No Dia de Combate à LGBTfobia, espetáculo reflete sobre como se descobre a homofobia na infância

Primeiro solo do ator Ricardo Tabosa estreia nesta sexta-feira (17), data de luta contra a LGBTfobia, e segue até domingo (19)

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Ricardo Tabosa em cena de "Metendo a Boca": "É meu trabalho mais pessoal"
Foto: Jorge Silvestre

Todo mundo tem voz. Algumas são altas e claras, vigorosas. Outras preferem a discrição. Mas todo mundo tem voz. O homem que você conhecerá em “Metendo a Boca” – espetáculo que estreia nesta sexta-feira (17), no Teatro B. de Paiva – está em busca de dicção, uma forma de falar. Teve a voz roubada ainda na infância, quando conheceu a homofobia.

Limitou-se a pouco ou quase nada. Precisou conter gestos, expressões e até horizontes. Agora quer viver. Comunicar. “Esse ator/performer rege a cena e conta histórias dele e de outras pessoas, sempre se relacionando a essa procura pela possibilidade de falar, de se expressar livremente, de meter a boca”, situa o ator e diretor Ricardo Tabosa.

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É ele que ocupa todo o tablado durante a montagem – com apresentações até domingo (19) no Teatro B. de Paiva, espaço do Hub Cultural Porto Dragão. Primeiro solo do artista, cria do renomado Grupo Bagaceira de Teatro, a peça é fruto de uma série homônima de videoperformances criada por ele em 2017.

À época, segundo Tabosa, o período era conturbado. “Foi logo após o golpe parlamentar que retirou Dilma Rousseff da presidência, quando os discursos de ódio começaram a se inflamar ainda mais, ditos quase que com orgulho. A série veio como resposta, um enfrentamento à LGBTfobia”. Não à toa, o novo número será apresentado no dia de combate à prática.

Legenda: Em cena, o ator/performer rege a cena e conta histórias dele e de outras pessoas na busca pela possibilidade de se expressar livremente
Foto: Jorge Silvestre

Enquanto audiovisual, alguns vídeos são cômicos, debochados. Outros são mais fortes e dramáticos. Em todos, uma persona que reage a discursos moralistas, conservadores e preconceituosos.

O espetáculo caminhará na mesma direção após a série de vídeos integrar durante cinco anos a programação do For Rainbow - Festival de Cinema e Cultura da Diversidade Sexual e de Gênero, e, a cada temporada, ganhar novas experimentações de linguagem. 

Uma delas se sobressaiu. Foi quando Ricardo gravou a própria voz numa canção e dublou a si mesmo. “A partir daí, senti a necessidade de investigar o que me fez criar o ‘Metendo a Boca’. O que significava essa persona usando canções pra dizer o que eu queria dizer? Enquanto um homem gay, como essas palavras ressoavam em mim? Como essa voz se deixou mostrar e por que em algum momento foi calada?”. Ator e público respondem junto.

Dublagem como arma

Com dramaturgia de Rafael Martins e direção compartilhada entre Tabosa e Elisa Porto, “Metendo a Boca” não é uma reprodução, no palco, da obra audiovisual. Totalmente nova, a criação lança mão do recurso do lipsync – termo técnico para combinar movimentos dos lábios com a voz – e uma pessoa em cena que busca se expressar livremente, respondendo a estímulos, experimentando dizer.

Ricardo, Elisa e Rafael, por sinal, formam um tour de force poderoso. O trio passou a vivenciar o processo de criação em sala de ensaio depois de, em 2021, Tabosa iniciar o mestrado em Artes Cênicas na Universidade Federal da Bahia. 

Lá, investigou o processo de concepção do espetáculo. Temas como silenciamento e experimentações de cena, improvisos, leituras e resgate de memórias pessoais deram o tom dos diálogos da turma. 

“Assim fomos construindo juntos a montagem e, depois, chegaram artistas colaboradores nas outras áreas – trilha sonora, iluminação, direção de arte etc. A criação vem, portanto, sendo gestada há muito tempo”, diz o intérprete.

“Com certeza é meu trabalho mais pessoal. Apesar de já ter vivenciado inúmeros processos colaborativos – em que, de certa forma, tive participação como ator-autor – esse é o projeto que parte das minhas questões mais íntimas”.

Legenda: No espetáculo, relatos cômicos e debochados se entrecruzam com depoimentos fortes e dramáticos
Foto: Jorge Silvestre

Elisa Porto reitera a ideia. Convidada para ter um olhar “de fora”, portanto mais estético, do material, a diretora – cuja estreia no ofício acontece a partir da peça – dá detalhes de outros pormenores do número. Cenicamente falando, a preferência foi por preservar fundo preto e ator em cena. E também manter nomes como Jorge Silvestre (projeção), Lucas Sancho (iluminador) e Natália Parente (figurino), presentes desde a época das videoperformances.

“A matéria-prima do meu trabalho é o ator, a cena – seja na direção, seja no palco ou na preparação de elenco. Então, estar com um artista como o Ricardo é uma maravilha. Nós temos uma relação de parceria e cumplicidade de muitos anos, então foi incrível o processo criativo e vê-lo atuar como autor, ator, idealizador e diretor desse projeto”.

E complementa: “Discutir sobre LGBTfobia nunca é demais. Ainda vivemos em um dos países que mais mata a população LGBTQIAPN+. Avançamos muito na luta por direitos, mas também vimos uma ascensão do pensamento conservador de forma muito perigosa. Acho que as pessoas vão se sentir provocadas a pensar nas outras nuances do preconceito que nem sempre está associado a ataques físicos. Ela pode ser muito sutil, ainda na infância”.

Resgate de uma vida

Por isso mesmo, a julgar pelas próprias experiências de Ricardo Tabosa, a montagem faz como que um resgate da vida dele até aqui. É feito um filme sobre quem ele é. “Usamos alguns elementos da autoficção, do teatro documentário, dos chamados ‘teatros do real’. Então, todo o processo passou por questões bastante pessoais. Algumas difíceis de resgatar, desconfortáveis, mas que foram essenciais no processo”.

Unir esse material documental a uma estrutura dramatúrgica – entre real e ficção, consciente e subconsciente – enriquece a experiência. O convite é claro e urgente: deixa sair, deixa fluir.

E se a temporada é tão curta neste momento, é porque se trata do nascimento das coisas. A arte do teatro é viva e a peça ainda terá bastante tempo para se modificar e se aperfeiçoar a partir do primeiro contato direto com o público.

“O desejo é fazer ressoar essa voz, encontrar eco nas histórias de cada espectadora e espectador. O que a gente espera é que as pessoas não só se identifiquem de alguma forma com o que vão assistir, mas que alcancem outras experiências de recepção também, de forma sensorial ou que possa ultrapassar o sentido lógico, racional”, torce o ator.

Sobretudo gerar reflexão e, quem sabe, alguma mudança. Um modo de dizer. “Apresentamos uma jornada humana e desejamos que isso chegue com a expressão da potência da nossa existência política e da força de nossas subjetividades na contemporaneidade”.

 

Serviço
Espetáculo “Metendo a Boca”, solo de Ricardo Tabosa
De sexta (17) a domingo (19), às 19h, no Teatro B. de Paiva - Hub Cultural Porto Dragão (Rua Boris, 90, Praia de Iracema). Ingressos: R$ 30 (inteira) | R$ 15 (meia) pelo Sympla. Mais informações: (85) 98767-6682. Duração: 70 minutos. Classificação indicativa: 14 anos

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