De inimigas a irmãs: a biblioteca que uniu duas mulheres e mudou a vida delas para sempre

Entre as prateleiras da Biblioteca Comunitária Sabiá, na Sabiaguaba, Gleiciany Queiroz e Antônia Alves descobriram que é possível formar nova família se a gente deixar o coração bater sem medo

Legenda: Gleiciany e Antônia mediam leituras para crianças na Biblioteca Comunitária Sabiá
Foto: Kid Jr.

Esta história não existiria há quatro anos. Não da forma como existe agora. Não seria prova de amizade e consolo, não teria o aroma das boas relações. Seria oca, como as coisas que pouco têm vida – a vida que teima em insistir e que preenche uma biblioteca na Sabiaguaba, em Fortaleza, toda vez que chega gente. Crianças, no geral. Agentes de transformação.

Foram elas e o universo do qual fazem parte os responsáveis por unir Gleiciany e Antônia. São jovens, 29 e 26 anos. Crescidas. Mas, com menos idade ainda, não dirigiam palavra uma à outra. Sequer suportavam um olhar. Tem a ver com os engodos do amor romântico, dos relacionamentos. Quando o coração se despedaça, pode ser muito ruim.

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É que Antônia passou a se relacionar com o ex-marido de Gleiciany e se tornou a madrasta da filha mais velha daquela. Um pandemônio. Donde já se viu manter parceria com quem naturalmente se tornou inimiga? De onde tirar o mínimo de entusiasmo para cruzar com a outra na rua e trocar um aceno, um cumprimento, um bom dia?

Mas também quem disse que mulheres nessas condições não podem ser amigas? Não podem dividir as angústias e alegrias do viver? Não podem tecer experiências para além dos costumes, das convenções? Foi o que Gleiciany pensou logo após a inauguração da Biblioteca Comunitária Sabiá, em 12 de outubro de 2019. O momento em que tudo mudou.

Porque inquieta que é – devotada aos livros e às narrativas habitadas neles – a educadora social tratou de convidar todo mundo para ocupar a nova casa. Inclusive os filhos do ex-marido. Inclusive os filhos de Antônia. O dia estava quente quando os pequenos atravessaram as portas da biblioteca e deram de cara com o encanto. Ficaram deslumbrados.

Mais fascinados ainda com o jeito como Gleiciany contava histórias. Havia carinho especial ali, e eles sentiam. Foi fácil se apegar à “tia” da biblioteca – que, logo em breve, seria chamada de “mãe”, para espanto, mas também muita atenção, da parte de Antônia. A mesma mulher pintada como rival agora trazia felicidade aos rebentos dela. Trazia luz. 

Biblioteca Comunitária Sabiá
Legenda: Houve um tempo que Gleiciany e Antônia não interagiam. Hoje, porém, a dupla compartilha do mesmo gosto pelo voluntariado
Foto: Kid Jr.

Resolveu se achegar mais àquela pessoa, entender por que aquele chamego todo por parte das crianças. Não foi difícil descobrir. Gleiciany se mostrou amável e corajosa, forte e acolhedora. Antônia também passou a ser vista de outra forma pela ocupante da biblioteca: alguém simples e aguerrida, verdadeira e disposta. Não seriam mais inimigas, não. Irmãs.

Um passo de cada vez, confissões muito miúdas. A impressão de uma sobre algo, a forma como a outra reagia em determinada situação. Foram achando sintonia e equilíbrio. E foi ficando muito bom. De repente, Antônia foi a primeira a saber que Gleiciany estava esperando o segundo filho, o Ravi. E Gleiciany abraçou a amiga quando ninguém mais fez.

Aconteceu na época em que os gêmeos Wellington e Weslley foram diagnosticados com autismo. Antônia quase não suportou. Ao mesmo tempo, soube que, dali em diante, a estrada seria menos pesada porque ela tinha a Gleiciany e os meninos a amavam e todos se adoravam na mesma medida. Mães e filhos na ciranda colorida do bem-querer.

“Admiro muito a Antônia pela resiliência que ela encontra em meio a todas as dificuldades. Não é fácil ser mãe de três e mãe atípica de dois. E, mesmo assim, ela acha força pra sorrir e ser força para mim, pra ser rede de apoio. Encontro nela um auxílio que muitas vezes não encontro em gente de minha própria família”, partilha Gleiciany de um lado.

“Aprendo muita coisa com a Gleicy, principalmente a ser forte. Eu não era uma pessoa forte. E, como ela disse que encontra colo em mim, também encontro nela. Nossa amizade foi uma construção de amor, algo que saiu de coisas tão pequenas e hoje é essa relação bonita, grande. Um amor tão intenso que nem sei”, devolve Antônia do outro.

Neste 9 de abril, é Dia da Biblioteca. Porventura você as encontrará na Travessa São José, 90. Entre os livros da Sabiá, verá as duas mediando leituras. De tanto presenciar a amiga naquele movimento, Antônia resolveu aderir também à atividade. São voluntárias dedicadas e apaixonadas pelo que fazem. Mais apaixonadas ainda pelo que sedimentam todos os dias.

Um gosto esfomeado de ir além. Enxergar Hani e Ravi, filhos de Gleicy, alçarem voo com Wellington, Weslley e Safira, filhos de Antônia. Feito as mães, vê-los tornaram-se irmãos. Continuar a mergulhar nas letras – na esperança de que, talvez um dia, enxerguem a própria trajetória de afeição contada em obra. Deixar que os outros falem, percebam e ouçam. E nunca desistir de cultivar o riso, a ventura de ter alguém pra contar.

Agora você sabe. Esta história que não existiria há quatro anos tem tudo para se desdobrar na linha infinda do tempo. Ser feito pássaro, sabiá: penas coloridas, canto persistente, atitude livre. Ser feito a vida: quando as coisas dizem pra não ser, às vezes a gente pode insistir. E, se for para o bem, ficar. Deixar o coração bater sem medo.

Esta é a história de amor de Gleiciany Queiroz, Antônia Alves, os filhos delas e a Biblioteca Comunitária Sabiá. Envie a sua também para diego.barbosa@svm.com.br. Qualquer que seja a história e o amor

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor