Café no alpendre e celular off: como é se hospedar em comunidades de pescadores em praias do Ceará
Interação com os nativos, a natureza e a história dos povos litorâneos constrói um turismo sustentável e imerso em experiências
O som do mar ao longe. Uma TV ligada em alguma casa ali perto. O barulho de chuva que as palhas dos coqueiros imitam. Na porta ao lado, toca Alceu. De repente, uma bandeja com café e grude de goma surge na mesa. É fim de tarde na Prainha do Canto Verde, em Beberibe, no Ceará.
Recanto de sossego, a comunidade formada totalmente por nativos não recebe "turistas": só "visitantes". O foco é perpetuar a história do local, se conectar e preservar a natureza, e interagir com o outro – pilares do que se define como turismo comunitário.
A “Prainha”, como os moradores chamam com carinho, foi um dos destinos que visitamos na 6ª reportagem da série Ceará, Rotas de Amar, para mostrar a prática de um turismo que foge do agito típico dos destinos litorâneos do Estado.
O especial multimídia integra o projeto Praia é Vida, promovido pelo Sistema Verdes Mares com foco na valorização e na sustentabilidade desse meio indispensável para múltiplas formas de vida.
Veja também
Fogueira e peixe assado
Antes de ir à Prainha, saímos de Fortaleza rumo ao município vizinho de Aquiraz. Menos de 60 km via CE-040 nos separam de uma reserva extrativista (resex) à beira mar: a Praia do Batoque.
Por lá, tínhamos encontro marcado com quem dá nome a morro, lagoa e até rua da comunidade: Maria Odete de Carvalho Martins. Ou apenas “dona Odete”. Dos 60 anos de vida, a marisqueira já finca raízes no Batoque há 39.
Enquanto vive da água de rios e manguezais, o marido agricultor extrai da terra o que acompanha o peixe no prato. O complemento da renda, porém, vem de uma atividade de nome simples, mas rica em sentido: o turismo comunitário.
Foi por meio da luta contra a especulação imobiliária que Odete se tornou conhecida e decidiu acatar o conselho da Rede Cearense de Turismo Comunitário (Rede Tucum): desfrutar da própria terra.
Daí veio a ideia de abrir as portas da própria casa, uma construção singela à beira da lagoa e cercada por pés de frutas, para receber hóspedes. Nesse embalo, poderia contar a todo mundo sobre o Batoque. Fazer fogueira, peixe e batata assados. Amizades.
Tenho minha casa e alugo nos feriados e fins de semana há mais ou menos 20 anos. E aí fico na casa de um filho, um vizinho. Já veio gente de todo canto! Tenho amizade em outros estados até hoje.
O contato com o anfitrião é, aliás, um dos marcos dessa modalidade de turismo. Se numa pousada convencional o máximo com quem se conversa é com profissionais da recepção, numa hospedagem familiar é possível conhecer as raízes, dos donos aos filhos.
“Hoje, no Batoque, são 16 barracas: todos são nativos. Nos outros cantos, a maioria é gringo. Em outros lugares, não é o nativo que tá fazendo o turismo, passando a história dele pra ser divulgada lá fora. É gente de fora”, pontua Odete.
Para acessar essa história, o visitante tem à disposição trilhas ecológicas pela praia, passeios a lagoas e ao manguezal para conhecer técnicas de pesca, visita às plantações cultivadas pela família de Odete e caminhada pelas barracas tradicionais da orla.
A reserva para se hospedar na “Casa da Odete” é feita pelo WhatsApp, diretamente com ela. É possível levar compras e cozinhar as próprias refeições, já que há poucas opções de restaurantes após o almoço – ou combinar para a anfitriã providenciar tudo, por um valor à parte.
Como se estivesse em casa
Numa tentativa de situar o Batoque, quem também nos ajuda é Aldenia Lourenço, nascida e criada lá há 48 anos. “A comunidade recebe quem vem pra cá como quem vem visitar nossa casa. É como um grande condomínio, todo mundo se conhece”, compara.
Nessa alegoria, ela tem um papel claro: é a síndica a quem todo mundo recorre.
Marisqueira, filha e esposa de pescadores, Aldenia fundou a Associação dos Pescadores e Marisqueiras da Resex Batoque, na tentativa de garantir direitos. Hoje, zela pela comunidade e conduz turistas-visitantes a experiências ricas de partilha.
“Aqui, o turista come a comida feita pelas mulheres de pescadores. Baião de dois, peixe, camarão, tudo aqui da comunidade, do mar. Pra mim, o mar é tudo. É uma sobrevivência. O símbolo da nossa ligação com a natureza”, orgulha-se.
Esse laço forte com as águas salgadas também está presente em cada ruela pé-na-areia de outra reserva cearense: a Prainha do Canto Verde, onde chegamos após 1 hora de viagem partindo do Batoque. De Fortaleza, a viagem dura cerca de 2h.
Quem nos recebe é Francinete Beserra, 39, que construiu com o marido, Antonio Carlos Lima, 48, uma das hospedagens mais próximas do mar na região: o Chalé Coqueiral, cujos quartos ficam lado a lado com o lar do casal.
É na rede da varanda, com o mar de testemunha e o sinal de celular nulo para qualquer operadora, que nossa conversa se desenrola. Durante nossa estadia de dois dias, a cena se repetiria toda tardinha.
