Diretora Bia Lessa apresenta novo filme do clássico ‘Grande Sertão: Veredas’ em Fortaleza

Programação em torno de “O Diabo na Rua No Meio do Redemunho” inicia nesta terça-feira (19) e envolve exibições especiais e oficina com a própria Bia Lessa e elenco

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Cena de "O Diabo Na Rua no Meio do Redemunho": dos palcos para a telona, mas com diferenciações
Foto: Divulgação

“Acho dificuldade uma coisa extraordinária”, confessa Bia Lessa ao telefone. Basta olhar para a carreira da atriz e diretora paulistana e comprovar – da adaptação de “Orlando”, de Virginia Woolf, à versão de “O Homem Sem Qualidade”, de Robert Musil. São obras densas, exigentes, com níveis complexos de profundidade.

O ponto alto desse amor pelo desafio, contudo, é mesmo o trabalho realizado por ela em “Grande Sertão: Veredas”. Clássico irrefutável da literatura brasileira, o romance de Guimarães Rosa acompanha a artista desde a oitava série, quando ela tinha apenas 14 anos. Apesar de naquele momento ter lido apenas fragmentos do livro, tudo mudou anos depois.

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Uma exposição na reabertura do Museu da Língua Portuguesa, em 2006; uma peça com Caio Blat, Luíza Lemmertz e grande elenco, em 2018; e um filme com os mesmos atores no ano passado, demarcam o quanto Bia se apropriou definitivamente da obra-prima de Rosa. Este último projeto, inclusive, chega a Fortaleza nesta terça-feira (19), com grande programação.

Pré-estreia no Cineteatro São Luiz, exibições no Cinema do Dragão e oficina sobre processos criativos faz da passagem de “O Diabo na Rua no Meio do Redemunho” na capital cearense um acontecimento capaz de mexer tanto com apaixonados pela prosa de Guimarães quanto por interessados em saber como algo labiríntico pode fluir tão belamente nas mãos certas.

Sobretudo a respeito da oficina, Bia diz ser algo feito em todas as cidades pelas quais a trupe tem passado. “Tá sendo uma revolução na minha vida, a quantidade de pessoas que estou encontrando. Não tem coisa mais linda que as amizades que a gente encontra no caminho do trabalho, né? E a oficina é isso. O que me interessa na vida é, de fato, falar com o outro”, diz.

A pretensão é ir além. Lessa quer descolar, tanto ela quanto o público, da ideia “desconfortável”, segundo ela, de assistir a um filme e ir para casa. É necessário pensar, imergir, tensionar. A atividade sendo gratuita, então, torna-se prato cheio para conexões a partir de perspectivas sobre processo de criação, método de trabalho e experimentação.

Legenda: Filme mexe tanto com apaixonados pela prosa de Guimarães quanto por interessados em saber como algo labiríntico pode fluir tão belamente nas mãos certas
Foto: Divulgação

“O ponto é experimentar com as pessoas do lugar. Em cada local, de um jeito ou de outro, a gente faz diferentes experimentações. Luisa Lemmertz e Clara Lessa também participam da oficina, então tem uma visão do ator também, não só da direção. É uma coisa bem bacana”.

“O sertão é dentro da gente”

Quanto à pré-estreia do filme, culminará em exibição e debate com a própria Bia Lessa, além de Beatriz Furtado, Silviano Santiago, Marcelo Magalhães, Max Eluard, e as já citadas Luiza Lemmertz e Clara Lessa. A mediação será de Duarte Dias. Bia adianta que, para quem já assistiu à peça homônima em anos anteriores, a experiência do longa-metragem é distinta.

Se no teatro um destaque natural era dado a jagunços, bandos, violência e à intensa luta entre o bem e o mal, na telona a história de amor entre Riobaldo e Diadorim será mais evidente – embora a diretora não saiba dizer o porquê. “Foi uma coisa que aconteceu no próprio ato da montagem do filme, que é muito diferente da do espetáculo”.

Por outro lado, uma vez contar com o mesmo elenco, é perceptível a total incorporação dos personagens em cada intérprete e as engenhosas soluções encontradas pela direção para recontar a trama. O minimalismo do cenário continua, por exemplo – bebendo de referências como o filme “Dogville” (2003), de Lars Von Trier. Os multipapéis também.

Protagonista da obra, Caio Blat, para se ter ideia, vira homem, vira planta, vira bicho. “A coisa do Guimarães que eu acho muito deslumbrante é que acredito ter sido ele o primeiro autor de fato ecológico, no sentido de que o homem, os animais e a vegetação têm a mesma importância que Riobaldo. A ideia de que o humano está em relação com tudo o tempo inteiro é de uma sabedoria profunda”, analisa.

