Intersetorialidade e monitoramento de ações para Primeira Infância ainda é desafio no Ceará, diz TCE
Auditoria realizada pelo Tribunal analisou como está o funcionamento dos comitês intersetoriais, fundamentais para a execução de políticas públicas paras as crianças de até 6 anos

"A criança é única. Ela não é uma criança diferente na Educação, na Saúde, na Ciência. Então, os setores estando bem articulados, isso pode potencializar essa atenção com qualidade no início da vida": é o que ressalta a gerente de Políticas Públicas da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, Karina Frasson. A explicação evidencia o caráter transversal necessário para garantir o desenvolvimento integral da criança, principalmente até os 6 anos. Na gestão pública, isso significa o envolvimento de diferentes áreas, como Educação, Saúde, Assistência Social, Segurança Pública e Meio Ambiente.
Uma das ferramentas estabelecidas pela legislação brasileira para efetivar a comunicação entre diferentes setores da administração pública são os comitês intersetoriais.
"A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir, nos respectivos âmbitos, comitê intersetorial de políticas públicas para a primeira infância com a finalidade de assegurar a articulação das ações voltadas à proteção e à promoção dos direitos da criança, garantida a participação social por meio dos conselhos de direitos".
Os comitês são responsáveis, por exemplo, pela elaboração do Plano para a Primeira Infância — documento basilar para o planejamento das políticas públicas voltadas a crianças de 0 a 6 anos, seja nos estados seja nos municípios. Eles também são "espaços institucionalizados capazes de definir e planejar os caminhos da política, debater e disseminar propostas para a primeira infância, pensando o planejamento integrado da política de Primeira Infância".
A definição foi feita no relatório final de auditoria operacional realizada pelo Tribunal de Contas do Estado do Ceará em 2023 — e com resultados aprovados pelo Pleno da Corte em setembro do ano passado.
A fiscalização tinha como objetivo entender quais as estratégias intersetoriais para Primeira Infância eram aplicadas pelo Governo do Ceará e por prefeituras de cinco cidades cearenses — Chorozinho, Coreaú, Granjeiro, Groaíras e Jardim.
Entre as falhas encontradas estão a falta de efetividade na atuação dos comitês — com a falta de regularidade nas reuniões do grupo, por exemplo —, e a deficiência no monitoramento e na avaliação das ações voltadas à Primeira Infância.
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Esta reportagem integra série produzida pelo Diário do Nordeste sobre as políticas públicas para Primeira Infância e a atuação de entes públicos para garantir a efetividade das iniciativas voltadas a crianças em seus primeiros anos de vida.
Importância da intersetorialidade
Auditora de Controle Externo do TCE Ceará, Priscila Lima explica que a fiscalização com foco na intersetorialidade não foi feita apenas no Ceará, sendo um trabalho de rede entre tribunais de conta do País. "O TCE Ceará aderiu a esse trabalho porque se entende que, sem a intersetorialidade, a política pública (da Primeira Infância) tende a ter muitos riscos e não conseguir o sucesso que precisa", pontua.
Karina Frasson também reforça a importância dessa comunicação entre diferentes áreas da administração pública quando se trata da Primeira Infância.
"Um grande risco de não trabalhar intersetorialmente é a impossibilidade de identificar situações mais graves, situações de risco na atenção às crianças. (...) O atendimento intersetorial potencializa a identificação da necessidade das crianças e das famílias, para que elas possam ser atendidas com mais qualidade e mais prontidão também", afirma.
Apesar da necessidade de envolver muitas pastas da gestão pública, nesta primeira auditoria, o TCE Ceará focou na atuação intersetorial da Primeira Infância em três áreas: Saúde, Educação e Assistência Social.
Um dos principais pontos fiscalizados foi a atuação dos comitês intersetoriais. Desde a implementação destes colegiados — feitos por meio de projeto de lei — até a frequência de reuniões e mesmo o ajuste da composição.
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Além disso, o Tribunal também avaliou a formação dos profissionais que atuam diretamente com crianças de 0 a 6 anos — e se essa capacitação envolve a intersetorialidade —, e como é feito o monitoramento e avaliação dos resultados de ações e programas voltados à Primeira Infância. As duas ações também estão sob o guarda-chuva dos comitês intersetoriais.
"Não se quer dizer com isso que não haja relevantes e exitosas iniciativas e estratégias voltadas para atender aos direitos das crianças, (...) mas também é verdade que não há uma rede fortalecida que promova a intersetorialidade por todo o ciclo da política pública, desde a identificação dos problemas até a avaliação dos resultados, ocasionando, muitas vezes, sobreposição de ações ou lacunas não atendidas", aponta o relatório final da Corte.
