Ao ar livre, de madrugada e no fogareiro: 15 anos de sucesso do Caldeirão da Panelada em Fortaleza
Há 15 anos no bairro Bonsucesso, estabelecimento funciona praticamente de forma improvisada e reserva à clientela preço acessível, atendimento facilitado e cardápio totalmente regional

É uma grande lona azul estendida na altura do número 1787 da Avenida Augusto dos Anjos. Improvisada, parece qualquer lugar. A surpresa está sob a capa: infinidade de mesas e cadeiras, dezenas de panelas fumegando e um cheiro todo próprio de comida boa. Bem-vindos ao Caldeirão da Panelada, sucesso no bairro Bonsucesso e cada vez mais famoso em toda a Fortaleza. Motivos para isso não faltam.
Com funcionamento ao ar livre, expediente durante a madrugada e cozimento aos moldes tradicionais do interior cearense, o ponto faz a festa sobretudo de quem aprecia um cardápio totalmente regional. Além da iguaria que nomeia o empreendimento, é possível encontrar por lá carne de porco, carneiro, frango, língua, mocotó, mão de vaca, sarrabulho e buchada. E o melhor: servidos daquele jeitinho que a gente gosta, bem de casa.
“Começamos servindo 10 quilos de arroz todo fim de semana. Várias vezes pensamos em desistir porque não dava, era muito trabalho e poucos clientes… Mas insistimos. Hoje vendemos 250 quilos de arroz e 300 quilos de panelada de quinta a domingo – tudo isso fruto de persistência e perseverança”, conta a proprietária, Cyntia Martins Campos, 35.
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Ela e mais 14 pessoas se revezam entre pratos, talheres e panelões colossais a fim de servir as centenas de pessoas que passam diariamente pelo negócio. Gente que chega seja para o café da manhã, o almoço, o jantar ou para aquela refeição reforçada antes ou depois de cair na gandaia. Esta última fatia da clientela, por sinal, é a que mais dá retorno financeiro ao lugar.
“Às 2h da manhã, por exemplo, tem muita gente aqui, principalmente o pessoal que vem de festas. Meu público da madrugada é assim”, Cyntia comemora. “Já é tradição, desde o começo foi desse jeito. E dá muito retorno, o pessoal vem mesmo”. Nossa equipe experimentou dois dos nove pratos servidos no ponto e, de fato, o sucesso é justificado.
Com porções generosas de arroz, feijão, macarrão, cuscuz e cheiro verde, os pratos servidos no Caldeirão levam pouco sal e têm sabor apurado – o cozimento no fogareiro é a principal razão para isso. Soma-se o fato de toda a comida ser feita na hora e ter rapadura como sobremesa, e temos um recanto no qual o melhor da gastronomia fortalezense é apreciado com bom atendimento, preço acessível e diversos atributos irrecusáveis.
Como tudo começou
A história do Caldeirão da Panelada assemelha-se a de vários estabelecimentos de cunho popular em Fortaleza. Segundo a proprietária, o local onde fica o empreendimento existe há mais de 50 anos. Ao longo de três décadas, uma senhora manteve um ponto para venda de panelada, e obteve semelhante retorno por parte da população.
Em 2010, porém, ela deixou o negócio, assumido naquele mesmo ano por Cyntia e a mãe, Iracy. Antes de estarem à frente do Caldeirão, Cyntia trabalhava em uma gráfica e Iracy era dona de casa. Com o tempo, percebendo a movimentação intensa do projeto, resolveram apostar apenas nele, e não erraram: dia após dia, a fama do empreendimento cresceu, e até mesmo o funcionamento dele precisou ser alterado.
Outrora apenas às sextas e sábados, hoje ele está aberto a partir de quinta-feira, de 8h às 14h; e de sexta à domingo, iniciando às 8h na sexta e indo até às 7h do domingo ou até quando durar o estoque da comida – por vezes, os pratos acabam antes das 7h. Tudo é feito na hora e às claras para todo mundo ver o passo a passo.
“Nem sempre cozinhamos panelada. Na verdade, foi uma coisa totalmente nova na nossa vida. Quando surgiu a oportunidade de comprarmos esse ponto, a gente abraçou, e fomos aprendendo a cozinhar na marra”, diz Cyntia.
“O mais legal aqui é que é uma coisa meio improvisada, debaixo de uma tenda. Mas não falta cliente, é todo tempo chegando gente. Meu irmão cozinha a panelada, e eu e minha mãe damos o toque final”
Os preços também são atrativos: panelada, porco, carneiro, língua e sarrabulho saem a R$ 22; buchada, mão de vaca e mocotó saem a R$ 25. Além da já citada rapadura, outra opção de sobremesa são os pudins produzidos e vendidos por uma das funcionárias. Ninguém sai triste do Caldeirão da Panelada.
Qual a origem da panelada
Essa aderência tão grande do paladar cearense à panelada e pratos afins não é à toa. Tradição e sabor são dois elementos pontuados pelo chef Leo Gondim – professor do Bacharelado em Gastronomia da Universidade Federal do Ceará – para compreendermos esse sucesso. “O sabor do prato é realçado pelas famosas especiarias, tão preciosas desde as viagens de descobrimento. Cominho, pimenta do reino e louro não podem faltar”, enumera.
