'Pra entrar no mar, pedimos licença': conheça a festa religiosa que torna sagradas as praias do CE

A reportagem do Diário do Nordeste acompanhou dois dias de festa em celebração à Iemanjá, com rituais, cantos e preces em homenagem à Rainha do Mar

Escrito por Lucas Falconery , lucas.falconery@svm.com.br
Legenda: Fiéis entregam oferendas para Iemanjá em Fortaleza
Foto: Ismael Soares
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Num círculo de gente com vestes brancas e azuis, unidas em dança, pés levantam as areias das Praias do Futuro, de Iracema e da Barra do Ceará, no pôr do sol de Fortaleza. Mãos sobem em preces ou caem forte nos instrumentos de percussão. Driblando o vento intenso, as vozes ecoam músicas com a temática litorânea. Logo todo mundo desce rumo à água com oferendas, afinal, é a Festa de Iemanjá, celebrada no dia 15 de agosto.

Diário do Nordeste esteve presente em três espaços de Festa de Iemanjá em Fortaleza deste ano, nas praias do Futuro, Iracema e Barra do Ceará, durante os dias 14 e 15 de agosto, para acompanhar as manifestações de fé e os rituais das religiões de matrizes africanas para esta 3ª reportagem da série Mar de Leva e Traz, em que são entrelaçadas as memórias e os diferentes usos do litoral.

O especial multimídia integra o projeto Praia é Vida, promovido pelo Sistema Verdes Mares com foco na valorização e na sustentabilidade desse meio indispensável para múltiplas formas de vida.

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Para homenagear a divindade africana, conhecida como Rainha do Mar, são reunidos terreiros (grupos adeptos da umbanda e do candomblé) não só da capital cearense, mas de outros municípios e estados. São pessoas, de idosos a crianças, agradecendo pela proteção, sustento e família e pedindo por graças.

Legenda: Fiéis da umbanda e do candomblé colorem a Praia de Iracema
Foto: Ismael Soares

Os festejos para Iemanjá começaram por volta da década de 1950, simultaneamente ao Dia de Nossa Senhora da Assunção, padroeira de Fortaleza, sendo a Praia do Futuro escolhida como o primeiro grande espaço de afirmação da fé de matriz africana. Naquela época, tudo era feito escondido pelas dunas devido à repressão policial.

Contudo, a resistência abriu espaço para que a data seja atualmente comemorada em praticamente toda cidade de praia do Ceará e leve milhares de pessoas a Fortaleza, onde o evento foi registrado como Patrimônio Imaterial, pelo decreto nº 14.262 de 2018, publicado pela Secretaria Municipal da Cultura.

O respeito ao ambiente marinho, inclusive, aparece nos presentes lançados no mar. Os religiosos evitam objetos de plástico, por exemplo, e investem nas flores brancas e frutas para não causar danos à água e aos animais.

Praia do Futuro e a tradição de meio século

Apesar de a comemoração da Festa de Iemanjá ser, oficialmente, no dia 15 de agosto, as atividades começam já no dia anterior na Praia do Futuro, que recebe o evento há 58 anos, sendo o espaço mais tradicional da cidade. Nesta edição, enquanto montavam o palco principal, alguns terreiros chegaram e se distribuíram entre as tendas instaladas para a festa.

Bastou o sol cair para Mãe Nair reunir seis pessoas na areia, pertinho da água, em um ritual na véspera da festa. De frente para o mar, com as mãos elevadas ao alto, ela canta “Salve, Iemanjá” e começa a conversar individualmente com cada um, guiada por uma entidade. Nair abre espumantes, lava a cabeça dos participantes, e libera cada um para entregar as flores brancas no mar.

Legenda: Mãe Nair lidera o grupo e guia as pessoas para a homenagem à Iemanjá
Foto: Ismael Soares

Legenda: Banho de espumante é feito como um dos simbolismos de purificação
Foto: Ismael Soares

Além das atividades mediúnicas, foram feitas apresentações musicais, sempre com instrumentos de percussão, dança do Coco, contações de histórias e acolhidas das caravanas do Interior, como Crateús, Iguatu e Tauá. Vários participantes também se reuniram nas barracas de praia para as refeições.

Mãe Tecla Sá de Oliveira, presidente da União Espírita Cearense de Umbanda (Uecum), explica que muitos chegam e permanecem na Praia do Futuro, onde os tambores tocam a noite inteira.

