'Mar de leva e traz': comunidades do CE mantêm memória e tradições com danças à beira-mar
O Diário do Nordeste inicia hoje a série de reportagens 'Mar de leva e traz' que vai falar sobre o impacto do oceano em setores como cultura, saúde educação
Um batuque que ora disputa, ora se conecta aos barulhos das ondas do mar. Vozes que se abraçam. Uma dança ancestral, que com o passar dos tempos, tanto revolucionou quanto passou por transformações que a fizeram chegar ao novo século como mais uma das manifestações culturais que mantêm viva a memória de comunidades cravadas em territórios à beira-mar.
Uma tradição centenária que, acreditam historiadores, tem origem nas ancestralidades negras e indígenas do Nordeste. E atravessa caminhos e gerações contando, cantando e dançando histórias por meio de letras, passos e ritmos que misturam hoje e ontem. É tudo isso, e muito mais, a Dança do Coco. Um costume que ainda se perpetua e passa de pais para filhos em cidades do litoral cearense como São Gonçalo do Amarante e Paracuru.
Francisco Braga Mendes, o Mestre Assis, conhece bem isso. Aos 94 anos, ainda canta as letras que aprendeu com o pai pescador e, mesmo sem saber ler, trabalha em prol das palavras. “É bonita a brincadeira, é divertida, e nós temos que levar para frente. Enquanto eu tiver vida, ensino as poesias, os cânticos e as emboladas”, se prontifica.
Ritmo forte. História viva. Cenário hipnotizante. Não faltam motivos para dizer: todo cearense precisa conhecer a Dança do Coco, retratada nesta 1ª reportagem da série Mar de Leva e Traz, em que o Diário do Nordeste entrelaça as memórias e os diferentes usos do litoral. O especial multimídia integra o projeto Praia é Vida, promovido pelo Sistema Verdes Mares com foco na valorização e na sustentabilidade desse meio indispensável para múltiplas formas de vida.
A série Mar de Leva e Traz, parte do projeto Praia é Vida, vai mostrar, a partir de hoje, e nas próximas semanas, que, assim como as ondas vão e vêm, as águas do oceano levam e também nos devolvem vários elementos que complementam nossa história, com reflexos em áreas como a cultura, saúde, educação, etc. Para esta primeira matéria, o Diário do Nordeste viajou a duas comunidades litorâneas do Ceará para vivenciar a experiência da Dança do Coco, assim como as representações políticas e históricas a elas ligadas.
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Ao longo das visitas, a reportagem se deparou com essa mistura de lutas e avanços que tem como cenário a Dança do Coco: a presença de mulheres nas rodas, já que tempos atrás a manifestação permitia apenas homens nas reuniões, assim como a valorização de idosos que, de forma oral, disseminam a tradição entre todas as idades. Em algumas das letras de músicas, também encontramos essas referências:
Antigamente diziam 'mulher não pode cantar
Ela é dona de casa, ela tem que cozinhar'
Quem foi que disse, menino, que mulher não pode cantar?
Hoje tudo mudou, a mulher pode até jogar
Viajar para a Lua, dirigir e trabalhar
Quem foi que disse, menino, que mulher não pode embolar?
As emboladas do Pecém
Quem comanda a embolada no grupo Dança do Coco do Pecém é o Mestre Assis. Os primeiros passos na tradição aconteceram aos 10 anos, mas ainda hoje encontra disposição para não sair do meio. “Eu não sei ler, mas coloquei tudo na cabeça e sei das emboladas. Se me chamam para apresentações, vou na hora”, completa.
Mestre Assis encerra a apresentação feita durante a reportagem com o improviso: “A garganta tá seca não dá mais pra embolar”, disse entre risadas.
Como uma tradição de mais de 100 anos, a comunidade do Pecém, localizada na cidade de São Gonçalo do Amarante, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), realiza ensaios aos domingos e apresenta a dança em eventos e festas regionais.
