Ceará é modelo para o Brasil no cuidado a 400 mil crianças, mas educação e saúde desafiam políticas
No Dia da Criança, o Diário do Nordeste discute como primeira infância tem avanços no CE, mas ainda carece de investimentos básicos para garantir atendimento integral
Crianças com desenvolvimento físico, social, cognitivo e emocional desde os primeiros anos de vida. Para alguns pode parecer utopia, mas instituições do Ceará vêm dando passos importantes para garantir condições de igualdade em todas essas dimensões a quase 400 mil crianças de até 6 anos de idade, conforme estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para o ano de 2023. Apesar do empenho, carências históricas em educação e saúde ainda impõem urgência às discussões.
A cabeça de uma criança é como um terreno pronto para ser construído. São os primeiros anos que garantem um verdadeiro mutirão de conexões no cérebro - centenas por segundo - para dar sentido ao mundo que a rodeia. Esse desempenho demanda um ambiente favorável cercado por direitos básicos, como alimentação, saúde, educação e lazer.
“Quanto mais adversidades enfrenta, mais a criança produz o cortisol, que é o hormônio do estresse tóxico”, explica Joana Mota, diretora do Instituto da Primeira Infância (Iprede), fundado em Fortaleza há 37 anos e referência no combate à desnutrição.
“Isso acaba por lesionar áreas do cérebro, como aprendizagem e comportamento, de forma permanente. Ela vai ter mais chances de cometer suicídio e de ter problemas antissociais ou com álcool e drogas. É o cidadão de amanhã que está sendo construído nesse momento da primeira infância”, complementa a psicóloga.
Edson Ferrari, presidente do Comitê Técnico da Primeira Infância do Instituto Rui Barbosa (CTPI-IRB), adiciona: se o Estado brasileiro fornecer atendimento integral em educação e saúde hoje, terá cidadãos mais completos e capacitados em habilidades pessoais e profissionais no futuro.
No entanto, os 14 indicadores avaliados pelo Comitê “não são bons”, e ele percebe “negligência” na atenção infantil. “Tínhamos que ofertar creche para, no mínimo, 50% das crianças de até 3 anos. Só alcançamos 36%. Também temos campanhas de imunização muito atrasadas, principalmente contra poliomielite e sarampo, e essa falta afeta diretamente a saúde delas”, observa.
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Diante do quadro, em julho deste ano, a entidade expediu recomendação aos Legislativos Estaduais e Municipais para priorizar a primeira infância nos Projetos de Plano Plurianual e Leis Orçamentárias de cada ano, descrevendo objetivos e metas das ações e dando transparência ao processo.
“Você só tem recurso garantido a partir do orçamento, que precisa prever verbas para concluir obras em creches e dar mais qualidade à imunização”, exemplifica. O conselheiro alerta ainda que não basta destinar 25% das receitas estaduais para educação e 12% para a saúde: o controle externo deve verificar também a qualidade dessa aplicação.
Se tivessem avaliado a qualidade lá atrás, outras políticas públicas estariam mais adiantadas e dando melhores condições de vida aos cidadãos.
Ceará é destaque nacional
O Ceará tem a primeira infância como política pública de Estado desde 2021, com a institucionalização do Programa Mais Infância Ceará, criado em 2015. A iniciativa abrange os 184 municípios através de quatro eixos:
Segundo a titular da Secretaria da Proteção Social do Ceará (SPS), Onélia Leite Santana, um dos principais eixos dessa política são as visitas domiciliares para fortalecer os vínculos entre famílias e crianças de 0 a 36 meses. Até o momento, quase 8,5 milhões de visitas já foram realizadas.
“Hoje, o grande desafio desse tipo de ação é o monitoramento. Em cada município, temos um agente Mais Infância que acompanha as famílias e preenche o nosso Big Data Social (plataforma virtual de dados e indicadores sobre auxílios sociais). Já recebemos 6 estados para saber como incluímos essas famílias nas políticas públicas”, lembra a gestora.
Até o momento, o conjunto de ações já gerou os seguintes impactos:
- 150 mil famílias pobres beneficiárias do Cartão Mais Infância, que paga R$100 mensais
- 223 brinquedopraças
- 154 brinquedocreches
- 123 Centros de Educação Infantil (CEIs)
- 33 Praças Mais Infância
- 22 Núcleos de Estimulação Precoce
- 4 Complexos Mais Infância
- 1 Cidade Mais Infância
O Cartão Mais Infância, inclusive, serviu de inspiração para a volta do Bolsa Família, maior programa federal de transferência de renda e combate à fome no país. Os beneficiários em situação de pobreza recebem, no mínimo, R$600, mas famílias que possuem crianças com idade entre 0 e 6 anos têm adicional de R$150.
Mônica Sillan, coordenadora da Frente de Assistência à Criança Carente (FACC), reconhece o esforço da política estadual e cobra apoio também das esferas municipais. “Não vemos ações em cidades de pequeno porte. Nos locais mais recônditos, há dificuldade nas vagas de primeira infância; não tem profissionais especializados; existe alerta com a vacinação, e o sub-registro civil ainda é preocupante”, enumera.
Descentralização dos esforços
A dificuldade de acesso à educação nessa faixa etária também é apontada pela assessora técnica em orçamento do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca), Carla Moura, como grande obstáculo à consolidação de direitos. A entidade monitora diversas denúncias e solicitações de vagas em berçários e CEIs.