“O objetivo do turismo comunitário é essa vivência: tanto a gente ouve a experiência de quem vem da cidade como as pessoas conhecem a nossa história e a nossa vida aqui”, inicia Carlos.
Ele e a família já integram o movimento pela preservação da essência nativa da Prainha desde a década de 1980, mas só em 2010 fizeram dos quartos de casa hospedagens. “Era piso batido, cama e banheiro, bem simples. E aí fomos melhorando”, ele relembra.
Você já sai da cidade vivendo dentro de um apartamento, quando chega aqui pode viver a nossa simplicidade. Às vezes, a pessoa quer que o hotel ou pousada tenha uma piscina. É legal, mas poxa, você deixa de ir à praia, fazer uma caminhada, pra se trancar numa piscina? O mar é a melhor piscina!
O chalé para 2 pessoas é simples, mas confortável, com cama de casal, ventilador, frigobar e banheiro, além de uma varanda com sofá e rede sempre armada. Há ainda quartos maiores, com mais cômodos e cozinha equipada, ideal para famílias e grupos. Todos são isolados da casa principal, com entrada privativa.
De uma forma ou de outra, Francinete, Carlos e a pequena Madu, filha deles, estão sempre por perto, prontos para papear. “A grande diferença do turismo comunitário para o de massa é essa conversa que estamos tendo aqui”, resume Carlos, conhecido por lá como “Totonho”.
Além da praia em si, é possível fazer trilhas, visitar o centro comunitário, participar de rodas de conversa sobre o Canto Verde e ouvir cirandas que contam a história de quem viveu e vive ali – como as compostas, tocadas e cantadas por Roberto, irmão de Carlos, que nos presenteia com voz e violão no nosso último pôr-do-sol por lá.
“Canto Verde, és a joia mais rara / Esplendor desta terra de luz / Teu fulgor a nenhum se compara / Tens encanto e a todos seduz…”
Nada 5 estrelas
É preciso reforçar: quem visita o Canto Verde não vai encontrar luxo. Além das acomodações simples, o estilo de vida segue esse padrão. Não há grandes restaurantes ou lanchonetes, então a dica é combinar as refeições com antecedência junto às pousadas ou levar alimentação.
Não é por falta de desenvolvimento: é por opção. A ideia não é lotar a comunidade de turistas, como explica a artesã Aila Fernandes, 59. “Não queremos o turismo de massa, mas o comunitário, que beneficia a comunidade. Não queremos perder nossa essência de uma prainha de nativos”.
Ela chegou à Prainha aos 7 anos de idade, e presenciou o turismo comunitário se desenhar e contribuir para que serviços essenciais – como saúde, educação e direito à moradia – se desenvolvessem lá.
“Um suíço chegou à comunidade há uns 30 anos, se apaixonou pela Prainha, pediu permissão para comprar uma casinha aqui e aceitamos. Ele viu nossas necessidades e trouxe projetos importantes. A partir disso, muita gente do estrangeiro passou a vir”, relembra.
Minha casa era grande, e sempre abria a exceção pras visitas ficarem aqui. Daí surgiu a necessidade de ter acomodações, e fomos ampliando. Hoje, nossa Pousada Sol e Mar tem 10 quartos.
O estabelecimento foi erguido por ela e pelo marido, integrado à casa. Os quartos seguem uma identidade regional, e contam com cama, TV, ventilador ou ar-condicionado e uma vista do mar verde e preservado da região.
Numa tarde pacata e com barulho só do mar, com redes se esticando nas salas e varandas após o almoço, o sorriso terno de Aila nos arremata com um pensamento final. “Se você quer um hotel 5 estrelas, nunca vai procurar a Prainha. Aqui é um turismo simples. Nossa prioridade é o laço com quem vem.”
Serviço
Praia do Batoque (Aquiraz)
Hospedagem na Casa da Odete
- Hospedagem para 2 pessoas de sexta a domingo: R$ 400 (a casa toda).
- Hospedagem para 2 pessoas com café da manhã: R$ 100 (diária).
Atrações
- Trilha do Rio Boa Vista: 1 km pela areia. R$ 5 por pessoa, com guia local.
- Trilha do Rio Marisco: 2 km pela areia. R$ 10 por pessoa, com guia local.
- Passeio da pesca (grupo de até 20 pessoas): R$ 150. Valor para casal a combinar.
Prainha do Canto Verde (Beberibe)
Hospedagens
- Chalé Coqueiral – Contato: (85) 98108-0113
- Pousada Sol e Mar – Contato: (85) 99621-1668
Atrações
- Trilha da Lagoa do Córrego do Sal: cerca de 25 minutos de caminhada pela praia. R$ 70 até 4 pessoas.
- Trilha pela Comunidade: conhecendo pontos turísticos e históricos do Canto Verde. R$ 60 até 4 pessoas.
- Passeios de jangada e buggy: a combinar com pousadas.
Mais informações sobre turismo comunitário no Ceará: redetucum.org.br.
Na próxima reportagem do especial Praia é Vida, contaremos as histórias de mulheres nativas de Icapuí, no Ceará, que transformam algas marinhas em produtos de higiene pessoal, pratos culinários e, além de tudo, em sustento.
Veja também