Às quartas ouvimos brega: Boteco Cultural da Angela une vinis e boemia em noite dedicada ao gênero

Localizado no bairro José Bonifácio, em Fortaleza, recanto tem atraído públicos de diferentes gerações cujo desejo é entrar no túnel do tempo musical e por lá ficar

Escrito por
Diego Barbosa diego.barbosa@svm.com.br
(Atualizado às 11:13)
Na imagem, DJ Diego Penaforte no Boteco Cultural da Angela
Legenda: DJ Diego Penaforte é idealizador da noite do brega no Boteco Cultural da Angela, com sucessos de Diana a Reginaldo Rossi
Foto: Ismael Soares

Seus avós escutam, seus pais também, você muito provavelmente. O brega se instala na gente, faz morada. Um cantinho de Fortaleza tem levado isso a sério ao investir em uma programação na qual esse lendário gênero musical é protagonista. É o Boteco Cultural da Angela, cujas quartas-feiras têm se tornado o dia oficial do brega na cidade.

Localizado no bairro José Bonifácio, o bar funciona há mais de uma década, mas apenas em janeiro deste ano inaugurou esse novo momento no roteiro de atividades. Tem dado certo: além do espaço da casa, dezenas de pessoas ocupam a Rua Carlos Gomes com copo na mão e gogó em dia para celebrar alguns dos maiores clássicos da música brasileira.

Sucessos de Diana, Odair José, Reginaldo Rossi, Roberto Carlos, entre outros titãs do brega, unem gente, bebida e sentimentos em prol das boas recordações e de um tempo que, embora não volte mais, ainda parece estar aqui. A nostalgia se estende, inclusive, para a própria dinâmica da discotecagem – ou será que começa nela?

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Todo o repertório chega aos ouvidos do público por meio de discos de vinil. Um após outro, eles se revezam nas mãos do DJ Diego Penaforte, idealizador do instante e curador das músicas. O resultado são três horas e meia de canções e emoções para vivenciar. “Trago de 90 a 100 vinis, fora os compactos e mais alguns por fora”, diz o DJ.

“Temos grandes clássicos eternos do brega – que são muitos – e eles não podem ficar de fora. Procuro mesclá-los com novas descobertas minhas, incluindo músicas de cantores famosos, mas que não fizeram sucesso. Há uma resposta legal de primeira porque enxergo um potencial nessas músicas”. Vendo de pertinho, a teoria se confirma.

Na imagem, disco de vinil no Boteco Cultural da Angela
Legenda: Na contramão da seleção digital, DJ Diego Penaforte utiliza discos de vinil para reproduzir os clássicos do brega
Foto: Ismael Soares

A cada edição, não é raro presenciar gritos apaixonados e danças efusivas dos presentes, num embalo bonito e contagiante. A boa notícia é que o ambiente do boteco favorece essa atmosfera. O piso quadriculado ganha um charme extra com luzes coloridas, e há detalhes atrativos das portas dos banheiros ao lugar de onde saem as comidas.

Para Penaforte, tudo brilha. “O brega é uma música intrinsecamente popular, de massa, e acho que isso acaba suscitando nas pessoas muitos sentimentos bons – mesmo aqueles associados à melancolia abrem espaço para alegria, liberdade, felicidade, saudade… É uma música muito fácil, leve de ser consumida e que, para além disso, congrega muitas pessoas que possivelmente não se encontrariam em outros ambientes”.

Como tudo começou

Proprietária do boteco que antes levava outro nome – durante anos foi conhecido como Boteco do Arlindo – Angela Sena conta como o brega se instalou na casa e ganhou tentáculos. Segundo ela, foi o próprio Diego Penaforte quem sugeriu a iniciativa, concebida a partir do projeto “Cotovelos - Bregas & Outras Fossas”, desenvolvido por ele.

“A gente sempre abre espaço para pessoas da área da cultura, então resolvemos dar uma oportunidade a ele. Começamos em janeiro, e foi indo, devagarinho. De repente, a coisa deu certo. Está sendo uma ótima parceria”, celebra a empresária, satisfeita por ter contato com um trabalho cuidadoso. O DJ, de fato, investe energia, pesquisa e estudo no processo, elementos que se refletem na total adesão do público.

Na imagem, fachada do Boteco Cultural da Angela
Legenda: Boteco Cultural da Angela se tornou point de jovens adultos e outras gerações às quartas-feiras
Foto: Ismael Soares

Ele pondera que sempre houve uma demanda muito grande de apreciadores da música brega em Fortaleza e no Ceará, mas a oferta estava dormente. “Acontece de esse tipo de música tocar naturalmente em botequins e bares de esquina, mas não existiam projetos organizados por DJs ou algo parecido. Hoje estamos com algumas ações semelhantes envolvendo outros DJs pela cidade, e até bandas dedicadas a tocar somente música brega”.

No caso específico dele, as canções não são pré-selecionadas. Tudo acontece de forma orgânica, em consonância com o próprio espírito do artista em cada noite e a energia da turma. Surgem muitos pedidos de música, claro, mas Diego tenta tocar quando possível – afinal, é importante manter a linha curatorial de cada edição e também saber se a canção está disponível nos vinis levados por ele.

Na imagem, público do Boteco Cultural da Angela
Legenda: Apesar de gostar de brega apenas aos 18 anos idade, hoje o DJ Diego Penaforte faz a festa de dezenas de pessoas no Boteco Cultural da Angela
Foto: Ismael Soares

No fim das contas, cada passo é fruto de um amor cultivado aos poucos. Penaforte nem sempre foi do brega, mas aprendeu a gostar por volta dos 18 anos de idade a partir do gosto musical da mãe. Após a fase de rock na adolescência – e de, confessa, certo elitismo cultural – ele de repente se viu naturalmente apreciando aquele som antigo, mas muito bem feito.