Situação no Governo do Ceará
"Quanto ao Estado, é incontestável o esforço governamental em elaborar estratégias que de fato enfrentam o cerne dos problemas que assolam a Primeira Infância", pontua o TCE Ceará no relatório final da auditoria. Entre os programas citados estão o Mais Nutrição, o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Infantil (Padin), o Cuidar Melhor: Redução da Mortalidade Infantil e o Mais Infância.
Apesar disso, a auditoria identificou problemas, por exemplo, na composição do Comitê Consultivo Intersetorial das Políticas de Desenvolvimento Infantil (CPDI) — que estava desatualizada no período da fiscalização.
Além disso, o relatório aponta que não há regularidade na realização de atividades pelo colegiado comprovada por registros. “Entende-se ausente a sistematização das atividades/reuniões para que o CPDI consiga ter regularidade dos encontros e completude dos membros”.
Entre as recomendações apontadas pela auditoria está a implementação de cronograma de reuniões ordinárias e pedido de apoio para que haja maior adesão de integrantes aos encontros.
Indagada sobre o problema identificado pelo TCE Ceará, a Secretaria de Proteção Social, pasta à qual o comitê é vinculado, informou que o colegiado realizou a primeira reunião de 2025 em março. Nela, a secretária de Proteção Social e vice-governadora Jade Romero (MDB) foi eleita para a presidência. O cronograma para 2025 prevê ainda encontros nos meses de maio, julho, setembro e novembro, segundo informou a assessoria de imprensa da pasta.
Outros problemas encontrados pela auditoria foram a falta da temática de intersetorialidade na formação de profissionais que atuam diretamente com a Primeira Infância — desde o planejamento das capacitações até a execução. Além disso, o Tribunal apontou falhas no monitoramento e avaliação de ações e programas.
"No âmbito do Estado do Ceará, em que pese relevantes iniciativas setoriais isoladas, não se comprova o monitoramento e avaliação dos resultados de forma intersetorial, por meio do Comitê Consultivo Intersetorial das Políticas de Desenvolvimento Infantil do Estado do Ceará – CPDI", destaca o texto do relatório.
O TCE Ceará pontua que não há "registros ou relatórios consolidando informações, análises e conclusões dos resultados dos monitoramentos", mas que, em entrevistas realizadas, foi afirmado que houve monitoramento e acompanhamento das ações.
"Há sim, a publicação do Mais Infância Ceará dos anos de 2021 e 2022, contendo resultados alcançados, mas a análise quanto a esse resultado não é apresentada (se as metas foram atingidas, se estão em processo de evolução, se em declínio, as causas para os resultados não alcançados)", continua o texto.
O relatório pontua que a forma "descentralizada" de acompanhar as ações não propicia "uma visão abrangente de todos os direitos da criança na Primeira Infância". "A intersetorialidade deve ser observada também nas fases de monitoramento e avaliação dos resultados e impactos, a ser coordenado pelo Comitê, algo que não foi comprovado", ressalta o documento.
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Em resposta ao Diário do Nordeste, a Secretaria de Proteção Social informou que foram feitas visitas em 51 cidades cearenses para o monitoramento de políticas públicas voltadas à Primeira Infância. "O resultado desses encontros e visitas é publicado, anualmente, no seminário de Avaliação e monitoramento do Plano Estadual e dos planos municipais da Primeira Infância", diz a nota.
O cronograma de visitas foi elaborado pelo Comitê, que também formulou "plano de capacitação que prevê a realização de webinários bimestrais voltados aos comitês municipais da primeira infância, além de encontros regionais previstos para o segundo semestre do ano", informou a pasta.
Problemática nos municípios
Nas cidades auditadas pelo TCE Ceará, a criação e composição dos comitês intersetoriais também possuem problemas a serem solucionados. Em Chorozinho e Coreaú, por exemplo, não há uma norma legal instituindo o comitê, como determina o Marco Legal da Primeira Infância, segundo o Tribunal.
Em Chorozinho, uma composição foi nomeada em 2021 e o regimento interno foi aprovado em 2023, mas não há um regramento criando o colegiado. No caso de Coreaú, existem comitês que tratam de temas relacionados à infância, mas não focados na Primeira Infância.
Já em Granjeiro e Jardim, a falha está na composição dos colegiados. Apesar de criados por normas legais, existe uma ausência de entidades ou de participação social nos comitês.
O relatório do TCE Ceará pontua que o Comitê Intersetorial da Primeira Infância do Município de Granjeiro não conta com a participação de entidades como o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e Adolescente e os Conselhos Tutelares Municipais.