A dança do Coco funciona de maneiras diferentes a depender do grupo, mas no Pecém é assim: as pessoas formam meio círculo, um vai para o centro e convida alguém para começar a dinâmica. Os movimentos com as pernas são rápidos e ensaiam pulos.
Os ensaios acontecem numa barraca de praia e as danças são feitas no calçadão paralelo para facilitar a participação dos idosos, que representam uma boa parte do grupo.
Adriana Lima, atual coordenadora do grupo, foi quem recebeu a missão de ajudar Mestre Assis nas emboladas. “Eu comecei a cantar porque o mestre tem 94 anos, é o único embolador e sente a necessidade de alguém para cantar com ele. Estreei cantando no evento do Povos do Mar”, lembra.
Além de dar voz aos cantos antigos, a coordenadora escreve sobre o que observa da realidade contemporânea. “Estamos dando importância tanto para as polêmicas atuais da mulher no mercado de trabalho quanto para as histórias do Pecém. Temos que falar do presente, mas sem esquecer da nossa história”, exemplifica.
Outro tema emergente é o da sustentabilidade. Entre letras e atividades, o grupo evita a poluição da praia e do mar, onde o plástico prejudica a vida marinha. “Nós fazemos oficinas com garrafas que iriam para o lixo e viram brinquedos, tentamos resgatar o cuidado com a natureza”, completa Adriana.
Aqui tem pai, avô, neto, primos, várias gerações juntas, eu acho tudo isso muito bonito e gostaria muito que isso continuasse. Por isso que estou à frente, puxo a orelha deles para não deixar acabar a tradição.
Se depender de Pedrina Miranda, 51, não acaba. Ela se empolga com os vídeos do avô dançando e destaca o título de Rainha do Coco que a irmã ocupou para mostrar os vínculos com a tradição.
“Eu sou apaixonada pela dança, acho que está no sangue, me faz muito bem, me solto. Quando estou dançando, apesar de ter pouca gente olhando, me sinto numa plateia para muita gente”, descreve sobre a felicidade fácil de notar.
É Pedrina quem estende a mão para mim, durante a reportagem em que me mantive do lado da caixa de som, dividido entre anotar observações e bater palma, e me faz dançar junto.
“Tem muito jovem que tem vergonha e eu queria ver – como eu que vi a tradição vindo dos meus avós – isso passando para os meus filhos”, conclui.
Mestre Miranda, 81, é presença certa nos encontros do grupo de Dança do Coco do Pecém, que acontecem aos domingos, numa barraca onde o Sol de fim de tarde ilumina os cerca de 25 participantes. Caixa de som, tambor, triângulo e camisas brancas são marca do grupo.
“Hoje a gente dança de sapato e tudo, mas antigamente era com tamanco de amburana, de longe a gente ouvia os estralados, não era como hoje que tem até farda. Quando era dia de domingo, os pescadores não iam para o mar, se reuniam para essa brincadeira”, lembra.
Aprendendo o batucado do Paracuru
Ao seguir no Litoral Oeste por cerca de 50 km, no Paracuru, pode-se observar um coletivo de danças que nasceu para resgatar tradições – com referências do Coco, da ciranda e do ijexá: o Batuquê de Praia.
Imagine aquela praia, famosa pela tradição do carnaval, ocupada por um time infantil de futebol e por banhistas numa tarde de julho, perto do pôr do Sol. No espaço compartilhado, os tambores, agogô, caracaxá, ganzá e xequerê atraem os olhares.
“Eram mais mulheres, mas temos meninos mais jovens que vieram agregar com o canto, com a musicalidade deles. Estamos estudando o que é nosso, sentamos com os nossos familiares para manter vivo o que é nosso”, conta a compositora Neila Rocha, 37, sobre a formação do grupo.
Os participantes se conheceram em 2018 durante um curso de instrumentos no qual o “trabalho final” era fazer uma apresentação no Carnaval. Desde então, não deixaram a batucada acabar. São 15 membros, reunidos nas noites de sexta-feira.