“Apesar de termos tido um aumento de equipamentos, ainda há um déficit, sobretudo se considerarmos os CEIs com berçário. Em Fortaleza, eles só começaram a ser implantados após uma Ação Civil Pública do Cedeca com o Ministério Público do Ceará (MPCE), em 2019, que obrigou o município a ofertar”, recorda. Até agosto deste ano, a Prefeitura de Fortaleza entregou 28 unidades com esse tipo de espaço.
De forma geral, o Ceará vem ampliando o número de vagas em estabelecimentos de educação para a primeira infância nos últimos anos, como mostram dados do Censo Escolar, principal levantamento de dados estatísticos sobre o ensino brasileiro:
Apesar dos avanços, a oferta e a qualidade da educação infantil estão na mira do Tribunal de Contas do Estado do Ceará (TCE-CE). A partir da análise de dados de matrículas em creche e pré-escola, foram realizadas auditorias em seis municípios cearenses para identificar deficiências nas ações adotadas para ofertar o acesso ao ensino.
A partir do levantamento e do relatório final, foi recomendado aos municípios elaborar um diagnóstico situacional dos problemas que afetam o não alcance dos percentuais mínimos estabelecidos no Plano Nacional de Educação (PNE): 50% de crianças até 3 anos na creche, e 100% de 4 e 5 anos na pré-escola.
“Se não conheço a quantidade de crianças, não consigo planejar quantos prédios preciso ter”, explica a analista de controle externo do TCE, Priscila de Castro. “E os que eu tenho, estão adequados? Os professores e demais profissionais têm formação para atuar na educação infantil e entendem a relevância dessa etapa de ensino? A escola é um espaço não apenas de educação, mas de saber se precisam de assistência social ou de atualização das vacinas”.
Em outra avaliação, esta ainda em andamento, o Tribunal enviou questionários aos 184 municípios do Ceará para mapear estratégias intersetoriais desenvolvidas pelos entes públicos para promover a atenção integral e o desenvolvimento na primeira infância. O objetivo é saber se há planejamento e atuação conjunta entre secretarias para dar à criança “o mínimo de dignidade para frequentar a escola”.
“Isso tudo é para garantir que ela tenha um olhar integral e integrado. Nossa expectativa é de que essas ferramentas estejam operando de forma que a criança que precisa do serviço público seja atendida”, garante Priscila.
Segundo a secretária Onélia Santana, evoluções assim só são possíveis com parcerias governamentais e institucionais. A gestora comemora que o Ceará é o único estado brasileiro que interiorizou o Plano Municipal para a Primeira Infância nos 184 municípios, em abril deste ano. Os documentos permitem planejar ações de pequeno, médio e longo prazo para crianças em diversos contextos.
No mesmo sentido, há 4 anos, o Pacto Nacional pela Primeira Infância estabeleceu que a elaboração de políticas públicas de cuidado com as crianças deve ser repartida entre Municípios, Estados e União. O IRB e o TCE-CE apoiam o movimento lançado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que já reúne mais de 300 entidades.
Quebra de ciclos e novas oportunidades
Experiências exitosas sobre o desenvolvimento infantil são colhidas há décadas no Iprede. No período em que atua em Fortaleza, a entidade viu a desnutrição diminuir nacionalmente de 30% para 7%, conforme a Pesquisa Nacional de Saúde e Nutrição (PNSN). Agora menos severa, segundo a diretora Joana Mota, ela se mostra num desenvolvimento atrasado, tanto em peso e altura como comportamento.
A gente entendeu que desnutrição não é uma doença orgânica, é uma doença social: a falta da comida na mesa.
Por isso, o eixo social da instituição busca o fortalecimento de mulheres líderes de família e a inclusão social dos 1.350 assistidos, que vivem em situação de vulnerabilidade social e pobreza na Capital e na Região Metropolitana.
Afinal, como lembra Carla Moura, do Cedeca, “a maioria dos responsáveis são mulheres que precisam trabalhar e de um local para deixar essas crianças”. “É importante também para o sustento das casas, porque isso garante segurança alimentar”, argumenta.
“Para atingir a criança, eu tenho que atingir a mulher”, acrescenta Joana. Enquanto os pequenos estão em atendimento, as responsáveis participam de atividades como oficinas profissionalizantes, aulas de alfabetização, consultas ginecológicas e planejamento familiar.
O acompanhamento especializado já melhorou o quadro de Raul Ramsés, de 1 ano e 3 meses, filho da auxiliar de sala Amanda de Melo, 29. Pequeno nos primeiros meses de vida, o menino já ganhou peso e altura. Já brinca, corre e sobe escadas. “Mesmo que dê trabalho, é sinal de saúde, né?”, brinca a mãe, que projeta no menino um médico ou jogador de futebol. “Mas essa decisão é dele”, entende.
Quem também viu maior aproximação com os filhos foi a dona de casa Ângela Lima, 36. Mateus, 5, e Maria Agnes, 3, já desenvolveram bem a estrutura física e a coordenação motora. “O primeiro dia que vi ele andando foi aqui”, orgulha-se.
Também no Iprede, Ângela passou a fazer aulas de corte e costura, área com a qual pretende trabalhar. Além dos conhecimentos, conquistou autonomia. “Agora eu me vejo uma pessoa mais dona de mim, andando com meus próprios passos. O que eu quero fazer é costurar e ajudar meus filhos a também terem uma profissão legal”, anima-se.
“É fundamental esse alicerce, esse suporte terapêutico e pedagógico, para que elas continuem. O que não podemos deixar é ela desistir”, pensa Joana. “Fazer ela voltar a sonhar: isso pra gente é tudo”.