Desce a panelada, buchada, mão de vaca... Como a culinária regional revela da origem dos cearenses?
Traços da colonização e consequente desigualdade social na região, a gastronomia sertaneja se espalhou pelo Ceará e reforça existência dos laços afetivos e de memória de seus apreciadores
Exige horas de fervura. São servidos na companhia de cuscuz, arroz, pirão ou só da farinha. Calóricos, ganharam fama como alimentos “pesados” e a digestão pode ser demorada. Estão nas panelas de feiras livres, botecos, residências e comércios populares.
Panelada, mão de vaca, buchada, sarrabulho, fussura... A guloseima preferida pode variar, mas é regra comer quente. Há quem ainda estigmatize taxando por “comida de pobre”. Para muitos significa sabor na mesa, garantia de sustança e lembrança carinhosa.
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São cozinhadas com as vísceras de boi, bode ou carneiro, partes consideradas “não nobres” destes animais. O aroma característico domina o ambiente das casas e ilumina vestígios da colonização cearense. Seja no interior ou na metrópole, as comidas regionais desafiam o regime dos fast foods e sobrevivem como cultura.
Adentramos a memória desta “gastronomia regional tradicional popular". Ouvimos especialistas para entender a origem destes pratos e o que são capazes de nos ensinar sobre a formação do povo cearense. "O alimento diz muito da história de cada um de nós", observa a socióloga e coordenadora do Observatório Cearense da Cultura Alimentar (Occa), Kadma Marques.
"Sustança" no prato
Esta culinária possui relação e importância no fortalecimento de laços familiares e de amizade. “Toda essa cultura em torno da carne e dos colonizadores diz muito de todo o nosso processo histórico de formação cultural e territorial”, detalha a estudiosa.
Cozinheiro, historiador e gastrônomo, Roberto Araújo explica que em várias regiões do Nordeste, na maioria delas, a colonização ocorreu do litoral para o sertão. O Ceará teve um cenário inverso. “Foi do sertão para o litoral, movido pelo comércio de gado, fazendas de criatório, feiras de comércio e lá na ponta, no extremo, as charqueadas que produziam as carnes secas, as carnes salgadas comercializadas no Nordeste e até mesmo Sudeste".
Trata-se de uma cultura alimentar sertaneja. Esta culinária é marcada por poucos ingredientes, possui variedade restrita, mas é de um aproveitamento extremamente diverso. “Esta cozinha sertaneja que se espalha por todo o estado é fundamentada na necessidade. A necessidade trazida pela própria fome ou pela escassez de produtos e insumos”, contextualiza sobre o cardápio na mesa de pobres e ricos.
“A exiguidade trazida das condições sociais impostas aos empobrecidos fez com que essa cozinha fosse de aproveitamento. Isto é, não se pode desperdiçar nada. Se é um boi, um carneiro, se um porco era abatido, era necessário aproveitá-lo na sua íntegra".
Esta culinária de aproveitamento tem a característica de ser cozinhada em uma panela só. "É o que chamamos de 'cozinha de fogo único' ou de 'panela única'". Quando imaginamos os pratos mais emblemáticos do Ceará, como o baião de dois, um mungunzá salgado, uma peixada, todos são de preparação em ‘panela única’”.
Outro fator levantado por Roberto Araújo explica que esta alimentação carecia ter sustança. “Uma comida que pudesse dar a energia necessária para a labuta cotidiana, para o trabalho braçal cotidiano, aquele trabalho que era imposto à maioria das camadas sociais empobrecidas. Então, é uma comida que precisa ser energética”.
Vai passando o vendedor de ‘figo’
No passado de Fortaleza, os traços desta comida sertaneja corriam a cidade pelos serviços do “figueiro”. Eram os vendedores ambulantes de fígado, miúdos de boi e todos os ingredientes necessários para cozinhar uma panelada de primeira.
Com seus cavalos, que carregavam as caixas onde eram acondicionados os “arrastados do boi”, atendiam bodegueiros e famílias nas portas de casa. De longe era possível ouvir o grito a convocar os clientes: "panelada fig’ordo".
O horário de venda iniciava às 16 horas. Antes, a mercadoria era submetida a inspeção sanitária para saber da procedência do boi, se o mesmo não era de "moita" (como eram chamados os abatedouros clandestinos).
Estes detalhes estão presentes na crônica "Panelada Fig’ordo" (2004), publicada no Diário do Nordeste e assinada pelo advogado e memorialista Zenilo Almada (1935-2014). O resgate atravessa a capital dos anos 1950 e reúne detalhes acerca destes humildes trabalhadores.
"Além dos instrumentos de trabalho, o ‘figueiro’, como era chamado, conduzia obrigatoriamente uma faca grande, um amolador e uma balança manual pequena que se colocava entre os dedos para aferir o peso da quantidade desejada. Tinha o formato parecido com um termômetro, com mola interna que descia à proporção do peso”.