"Nós tentamos contar a quantidade de ônibus, mas não dá. Já foram mais de 120 ônibus e até mais do que 60 mil pessoas. Agradecemos a Deus e a todos os nossos orixás por estarmos aqui, começamos as apresentações culturais e finalizamos com as oferendas para Iemanjá", detalha.

Legenda: Reportagem de 1982 sobre a Festa de Iemanjá em Fortaleza
Foto: Diário do Nordeste

Filha de Manoel Rodrigues de Oliveira, fundador da primeira federação de umbanda no Ceará, Mãe Tecla se sente honrada com a missão de contribuir com a festa. Ocupar o espaço público tem relevância para evitar os olhares e comentários ofensivos.

"A intolerância religiosa acontece pela falta de conhecimento. Então, nós tentamos levar a nossa religião para os lugares para que as pessoas conheçam e acabem com a intolerância", analisa.

Essa mensagem é repassada pelas práticas culturais e, nesse sentido, nasceu o grupo cultural de percussão Afoxé Acabaca. Os participantes cantam, trocam olhares e sorrisos, e celebram a Rainha do Mar durante o evento.

Legenda: Membros ensaiam durante todo o ano para apresentação na Festa de Iemanjá e Carnaval
Foto: Ismael Soares

"Essa festa é sinônimo de inclusão, de diversidade e de luta antirracista. Tem todo esse simbolismo, que deve ser mantido, e nosso afoxé tem esse espírito de luta contra o preconceito", observa Ivaldo Paixão, 70, fundador do grupo.

São cerca de 30 membros fixos, mas os desfiles no Carnaval chegam a ter 400 integrantes. "O Poder Público tem que valorizar, porque um patrimônio imaterial, pode gerar até renda desde que seja parte da agenda da cidade", acrescenta.

Os passos dados para alcançar o respeito fizeram com que mais pessoas entrassem para o movimento nas últimas décadas, como avalia Mãe Mocinha de Oyá, 79, que participa desde a primeira edição da Festa de Iemanjá. Usando a guia de contas (colar símbolo de conexão espiritual), ela deixa evidente a gratidão.

Legenda: Mãe Mocinha participa desde a primeira edição da Festa de Iemanjá
Foto: Ismael Soares

"Eu participo desde a primeira, é uma tradição e Mãe Iemanjá nos abençoa, dá muita luz, muita força, coragem e disposição. Participo há 58 anos e espero ter mais tempo ainda", ressalta com a fala serena.

Ainda no dia anterior, Mãe Mocinha levou sua oferenda para as águas da Barra do Ceará num momento mais particular. Já na Festa de Iemanjá da Praia do Futuro, aproveita para acompanhar os terreiros e reencontrar as pessoas em meio a água salgada.

"O mar é sagrado e, para entrar, temos de pedir licença, eu saúdo Iemanjá e os orixás, caboclos e caboclas do mar, porque tudo tem dono. Para entrar na casa de Iemanjá é preciso pedir", conclui.

Barra do Ceará e o começo de uma história

Da mais tradicional à mais recente. A reportagem seguiu na última terça-feira (15) para a primeira Festa de Iemanjá de maior porte na Barra do Ceará, que foi realizada com apoio de terreiros da região. Em meio às barracas de praia, onde os paredões de som evidenciam um dia de feriado em Fortaleza, os religiosos fecharam um espaço dedicado à Rainha do Mar.

O quadrilátero com teto de palha ficou apertado com cerca de 300 participantes vestidos de forma caprichosa. A fumaça dos cachimbos, que representam uma conexão com o mundo espiritual, se espalha na frente do altar feito para a divindade, onde foram colocadas flores, pipoca e uma bacia com ervas.

Legenda: Festa na Barra do Ceará aconteceu numa barraca de praia
Foto: Ismael Soares

"Cada terreiro tem a sua forma de trabalho, a pipoca simboliza limpeza, descarrego e transformação. O banho com a bacia de 7 ervas, nós passamos nos participantes (como purificação)", explica Pai Alex de Ogum, à frente do evento.

Os participantes se abraçam e dançam em círculo enquanto cantam no ritual da gira. O ritmo dos tambores acelera e os passos acompanham a música. Nesse momento, algumas pessoas entram em contato com entidades conhecidas como povos da maresia, caboclos e pretos velhos. Um deles permanece de joelhos em reza.