A representante do coletivo Ariadyne Luz, 45, frisa que nem o isolamento da pandemia foi capaz de diminuir a animação. Durante o período, fizeram encontros virtuais e retomaram as atividades para um evento.
“Outra coisa que nos liga muito, além da percussão, é a nossa paixão pela praia e o mar. Inclusive, temos filhos de pescadores no grupo e conversamos sobre um repertório para o Dia de São Pedro”, acrescenta.
O mar representa a nossa identidade, quando a gente senta para conversar parte das memórias de quem já nasceu aqui tem um vínculo muito forte com o mundo da pesca. Quem não é daqui, tem relação com outros mares, seja no esporte, contemplação ou lazer
Neila faz parte da comunidade desde o nascimento e cresceu ouvindo o pai falar sobre o trabalho no mar e o zelo pelo ambiente de onde retirava o sustento. Com a missão de escrever músicas para o grupo, foi estudar referências no Coco da Volta Redonda.
“Sou filha de pescador, tentei fazer uma homenagem ao meu pai fazendo uma música que fala dos mais de 30 peixes da costa do Paracuru. Tem cioba, cavala, mariquita, camuri, xira, xaréu, pescado, baiacu, camurupim, tem sardinha, cangulo, carapeba, pirambu, serra e bonito no mar do Paracuru”, lista assim, com uma rapidez impossível de anotar e difícil de transcrever da gravação.
É muito natural essa conexão com a natureza e a manutenção das tradições, porque os povos tradicionais procuram manter as vivências de muito tempo. O cuidado com o mar, com a mata da Santa Rosa, para se preservar porque dali se retira o sustento
Já Hugo Stehle cruzou o oceano até encontrar nas areias do Paracuru uma oportunidade de conhecer a cultura nordestina e estar ao lado da namorada. "Aqui eu conheço pessoas e, normalmente, isso é muito complicado para estrangeiros. É perfeito", resume com sotaque e timidez na voz que não o impedem de pertencer.
Para o grupo, ele é o “alemão mais paracuruense que existe”. Tanto o é que ele confeccionou um dos instrumentos usados nas apresentações. “Para mim é muito interessante porque eu nunca tinha participado, não sabia como funcionava, mas agora estou aqui", finaliza.
Preservação das danças
Resultados da influência indígena, africana e europeia, as danças tradicionais foram incorporadas por pescadores num período em que não havia iluminação pública ou acesso fácil à televisão, como explica Camila Farias, doutora em sociologia e pesquisadora da dança do Coco.
"Dançavam para se divertir, para celebrar a volta do mar e que a comunidade tinha comida. Então, a dança parecia possuir uma característica ritualística de separar o tempo do trabalho e da brincadeira", detalha.
Camila estuda as danças tradicionais, como foco no Coco, desde a graduação e explica que o estilo no litoral já era forte há mais de 100 anos.
"Encontrei reportagens sobre a década de 1920 enaltecendo a dança como uma prática que remete à identidade cearense, por essa ligação forte com a praia", detalha.
Os grupos estão localizados no litoral, do Leste ao Oeste, em várias comunidades, inclusive, em Fortaleza. Os temas variam conforme a realidade de cada território, mas falam da conexão com a natureza e do amor romântico.
"Muitos contam que eles começaram a dançar porque não existiam outras brincadeiras, não tinha luz nas comunidades, televisão e celular muito menos. Sempre existia uma pessoa que sabia dançar e acabava ensinando para os pescadores", acrescenta.
Em meio às transformações, os grupos resistem para manter as memórias familiares e comunitárias, além de fortalecer os vínculos com o ambiente de mar.
"Dançar o Coco sempre está muito forte à identidade, faz parte da história, remete à ancestralidade. Os modos tradicionais de vida precisam ser valorizados e todos somos responsáveis pela preservação do meio ambiente", conclui.