Cadeia pública vira centro cultural e filhos de pescadores reveem pais em exposição imersiva no CE
Equipe reuniu fotografias, vestuários, ferramentas e maquetes feitas por trabalhadores artesanais do litoral
Uma pequena edificação de fachada azul e branca, onde, no século passado, funcionou uma cadeia pública, foi transformada em centro cultural onde dá para colocar os pés na areia da praia, ouvir o barulho das ondas e mergulhar na vida de pescadores que formaram a cidade de Paracuru, no Litoral Oeste, a 100 km de Fortaleza. Por lá, visitantes têm sido surpreendidos com fotografias antigas dos pais na exposição “O mar… Mulheres e homens”.
“Eu simplesmente passei, tive a curiosidade de ver, porque antes era uma cadeia. Quando eu me deparei com a foto foi difícil. Assim que entrei, vi que está bem nítida e reconheci meu pai. Toda vez me emociono”, lembra Maria Miré de Sousa, 64.
O pai, José Miré, aparece entre dois colegas da pesca com “a blusinha dele, que eu ainda tenho guardada”, como detalha a filha, mesmo após mais de 30 anos da partida dele. Como este retrato, outras fotografias, vestuário, ferramentas e réplicas reconstroem o passado da comunidade que tem o mar como fonte de sustento e de tradição.
O Diário do Nordeste visitou a exposição no Centro de Arte e Cultura Lúcio Damasceno, inaugurada no dia 28 de junho, e apresenta os detalhes nesta 2ª reportagem da série Mar de Leva e Traz, em que são entrelaçadas as memórias e os diferentes usos do litoral.
O especial multimídia integra o projeto Praia é Vida, promovido pelo Sistema Verdes Mares com foco na valorização e na sustentabilidade desse meio indispensável para múltiplas formas de vida.
Para Miré, a consciência disso veio cedo. Ainda criança, vivia no mar com as irmãs enquanto o pai pescava. Ficava curiosa com os conhecimentos dele sobre aquela imensidão de areia branca e água salgada.
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Ela não sabe como a fotografia dele foi parar no local, mas o registro foi feito em 1983, pouco antes de o pai morrer, pelo fotógrafo Miguel Hijjar. O profissional voltou 20 anos depois, em 2003, em busca de quem havia pousado para as suas lentes para refazer as fotografias. Outros exemplares do trabalho estão disponíveis nas salas.
Nascida e criada na cidade de praia, Miré também se vê em outras imagens de procissões feitas para São Pedro, padroeiro dos pescadores, das quais ela participa, que estampam as paredes da exposição.
“Mexe comigo, dá aquela saudade, quando eu perdi meu pai me sentia responsável pela família. Fiquei muito abalada com a morte dele, e até hoje quando eu lembro choro”, completa.
Angelo Tuzze, secretário do Turismo, Cultura e Meio Ambiente de Paracuru, contextualiza que “o prédio com um mês de inauguração já coleciona várias histórias”. Entre elas, a do pescador conhecido como Dida.
“O Dida chegou aqui e disse ‘cara, olha o pai, esse é o pai. Eu não tenho foto dele, vocês estão abertos quais dias?’”, lembra. Sempre que deixa a embarcação Magaly, e a saudade aperta, o pescador volta ao local.
“Quando eu sentir falta do meu pai, eu venho pra cá, olhar pra foto dele. Era um profissional do mar”, comenta olhando para o chamado Mestre Quim do Jagunço, na frente da Colônia de Pescadores Z-5 (hoje Z-15).
No primeiro mês, 3.625 pessoas assinaram o livro de visitas e, com tanto engajamento popular, outras ideias para o centro cultural já são cogitadas.
“Nós não sabíamos que ia mexer no brilho e no orgulho das pessoas, que vêm, trazem filhos e outras pessoas. O papel que era para gente fazer (de divulgação) a população é quem está fazendo”, pontua o secretário Angelo.
Ligação mar-população
Dona Miré lembra da admiração que tinha com o trabalho do pai e o domínio dele sobre o ambiente. “Papai, por que quando a Lua está ‘no meio do céu’ é hora de ir no curral de pesca?”, questionava.
Essa estrutura feita de madeira prende peixes que são coletados quando a maré baixa, como era feito por seu José, justamente na madrugada. Os currais de pesca, vale pontuar, estão retratados numa sala da exposição onde um dos pescadores construiu uma réplica do ambiente onde trabalha.
“Meu pai era praticamente do mar e da agricultura, fazia caçoeiras para pegar peixes grandes. Ninguém vendia peixe naquela época, ele salgava e a gente ficava comendo na família. Nós passávamos bem, nunca faltou peixe”, frisa.
Como nasceu a exposição
O prédio inaugurado por volta de 1912 foi uma cadeia pública até 2019, quando as atividades foram encerradas. Após algumas intervenções na estrutura, começou uma mobilização com artistas por parte da Secretaria da Cultura do Município.
O piso das salas foi coberto por areia de praia, e o som do mar ecoa pelos corredores. Isso ajuda a incluir pessoas com baixa visão, por exemplo, na experiência. As paredes exibem fotografias, pinturas e réplicas de embarcações reunidas pela equipe da cultura, além de itens doados por pescadores ativos e empresários. Imersão na história.
São cinco espaços: A Vila, Procissão, Colônia de Pescadores, Currais de Pesca e A Última Cela. Neste último, inclusive, ficou preservado o local onde estavam 8 detentos, em 2019, antes da desativação da cadeia. Logo na entrada, estão as primeiras fotografias feitas no local por John Benjamin Stone, em 1893, quando a cidade ainda era chamada Vila do Parazinho.
“No final do século XIX haveria o último eclipse solar que poderia ser observado de forma bacana de dois lugares do planeta: Senegal e Paracuru. Então, a Universidade de Oxford resolveu fazer a ‘Expedição do Sol’ e, com as fotos que ele fez aqui, voltou como fotógrafo renomado para a Inglaterra”, explica Angelo.
Ainda na abertura, há um poema de Antônio Sales, nascido em Paracuru. O poeta retratou um ponto histórico importante para a localidade: quando a mudança das dunas obrigou a população a mudar de local. Confira um trecho:
NINHO DESFEITO
A casa onde eu nasci, no Parazinho,
Já não existe mais;
Sou no mundo como a ave cujo ninho
Desmancharam os rudes temporais.
Não some o meu lar, mas toda a aldeia,
Pousada à beira-mar,
Já sepultada num lençol de areia
E ali ninguém jamais há de habitar.
A região muito ligada à pesca também desenvolveu conexão com São Pedro e, por isso, há uma sala dedicada exclusivamente à fé. Na mostra, contudo, há também um fato doloroso da história da cidade.
“Num domingo, 29 de junho de 1969, a embarcação virou quando estava voltando para cá com 60 pessoas a bordo, e duas meninas faleceram nessa situação. Desde então, a procissão não foi mais para a risca (ponto onde se vê só o horizonte)”, pontua Angelo.
O secretário acrescenta que a colônia de pescadores de Paracuru foi tão fortalecida que havia escolas e unidades de saúde voltadas apenas aos membros dela. Por meio da arte, esses detalhes repercutem na população.
A preservação da história é algo fundamental, porque se a gente não sabe de onde a gente veio, a gente também não sabe para onde a gente vai. Isso é um fato. As pessoas têm de ter orgulho de dizer que são originários daqui e saber contar a história
Serviço
Endereço: Exposição ao lado da Prefeitura de Paracuru, Avenida Coronel Meireles, nº 7, Centro.
Funcionamento: Segunda a sexta-feira - 8h às 12h e de quinta a domingo - 17 às 21h.