Legenda: Homem reza durante ritual na Barra do Ceará
Foto: Ismael Soares

"Todo rito dentro da gira tem um fundamento e o cachimbo, dentro da umbanda, é o maior de abertura. É um portal, uma conexão com o sagrado", completa Pai Alex. Além disso, durante todo o ritual, os participantes se banham com perfume como símbolo de purificação.

São 15 terreiros reunidos para professar a fé no local onde vivem, como Pai Alex frisa. "Eu nasci aqui na região, a Barra do Ceará foi o primeiro bairro de Fortaleza, e nós quisemos fazer esse movimento, porque a praia era mal falada e que a festa não podia acontecer por várias questões".

Legenda: Religiosos comemoram graças e pedem bênçãos à Iemanjá
Foto: Ismael Soares

É a junção de todos os terreiros em prol da Festa de Iemanjá, estamos só começando e esperamos que no ano que vem possamos fazer uma festa maior. É a primeira de muitas
Pai Alex de Ogum
Organizador da Festa de Iemanjá na Barra do Ceará

A entrega de oferendas na Praia de Iracema

Na área extensa de areia no Aterro da Praia de Iracema aconteceu, neste ano, a 10ª edição da Festa de Iemanjá, onde diversos grupos realizam atividades culturais e espirituais e enchem o palco principal com oferendas. As batucadas e o pôr do sol formam o cenário antes da descida da multidão para levar os presentes até as águas ou à jangada em homenagem à divindade. 

Ao lado da família, com olhar atento, Emanoela Andrade, 11, aguardava o momento de participar pela segunda vez da festividade em Fortaleza. "Desde pequena eu ia para um terreiro de candomblé no Rio de Janeiro, minha mãe tinha comprado umas guias e eu disse que era filha de Iemanjá e Oxum", lembra sobre o momento em que sentiu a ligação.

Legenda: Emanoela aparece de vestido branco ao lado da mãe
Foto: Ismael Soares

A família preparou uma cesta com alimentos para presentear Iemanjá e, unida, admirava as ondas. "Além de ser minha mãe, eu sempre gostei de praia e é muito bonito estar no mar. Eu agradeço e sempre peço alguma coisa", descreve a menina.

Participando pela segunda vez, Bárbara Becco, 25, só agradeceu. "A presença na minha vida, o cuidado com a espiritualidade, os caminhos dados para conquistar coisas", lista. Junto dos amigos, ela preparou uma oferenda com sete rosas brancas e frutas verdes, como maçã, uva, melão, mamão, pêra e côco.

Legenda: Oferendas são lançadas no mar de Fortaleza
Foto: Ismael Soares

"Fizemos uma oferenda junto com a barquinha, subimos no palco, e somente o espumante estouramos no mar para que não descesse a garrafa inteira. Temos de ter uma consciência ecológica, porque a nossa Mãe nunca iria querer lixo na morada dos filhos", pontua.

Iemanjá dos rios para os mares

Iemanjá começou a ser cultuada no Rio Ogum, na Nigéria, como explica o antropólogo Jean dos Anjos, coordenador da pesquisa e inventário que tornou o evento patrimônio imaterial em Fortaleza.

“Na vinda da população negra que veio escravizada para o Brasil, o culto começa a ter um novo significado, e ela passa a ser cultuada a partir das águas salgadas”, detalha. Iemanjá é considerada a mãe de todas as entidades do mar. Por isso, pescadores da religião pedem permissão, proteção e um bom trabalho.

Mãe Júlia Barbosa Condante, uma mulher negra e filha de escravizada, com atuação política em Fortaleza, foi a responsável pela primeira organização da Festa de Iemanjá em Fortaleza.

Legenda: Jangada leva oferendas de Iemanjá para o mar
Foto: Ismael Soares

“Antes da federação nós já tínhamos essas práticas, algumas pessoas faziam festas na Barra do Ceará e no Mucuripe – sempre em lugares de difícil acesso”, detalha. A celebração representa também uma passagem no tempo, como avalia.

“As pessoas que cultuam vão para agradecer por todo o ano que passou e renovam sua fé para o ano que se segue. Na festa é quando acontece o ápice, o fechamento e a abertura de um novo ciclo”, conclui Jean.

Legenda: Grupos se organizam para celebrar a Rainha do Mar
Foto: Ismael Soares

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