a eficiência, a eficácia e a efetividade das políticas públicas. (...) Essas fiscalizações não têm aquele viés punitivo. Elas têm mais o viés de estar do lado do município, apoiando o município naquilo em que tem dificuldade. O Tribunal encontra dificuldades e ajuda a solucionar o problema", explica Rholden Queiroz.
A auditoria foi realizada em cinco cidades cearenses: Chorozinho, Coreaú, Granjeiro, Groaíras e Jardim. Apesar de terem documentos aprovados pelo Legislativo, foram identificados problemas para 'tirar do papel' os planejamentos voltados à Primeira Infância. Foram observadas as falhas na elaboração dos planos municipais quanto:
- Aos mecanismos de coordenação, intersetorialidade e articulação que fortaleçam a integração de políticas públicas em favor das crianças de 0 a 6 anos de idade;
- Aos instrumentos que confiram efetividade ao documento e viabilizem o acompanhamento concomitante das ações e a mensuração dos resultados e impactos no desenvolvimento infantil; e
- À alocação de recursos necessários à sua implementação.
O relatório da auditoria revela, por exemplo, a falta de um diagnóstico para saber se as propostas desenhadas no plano municipal irão solucionar as necessidades das crianças da cidade — como é o caso de Granjeiro —, a ausência de detalhes sobre quais secretarias da Prefeitura serão responsáveis pela execução das ações — como em Groaíras —, ou a inexistência de mecanismos para monitorar os resultados das iniciativas — como em Jardim e Coreaú.
Os documentos, segundo o relatório técnico do TCE Ceará, também não detalharam as metas, o cronograma de execução, o alcance das ações nem a fonte de recursos para efetivar o planejamento feito.
O Diário do Nordeste buscou as prefeituras das cidades auditadas pelo TCE Ceará para saber se foram adotadas medidas para sanar as falhas identificadas pela fiscalização da Corte de Contas. O espaço continua aberto para manifestações.
Execução e financiamento na área
A execução e o financiamento das políticas públicas para a Primeira Infância também são apontadas pela promotora Cibelle Nunes como desafios para garantir o desenvolvimento integral das crianças cearenses. Ela é coordenadora auxiliar do Centro de Apoio Operacional da Infância e da Juventude (Caopij) do Ministério Público do Ceará (MPCE).
"O Ministério Público, a partir dos promotores, fiscaliza como esse plano municipal está sendo executado na prática", explica a promotora. Ela pontua que a Primeira Infância é uma "política multifacetada", que envolve diversas áreas da administração pública, como Educação, Saúde, Assistência Social, Meio Ambiente, dentre outros.
"O desafio hoje é realmente trazer todas essas pastas para conversarem e executarem a política pública da Primeira Infância, porque, como ela é muito ampla, envolvendo muitos setores, o desafio é fazer essa execução, considerando esses vários atores", afirma.
Um dos instrumentos para isso são os Comitês Intersetoriais da Primeira Infância, também previstos no Marco Legal. Os colegiados — compostos por integrantes das secretarias da gestão, organizações da sociedade civil e outros órgãos, como o Legislativo —, são responsáveis, inclusive, pela elaboração dos planos municipais.
Também são eles os responsáveis pelo monitoramento da implementação destes planos, garantindo o cumprimento das ações voltadas a crianças de 0 a 6 anos no município. A auditoria realizada pelo TCE Ceará também investigou como está a atuação destes comitês. Os resultados detalhados serão abordados na continuação desta série de reportagens.
A importância do Orçamento para a Primeira Infância
"Outro desafio é a questão orçamentária", continua Cibelle Nunes. "É uma dificuldade porque, como eu disse, envolve várias secretarias. Então, o recurso não é delimitado assim: 'recurso para a Primeira Infância'. É muito solto. Eu não tenho esse recurso destinado especificamente para a Primeira Infância", pontua.
A promotora cita, inclusive, manual lançado pelo TCE Ceará com orientações para a elaboração da Lei Orçamentária pelas prefeituras cearenses. Neste manual é sugerido que a gestão indique, no orçamento de cada pasta da Prefeitura, quais são os gastos exclusivos com a Primeira Infância e também os não exclusivos, ou seja, que impactam apenas indiretamente nas crianças entre 0 e 6 anos, além de gestantes e puérperas.
Por exemplo, recursos direcionados a creches ou para a construção de UTIs neonatal possuem impacto direto nas crianças em seus primeiros anos de vida. Por outro lado, o investimento no Sistema Único da Assistência Social (Suas) possui benefícios para a Primeira Infância, mas não de forma exclusiva.
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De acordo com as orientações do Tribunal, estes gastos deveriam ter uma classificação específica. "É preciso que seja colocado no Orçamento a questão da Primeira Infância", reforçou Rholden Queiroz, durante o lançamento do Pacto Cearense pela Primeira Infância.
Este é, inclusive, um dos compromissos assumidos por prefeitos que se tornem signatários do documento. "Evidenciar os recursos aplicados em projetos e atividades voltadas para a primeira infância no orçamento municipal", diz o compromisso listado no Pacto Cearense.
O compromisso anterior a esse é exatamente "garantir o financiamento das políticas para a primeira infância, com recursos próprios e por meio de recursos de transferências".
"Não basta ter um plano se não houver um planejamento orçamentário para execução desse plano", reforça Karina Frasson. Ela cita, por exemplo, que 2025 é o ano da elaboração do Plano Plurianual pelas prefeituras. "Ele vai ditar os próximos 4 anos de planejamento orçamentário. Então, é preciso que os municípios possam construir, dentro do seu planejamento orçamentário, as ações de Primeira Infância", diz.
'O começo de tudo é da conta de todos'
Frasson fala ainda da necessidade de uma "governança colaborativa" para garantir a "prioridade absoluta" das crianças.
"O que eu quero dizer com governança colaborativa? A importância de que os diferentes setores (da gestão) possam trabalhar de maneira coordenada pela Primeira Infância (...), que as diferentes esferas do Executivo possam trabalhar também em cooperação — federal, estadual e municipal —, e também a gente fala da cooperação com o Legislativo e com os órgãos de controle, essa dimensão extra governamental", detalha.
"Os tribunais de contas vêm cumprindo um papel fundamental nessa esfera da extra governamentalidade, de atores que estão fora do Executivo e são importantes para a execução, para a realização de políticas de primeira infância, ao monitorar não só os gastos, mas a qualidade desses gastos", aponta.
Ao falar sobre o Pacto Cearense pela Primeira Infância, Rholden Queiroz pontua que "o TCE Ceará é o primeiro a assumir compromisso".
Entre eles, estão a realização de fiscalizações das políticas de primeira infância, a capacitação de gestores e profissionais no tema e a articulação dos "diferentes níveis de governo (União, Estado e Municípios), setores da sociedade e instituições de pesquisa".
O Tribunal também se prepara para lançar, no primeiro semestre deste ano, o Observatório Municipal da Primeira Infância e desenvolverá um painel integrado para atualizar o cumprimento dos compromissos assumidos, as informações sobre execução de políticas públicas e indicadores sobre a Primeira Infância. "De uma forma interativa, (queremos) estimular uma sinergia entre os gestores. Nós vamos colocar as boas práticas de cada um nesse portal e, com isso, estimular o trabalho dos outros", projeta Rholden Queiroz.
"Se o Tribunal pode avaliar as políticas públicas, também pode induzir políticas públicas. Nos locais em que a política pública precisa ser analisada com mais eficácia, ele pode induzir, ele pode tomar frente, pode instar os gestores. É nesse sentido que a gente estabeleceu como prioridade a Primeira Infância", reforça.