Segundo ele, preparações culinárias que utilizam vísceras bovinas têm uma característica comum no mundo inteiro: são comidas de resistência, visto que primam pelo aproveitamento total do animal. No Ceará, a panelada faz parte da cozinha do sertão. O sertanejo a transformou em um prato saboroso e cheio de nutrientes devido à necessidade de aproveitar tudo do rebanho bovino abatido.
“A panelada tem um valor nutricional reconhecido: é forte, uma comida de ‘sustância’. Pode-se comer semanalmente, sendo o almoço o horário mais adequado. Entretanto, é muito apreciada no café da manhã dos mercados populares, seja no São Sebastião, Mercado de Paracuru, Mercado de Piraja do Juazeiro e muitos outros. É conhecida como um santo remédio para a ressaca”.
O chef compartilha a receita tradicional da iguaria. Estes são os insumos básicos:
- Bucho bovino
- Tripas grossas e finas
- Livro (pedaço do sistema digestivo do boi, com tiras, semelhante a folhas)
- Coalheira
- Bofe (pulmão)
- “Rejeitos”, ou seja, articulações das pernas e do pé do boi
A visão de Leo Gondim é de que a panelada sempre estará no gosto cearense. “A nova geração está conhecendo e gostando, e até mesmo a classe mais alta, com criação distante de pratos populares, está apreciando. O importante é não mudar a receita em nada, seja completa ou só bucho e tripa. A panelada tem tradição de preparo e de consumo com uma farofa de cuscuz ou mesmo com pirão, como se fazia na minha casa”.
O que diz a clientela
É tão verdade a percepção de que novas gerações apreciam o prato que o motorista de aplicativo Alesson Abreu Gomes, 32, sempre leva a pequena Aila Sofia, de cinco anos de idade, para o Caldeirão da Panelada. No dia em que nossa equipe encontrou os dois – juntamente à matriarca da família, Andreza Maria Pio – a refeição pedida foi mão de vaca.
“A gente adora, inclusive minha filha pequena. Conheço aqui há mais de dois anos. Moro perto, e fiquei sabendo ao ter curiosidade sobre as comidas regionais servidas. Acabei gostando e sempre venho”, partilha. Para ele, o diferencial é a vastidão de pratos típicos em um só lugar, o que colabora para um farto passeio pelo cardápio.
O autônomo Bruno Sombra, 41, é outro que se soma ao time. Teve conhecimento do negócio quando trabalhava em um depósito próximo ao ponto, há seis anos. Mesmo depois de ter saído do emprego, continuou a frequentar o estabelecimento e elege a buchada como prato preferido. “Moro na Messejana e, por mais que seja longe, vale a pena vim pra cá”, diz.
“O cuidado, a higiene, o atendimento, a comida excelente, tudo é muito bom aqui. Onde mais você paga R$22 em uma panelada? Geralmente se paga bem mais dinheiro em outros lugares. E eu não sabia que elas não trazem nada pré-pronto, que tudo é feito aqui, inclusive a panelada. É impressionante”.
Pela primeira vez no Caldeirão, por indicação de amigos, o garçom Marleson dos Santos, 34, havia acabado de almoçar mão de vaca quando conversou com a gente. Elogios não faltaram, sobretudo ao sabor – “bastante regional e apurado, algo cada vez mais difícil de achar em Fortaleza hoje em dia”. O retorno ao empreendimento, portanto, é garantido. “Em turma ou sozinho, pode ter certeza que voltarei”.
Cyntia, claro, celebra essa adesão apaixonada. Percebe que, nos últimos meses, muitos clientes têm conhecido o empreendimento por meio das redes sociais, onde ela publica vídeos frequentemente apresentando parte do cotidiano de trabalho. Até o fechamento desta reportagem, são 60,5 mil pessoas seguindo o perfil do Caldeirão no instagram.
“Uma panelada bem feita é muito gostosa. E acaba sendo uma coisa diferente, porque não é todo dia que você faz em casa. Você vem pra comer e, sendo bem feita, fica irresistível”, situa. “Já teve um casal que veio de São Paulo. Eles estavam hospedados na Beira-Mar, e vieram pra cá especialmente para experimentar nossa panelada porque viram na internet. Como gostaram muito, já disseram que, quando voltarem à cidade, retornarão”.
Planos futuros: delivery de panelada
Festejando também a quantidade de conquistas realizadas por meio do negócio – da formação universitária de parentes a casa, viagens e outros projetos próprios – Cyntia Martins adianta ter planos para otimizar ainda mais o empreendimento. Ao mesmo tempo, gosta de como tudo está, da forma raiz como cada coisa é feita e chega ao público.
“Nossos projetos incluem delivery, abrir mais um local… Mas perder isso aqui a gente não quer porque é uma tradição, um registro. É a nossa cara. Funciona desse jeito, e de forma tão boa. Por enquanto, pretendemos permanecer assim”.
O Caldeirão da Panelada segue. Aconchegado entre depósitos e autopeças, ocupa a realeza da gastronomia regional fortalezense. Basta passar a pista e ir para além da lona. Acessar as boas surpresas que a comida raiz reserva.
Serviço
Caldeirão da Panelada
Avenida Augusto dos Anjos, 1787, Bonsucesso. Funcionamento: quinta-feira, de 8h às 14h; e de sexta, às 8h, a domingo, às 7h. Pratos a partir de R$ 22. Mais informações por meio das redes sociais do estabelecimento