Daquela época, o autor assinala que o comércio de panelada fervia no Mercado Central, São Sebastião, Pinhões e no antigo "Mané Bofão", referência desta cozinha na Fortaleza dos anos 1960 e 1990. Paraibano nascido em Souza, Bofão morava na Capital desde 1947 e atendia clientela fiel na região do Centro (Travessa Baturité).
A frequência destes espaços reunia a turma em busca de recuperar energias pós-farra. Aos boêmios, se uniam motoristas, caminhoneiros e tantos outros trabalhadores da região central da Capital. “Tudo isso fazia o festival gastronômico dos anos 1950 e 1960 nos mercados da cidade, era o ‘self service’ dos pobres, por toda a plebe apreciado e consumido com bastante pimenta, pirão ou farinha e, após um litro d'água, até chegava a dar suadeira”.
Especialista em nutrição clínica e pós-graduanda em nutrição esportiva, Janaína Bezerra descreve a origem desta "suadeira" que acomete quem derruba uma pratada de cozido. Sera que aquela história de que "comida boa é a que faz suar" é verdadeira? Nada disso, trata-se de uma questão fisiológica.
"Normalmente, quando você come estes pratos você passa o dia se sentindo mais satisfeito. Como temos esse alimento que precisa um pouco mais do nosso organismo para fazer a digestão, tem a questão da temperatura que é um equilíbrio fisiológico", completa.
Ela alerta quanto à necessidade do equilíbrio no cotidiano alimentar. "Normalmente quem faz uso desses alimentos também abusa dos carboidratos, onde se tem um risco maior aí para hipertensão e diabete. Tem que ter atenção com o contexto. Sou uma pessoa mais sedentária, passo o dia sentado, trabalhando e não faço atividade física? Então tenho que ter cuidado com o meu consumo", orienta a nutricionista.
Panelada em segredo
Referência na comunicação cearense, o jornalista Narcélio Limaverde (1931-2022) resgatou vivências da infância para escrever uma saborosa reflexão acerca da panelada. Em abril de 1983, nas páginas do Diário do Nordeste, o artigo "Viva a panelada" descrevia como o alimento é parte dos costumes do fortalezense. E vai além ao criticar a carestia da carne naquele momento.
"Nos antigamente, as famílias tinham vergonha de comprar panelada. O homem passava gritando: ‘Olha a panelada e figo (sic) gordo’. No máximo as donas de casas chamavam o vendedor, seu Manuel, para comprar fígado. Depois despistavam e compravam bucho, algumas tripas, mas nunca diziam que queriam panelada".
E o comunicador segue lembrando como a panelada era alvo de estigmas. "Certo dia, eu ainda menino, flagrei uma conversa da vizinha da esquina que afirmava para a vizinha da outra esquina: "É, ela quer ser muita coisa, mas ainda ontem almoçou panelada. Panelada e colocar os filhos para estudar no Grupo Escolar era sinal de que as coisas não andavam muito boas".
Atualíssimo para os dias atuais, cujo cenário de miséria faz frigoríficos venderem ossos de primeira e de segunda na periferia de Fortaleza, o texto de Limaverde arremata que o miúdo bovino estava sendo consumido por todas as esferas sociais naquele momento.
"Não só os pobres, mas os ricos e os pobres metidos a besta consomem em grande quantidade tripas grossas e finas, coração, rins, bofes, o velho pulmão do boi e até aquela parte do animal que ninguém gostava nos antigamente, os chamados testículos que, em boi, é ovo mesmo".
"Comida de pobre"
Por qual razão, estes cozidões e outros clássicos da culinária popular do Ceará foram e ainda são estigmatizados nos dias de hoje? Professor do curso de Gastronomia do Instituto Federal do Ceará (IFCE - Campus Baturité), Roberto Araújo, reflete o quanto a comida atua na possibilidade da distinção social.
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Membro do OCCA e da ACC (Associação Cearense da Chefs de Cozinha, ele lembra que a cozinha sertaneja também foi reproduzida nas mesas das camadas enriquecidas, contudo, pela própria condição econômica recebia um trato diferenciado.
O entrevistado destaca a presença da chamada cultura da "mistura". Essa concepção acredita que a comida, o prato em si, é definida pela fonte proteica consumida. Em geral, a fonte proteica de origem animal.
"Comer carne bovina fresca era um fator de distinção social. E como isso ocorria essencialmente nas casas dos enriquecidos, a partir daí criou-se uma noção de 'comida de rico', onde é teoricamente abundante a carne bovina fresca. As outras carnes são importantes como fonte de sustância, de energia, mas elas passam a não ser consideradas 'tão nobres' quanto a carne bovina”
Criou-se a partir daí a ideia de “comida de rico” (dominada pela mistura a partir das carnes frescas bovinas) e a “comida de pobre”, aquela que não tem carne nenhuma ou quando tem carne não é necessariamente carne bovina fresca.
"Essa noção de 'comida de pobre' está vinculada a estes elementos de distinção social. Do ponto de vista cultural, gastronômico e nutricional é uma grande falácia como tantas outras dentro da sociedade como perspectiva de criar essa distinção social”, finaliza Roberto Araújo.