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No caso de Jardim, a "ausência de participação social em sua composição, bem como a indefinição das regras para o seu funcionamento, enfraquece a abordagem participativa e discussão coletiva, princípios do Marco Legal da Primeira Infância".
Além disso, os comitês não possuíam registros suficientes para atestar a realização de reuniões periódicas dos comitês. Em alguns casos — como Chorozinho, Granjeiro e Jardim —, os secretários municipais, entrevistados pela equipe técnica do Tribunal, confirmaram a ocorrência dos encontros.
Assim como ocorreu no Governo do Ceará, nos municípios fiscalizados foi identificada a falta da temática de intersetorialidade na formação de profissionais que atuam diretamente com a Primeira Infância — desde o planejamento das capacitações até a execução.
Sobre o monitoramento de ações, os municípios de Chorozinho, Coreaú e Groaíras não enviaram documentação que comprove o acompanhamento das iniciativas e a avaliação dos resultados.
No caso de Granjeiro, o TCE Ceará conclui que não há uma "sistemática desse processo". "O município dispõe de informações, mas elas precisam ser melhor aproveitadas, com análises que possam apontar para conclusões da real cobertura e atendimento às necessidades da população da primeira infância", diz o relatório final do Tribunal.
A cidade de Jardim enviou documentação sobre o tema, mas que "não são suficientes para evidenciar o acompanhamento, monitoramento e avaliação das políticas e ações para a Primeira Infância pelo comitê intersetorial local".
O Diário do Nordeste enviou e-mail para as cinco prefeituras cearenses auditadas pelo TCE Ceará para saber se houve mudança na atuação do comitê intersetorial e se as falhas apontadas pelo Tribunal foram corrigidas. Contudo, não houve retorno até o fechamento desta reportagem.
Os caminhos para avançar
Presidente do TCE Ceará, Rholden Queiroz falou sobre as fiscalizações feitas pela Corte — não apenas a auditoria focada na intersetorialidade, mas outras iniciativas com foco na Primeira Infância realizadas pelo órgão.
Ele pontuou que elas "não têm viés punitivo". "(O TCE) também tem a possibilidade constitucional de organizar auditorias em políticas públicas. Analisar a eficiência, a eficácia e a efetividade das políticas públicas. Ver se as políticas públicas estão atendendo a finalidade para a qual ela se originou", detalha.
"As auditorias têm mais o viés de estar do lado do município, apoiando o município naquilo que tem dificuldade. O Tribunal encontra as dificuldades e ajuda a solucionar o problema", continua o conselheiro. A importância de solucionar o problema é demonstrado pelos riscos, elencados no relatório final do TCE Ceará, quando existem falhas ou problemas na atuação intersetorial da gestão pública — seja municipal seja estadual.
A ausência de atividades dos comitês intersetoriais, por exemplo, pode provocar a descontinuidade das ações para a Primeira Infância e a fragmentação das ações para as crianças de 0 a 6 anos.
Nas cidades em que a implementação do comitê tem fragilidades, pode haver uma descontinuidade no planejamento e acompanhamento das ações voltadas à Primeira Infância e uma fragilidade na articulação das ações voltadas à proteção e à promoção dos direitos da criança.
O relatório também lista as consequências da ausência de monitoramento e avaliação das políticas de Primeira Infância — ou das falhas nesse processo. Uma delas, é que a população fica sem um instrumento de controle sobre a ação dos governos. Além disso, a gestão acaba não sabendo quais estratégias funcionam, quais os mecanismos são mais efetivos e quanto se avançou na inclusão das diferentes infâncias e das crianças com deficiência.
Com mais de 170 municípios cearenses informando que possuem comitês intersetoriais — e com falhas encontradas em prefeituras podendo se repetir em diversas localidades do estado —, a intersetorialidade está entre os compromissos a serem assumidos por prefeitos cearenses no Pacto Cearense pela Primeira Infância.
Encabeçada pelo TCE Ceará — e com signatários nos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, além de entidades da sociedade civil —, a iniciativa prevê uma série de compromissos a serem assumidos pelos gestores municipais.
Dentre eles, "promover a articulação intersetorial entre as diferentes secretarias municipais, assim como dos dados produzidos e acompanhados por essas secretarias".
O Governo do Ceará, por sua vez, tem como um dos compromissos "monitorar e avaliar continuamente a implementação das ações previstas nos planos municipais intersetoriais da Primeira Infância, por intermédio dos indicadores previstos no Plano Estadual da Primeira Infância".
"Temos a convicção que a questão da Primeira Infância não pode ser resolvida com a canetada de ninguém. Ela vai evoluir a partir da cooperação, da atividade compartilhada, da troca de vivências, da troca de experiências que a gente vai construir esse avanço na Primeira Infância", frisa Rholden Queiroz.