“Fui começando a escutar e sentir de outra maneira, prestar atenção não só nas letras, mas também nas melodias – que eu acho riquíssimas. Muitas são super orquestradas e, mesmo as bagaceiras, também comecei a curtir e olhar com outros olhos”.

Origens e ressonâncias do brega

Essa atração pelo gênero musical é justificada. Professor da Universidade Federal do Ceará, Filipe Ximenes explica que o brega é totalmente brasileiro, com raízes na cultura popular do Norte e do Nordeste. Apesar de a origem exata ser complexa de afirmar, é possível traçar um surgimento e consolidação dele entre as décadas de 1950 e 1970. 

“O termo ‘brega’ inicialmente era usado de forma pejorativa para designar algo considerado de mau gosto, cafona ou exagerado, tanto na estética quanto no conteúdo emocional. A música brega emergiu com artistas que falavam diretamente das dores do amor, da traição e da saudade. Temas mais emocionais e, às vezes, em tom dramático”, dimensiona.

Na imagem, disco de vinil de brega no Boteco Cultural da Angela
Legenda: Segundo especialista, o brega é totalmente brasileiro, com raízes na cultura popular do Norte e do Nordeste.
Foto: Ismael Soares

Por sinal, o brega como conhecemos no país – com estética, temática e musicalidade específicas – é tipicamente brasileiro. No entanto, há gêneros semelhantes em outros países latino-americanos que compartilham o apelo popular e o tom sentimental, a exemplo das baladas românticas no México; a música romântica latina dos anos 1970 e 1980, e o bolero na Argentina. Ao mesmo tempo, a respeito da sonoridade, há mais coisas em jogo.

O brega não possui uma estrutura musical rígida, de acordo com Filipe. Mas alguns traços comuns se encontram na instrumentação – que, em geral, conta com guitarra, baixo, bateria, teclado, trompete e trombone. “As melodias são repetitivas e envolventes, além do reforço de solos melódicos que enfatizam o drama das composições”, contextualiza.

“Recentemente, a banda sinfônica da UFC fez um concerto com músicas bregas. Ele aconteceu no Teatro Brasil Tropical, e foi possível observar o envolvimento do público e a emoção. Repetiremos algo similar, contemplando algumas músicas do brega, além de outras do repertório brasileiro no dia 31, no Cineteatro São Luiz”.

Adesão do público jovem

Quanto ao curioso fato de jovens adultos apreciarem brega clássico – a partir de canções que muitas vezes foram lançadas antes mesmo de eles nascerem, feito encontrado em espaços como o Boteco Cultural da Angela – Filipe é claro: diz respeito ao componente cíclico da cultura popular. “Gêneros musicais e estéticas considerados ultrapassados, muitas vezes retornam com força em novas gerações, que os reinterpretam sob outra ótica”.

Para ele, existe um movimento com possibilidade de também ser influenciado pelo círculo familiar. Muitos jovens cresceram ouvindo essas músicas em casa, com pais, avós e tios. Assim, a escuta ganha um valor afetivo, associando-se a memórias familiares, festas, viagens e momentos de infância.

Na imagem, público dançando brega no Boteco Cultural da Angela
Legenda: Cativo, público entre 25 e 40 anos de idade lota as noites de brega no Boteco Cultural da Angela
Foto: Ismael Soares

“Outro fator importante, e de grande impacto nos dias atuais, são as redes sociais. Algumas plataformas como YouTube, TikTok e Spotify vêm promovendo uma redescoberta do brega”, analisa. “É um gênero que se atualiza. Atualmente podemos observar a fusão dele com outros estilos, como pop, funk, arrocha e eletrônico”.

Por sua vez, levando em conta os bregas atuais, é possível elencar artistas que seguem a vertente do apelo sentimental. A banda “Conde só brega” é destaque por incorporar roupagem musical bastante incorporada ao estilo brega. Zé Vaqueiro também bebe da fonte do gênero e do romantismo característico desse som.

O brega segue

A perspectiva, assim, é de que o brega resista e ganhe cada vez mais adeptos. No que depender de Angela Sena, isso é fato. “A programação do Boteco Cultural da Angela já está consolidada, abrindo esse espaço para o brega, mas também para a música eletrônica, o samba, a MPB, o pop e o forró. Queremos reunir cada vez mais gente”, vibra.

Alia-se a esse roteiro musical um cardápio variado de delícias regionais – de panelada e bolinho de feijoada a arrumadinho e suíno com fritas – e o futuro parece ser o melhor possível. Diego Penaforte igualmente brada: “Pretendo ficar aqui muitos anos. É a casa do projeto, me encontrei aqui, já tem um público massa, a parceria com a Angela é muito boa”.

Na imagem, movimentação no Boteco Cultural da Angela em noites de brega
Legenda: De cima para baixo: Angela Sena, proprietária do boteco; suíno com fritas, um dos carros-chefes da casa; e o movimento do bar em dias de brega
Foto: Ismael Soares

E adianta: “Mas o projeto também está aberto a circular em outros espaços e praças – inclusive, já fiz participação levando o nome da ação em outras iniciativas de brega. Quarta-feira aqui na Angela, porém, é sagrado”.

Nesse bar-pracinha do José Bonifácio, onde todos se conhecem e se cumprimentam, o som de avós, pais e filhos une fios e estica magias. Permanece. “Todo mundo se sente bem, aconchegado e livre aqui. É o próprio espírito do brega, tudo acaba se encontrando”.


Serviço
Brega no Boteco Cultural da Angela
Às quartas-feiras, a partir das 19h. Endereço: Rua Carlos Gomes, 83, José Bonifácio. Mais informações nas redes sociais do boteco

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