Meio-dia e meia. Hora do almoço. Interrompo a escrita, desço do escritório, dobro a esquina e caminho até o lugar de sempre. Chego cedo, para garantir lugar. Tão logo conduz-me à mesa de estimação, colada à janela que dá para a calçada, Gonçalves, o garçom — “empregado de mesa”, como se diz por aqui, em Portugal — lança-me a pergunta habitual, da qual ele já sabe a óbvia resposta: “Tripas?”.
Confirmo: “Tripas, é claro, faz favor”, sorrio. Mal me sento, sem que eu diga mais nada, Gonçalves já traz o “fino” — ou seja, a tulipa de cerveja gelada tirada sob pressão, pois estou no Porto. Estivesse em Lisboa, a mesmíssima bebida receberia o nome de “imperial”.
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Nem pense em pedir um fino, em Lisboa, ou um imperial, no Porto. Os respectivos garçons — empregados de mesa, perdão — farão de conta que não o entenderam. Mais uma idiossincrasia da eterna rixa entre “tripeiros”, os portuenses, e “alfacinhas”, os lisboetas. Cada cidade tem seu léxico, modos, usos e costumes. Amo as duas. Em ambas, sinto-me em casa — e, em uma e outra, como feito um glutão.
Como moro no Porto, pelo menos uma vez por semana me permito semelhante exagero. Desde que li, na juventude, o poema “Dobrada à moda do Porto”, de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, tive vontade de conhecer e saborear a tal iguaria.
Quando me mudei para cá, há mais de três anos, logo no primeiro ou segundo dia em solo português fui ao pequeno restaurante perto de casa e pedi, ainda sem saber ao certo o que iria encontrar: “Uma dobrada à moda do Porto, faz favor”.
Foi quando descobri que, embora haja diferenças entre as duas receitas, dobrada e tripas são servidas, por vezes, como se fossem o mesmo prato. Não são. A dobrada, como o próprio nome diz, tem como ingrediente preferencial aquilo que, no Brasil, conhecemos por dobradinha. É prato típico de todo o norte português, explica-me o solícito Gonçalves.
Já as tripas, além da dobrada propriamente dita, levam linguiça — “chouriço”, diz-se aqui — além de mão-de-vaca, costelinha de porco, vitela, pernil e carne de galinha. Receita também nortenha, mas específica da cidade do Porto.
Em um e outro caso, as carnes vêm mergulhadas em um caldo espesso, mo qual grãos generosos de feijão branco servem de cama para um molho de rodelas de cenoura, cominhos, colorau, polpa de tomate, sal, louro, alho, azeite, cravo da índia, vinho branco e — suprema delícia — piripiri, o nome lusitano da malagueta.
Sim, é uma bomba calórica, comida obrigatoriamente em grandes porções, acompanhadas de arroz branco. Um pecado, em suma. Um atentado à frugalidade. Um elogio ao excesso. Nada recomendável a estômagos fracos e sensíveis.
A origem de um bom prato de tripas à moda do Porto está cercada de lendas. Alguns dizem que a receita remonta ao ano de 1415, quando os portuenses foram convocados a preparar uma grande esquadra para a conquista da cidade de Ceuta, no estreito de Gibraltar, então sob domínio mouro. As caravelas, naus e galés teriam levado a bordo toda a carne da cidade e, assim, os moradores tiveram que se contentar com as sobras — tripas, vísceras e outras miudezas.
Assim, da necessidade e do improviso, nascera a delícia, símbolo da identidade gastronômica do Porto. Mas há outras versões, à escolha do freguês. Inclusive as que associam o ato de comer tripas aos prodígios culinários dos suevos, povo bárbaro que atravessou a Europa logo após a queda do Império Romano.
Seja qual for o fundamento histórico, o fato é que, para mim, cearense, tudo nesse prato remete-me à culinária nordestina, com suas maravilhosas paneladas e buchadas. Da próxima vez que eu for a Fortaleza, trarei na mala uma boa rede de dormir. Instalarei ganhos e armadores aqui nas paredes do escritório.
Depois de um prato de tripas à moda do Porto, a melhor sobremesa será sempre uma boa e reparadora soneca.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.