Com a ajuda da neta, avó realiza sonho de voltar ao Ceará após ter fugido da seca há 66 anos

Dona Maria José Barbosa e Tássila Weichert protagonizaram viagem pelo interior de si mesmas ao redescobrir a Terra da Luz em meio à saudade e ao desejo de firmar raiz

Legenda: Dona Maria José Barbosa em um dos cartões-postais de Fortaleza: desejo de conexão
Foto: Arquivo pessoal

A emoção começou desde o anúncio: “Vó, a gente vai pro Ceará”. Dona Maria José deu pulinhos, soltou grito. Ressuscitou a menina guardada no peito. Dali a dois dias, estaria de volta à terra que deixou há 66 anos com a família. Estaria preparada para as surpresas no percurso? Reconheceria na paisagem a jovem mulher que um dia foi?

Tássila se perguntava em silêncio enquanto observava aquele corpo enrugado preparar a mala. A neta veio do Rio de Janeiro diretamente para Castanhal, interior do Pará, realizar o sonho da avó. Sabia do desejo dela de pisar novamente no chão-natal, recobrar os primeiros sentidos da vida, quando lhe foi permitida a oportunidade de amanhecer.

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Mas a trajetória não foi fácil, nem nobre o motivo da partida. A adolescente Maria José morava numa fazenda em Uruburetama, interior cearense. A propriedade pertencia a um homem de influência na cidade, gente de procedimento escuso: contratava pessoas para trabalhar em condições análogas à escravidão.

Então o que poderia ser estudo e dignidade, virou lida, labuta, exaustão. Infância tornada cativeiro. Aos 14, Maria José não via mais horizonte colorido – tão diferente dos primeiros anos, quando tomava banho de rio e colhia pitomba direto do pé. Era bom. A coisa agora era cinza. Havia seca, fome, embrulho no estômago. 

Foto: Arquivo pessoal

Sair era inevitável. Cruzar a fronteira, matéria de salvação. A chance surgiu por meio de uma política governamental que, à época, transportava pessoas de diferentes lugares do país para a Amazônia. A viagem, por navio, durou dois dias. Era 1958. E, quando Maria José e família achavam que as coisas não podiam piorar, se alojaram no porão da embarcação. Foi triste.

Em Castanhal, precisaram começar do zero e sem a presença dos outros parentes – espalharam-se a esmo pelo Norte, distribuídos conforme o Governo queria. Ergueram casa de barro e passaram a viver da plantação. Havia sossego, aroma de reinício. Mas, vez ou outra, batia saudade do Ceará. Dos conterrâneos, da cultura, do gosto de viver lá.

Legenda: Ao chegar em Fortaleza, dona Maria José foi recebida com chuva após sair do Ceará há 66 anos devido à seca
Foto: Arquivo pessoal

Até os 80 anos de idade, foi esse o sentimento da mulher. Bem-querer atado ao peito, embora proclamado aos quatro ventos: quem se achegasse, sabia do amor dela pela Terra da Luz. A condição financeira é que não era favorável. Impediu, ao longo de mais de seis décadas, o translado do lugar de morada para o lugar de princípio.

Eis que Tássila – cuja relação com a avó sempre foi tão próxima – cumpriu a vontade. Casada com um alemão apaixonado pelo solo cearense e sabendo da proximidade do aniversário de Dona Maria José, preparou surpresa. Em 15 de abril de 2024, desembarcou no aeroporto de Fortaleza agarrada à mão da velhinha-criança: a pessoa preferida era menina de novo.

Legenda: A emoção já na janela do avião
Foto: Arquivo pessoal

Foi menina quando avistou o Estado de cima, pela janela do avião. E quando saudou a chuva do hotel onde ficou hospedada, realidade tão diferente do tempo de despedida. E quando soltou vaia no meio da Praça do Ferreira, explicando à Tássila de onde vinha esse grito nosso. Ao andar pela praia, comer buchada, passear de buggy. Mal continha o riso, tamanha a alegria. E, por isso mesmo, começou a recordar.

Sim, porque, até então, não lembrava ter nascido em Uruburetama. Nem de detalhes daquela terra. Só sabia que era daqui, Ceará, e sentia orgulho por isso. Conforme vivia, marcando pé na superfície, a memória destravava e ansiava por mais, mergulho maior. Hoje o sonho é outro: visitar o município onde veio ao mundo. Para talvez amanhecer de novo.

Legenda: Dona Maria José e a emoção de sentir novamente o gosto da pitomba
Foto: Arquivo pessoal

Tássila não fica atrás. Constrói história de amor dentro da história de amor. Deixará o Rio para morar em Paracuru, cidade que também visitou nessa última viagem. A casa já tem alicerce e espaço demarcado, mobília aguardando ocupar os cômodos. “Penso que plantei essa sementinha – proporcionar esse momento à minha avó – e já estou colhendo os frutos”.

Que esse fruto, queira Deus, tenha gosto de pitomba – que sabe ser ácida e doce. Foi a fruta que dona Maria José primeiro procurou quando aportou em Fortaleza. Pôs na boca e fechou os olhos. Tirou foto junto ao pé.  Estava preparada para as surpresas no percurso? Reconheceria na paisagem a jovem mulher que um dia foi? 

Sempre.

 

Esta é a história de amor de Tássila Weichert pela avó, dona Maria José Barbosa, e de ambas pelo Ceará. Envie a sua também para diego.barbosa@svm.com.br. Qualquer que seja a história e o amor.

* O texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor

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