Legenda: Peça e filme são distintos, mas guardam semelhanças, feito o elenco
Foto: Divulgação

E prossegue: “Hoje em dia isso passa a ser lugar-comum, mas já era uma coisa fundamental na época em que o romance foi escrito. E, mesmo hoje, com a gente já sabendo que é tão importante quanto uma samambaia, continuamos nos tratando como superiores. Pra mim sempre foi muito certo tentar levar isso tanto pro teatro quanto pro cinema”.

No fim das contas, é reflexo da segura crença de que o sertão é dentro da gente – pensamento que acompanha Bia desde que passou não apenas a ler “Grande Sertão: Veredas”, mas, de fato, a estudá-lo. Numa conta rápida e imprecisa, já são pelo menos 30 vezes que ela se debruçou sobre o romance – e, a cada travessia, é uma descoberta diferente.

“Sempre foi um impacto muito grande porque, obviamente, fiquei tomada pelo livro, no sentido de que ele é um livro formador. Quem passa pelo ‘Grande Sertão’, passa, de fato, a ser outra pessoa. O sertão é dentro da gente, está em toda parte. O sertão do Guimarães é metafísico, não é localizado. Ali estão questões do homem como tal, do homem enquanto humanidade, o homem enquanto o que veio fazer no mundo”.

Mais adaptações?

Nitidamente contente por retornar a Fortaleza – nas primeiras vezes aqui, chegou a morar três meses com o intuito de montar a ópera “Don Giovanni”; participou da reinauguração do Theatro José de Alencar; e gravou cenas dos dois primeiros filmes no Cariri cearense – Bia Lessa responde a nosso questionamento se ainda deseja adaptar “Grande Sertão: Veredas” para alguma outra linguagem. Para isso, faz uma retrospectiva.

Lembra de, no período em que montou a exposição no Museu da Língua Portuguesa, há 18 anos, ter dito que nunca faria uma versão do livro para o teatro e, anos depois, voltar atrás – travando verdadeira saga entre escritores, atores e todo um arsenal de profissionais envolvidos com o trabalho. Agora, após todos os projetos desenvolvidos, reflete.

Legenda: Caio Blat é protagonista das duas versões de "Grande Sertão: Veredas" assinadas por Bia Lessa
Foto: Divulgação

“Não vejo a menor possibilidade de mais uma adaptação de minha parte. Meu desejo agora é encontrar outra coisa na minha vida que me tome tanto quanto me tomou o ‘Grande Sertão’. Acho que o que eu tinha pra dizer sobre o Guimarães Rosa já está dito – mesmo que tenha milhões de coisas que, se eu pegar o livro, há para falar (como quando vejo um trecho e digo, ‘ah, meu Deus, como é que eu deixei passar isso?’)”.

Não deixa de ser uma reverência ao legado do escritor mineiro e da obra seminal dele. Para Bia, a grandiosidade de “Grande Sertão: Veredas” reside no fato de o livro tocar em questões muito nossas, da ordem do humano – sexualidade, ética, caráter, entre outras – e ter, a próprio modo, não apenas reinventado o uso da Língua Portuguesa, mas, efetivamente, inventar uma.

Cita a palavra “bisbrisa” – uma das tantas torções linguísticas que Guimarães Rosa faz em benefício do enredo e de nossa própria elevação enquanto leitores – para ilustrar. “Isso é de um conhecimento da alma humana, de um grau de revelação… Por isso acho que nunca fiz uma adaptação, não tentei transformar o livro num roteiro de teatro ou cinema. Fui pegando fragmentos dele, exatamente como eram, e trabalhando em cima desses fragmentos. Tanto é que, no mais recente filme, escrevo ‘Calcado na obra de Guimarães Rosa’”.

Ler e se apropriar de “Grande Sertão”, no fim, é encontrar um caminho. E, se houver alguma dúvida se ela seria capaz de ficar ao lado de Guimarães Rosa durante tanto tempo, retorna ao ponto inicial: amar uma dificuldade é abraçá-la com o que há de mais importante no peito.

“A gente está muito sem caminho, o mundo está muito chinfrim, não acreditamos em mais nada, não tem mais nada que nos sustente. Somos a primeira geração que, de fato, está diante do limite real. Sabemos que agora a vida pode acabar. Por isso acho que o ‘Grande Sertão’ aponta um caminho. Ele é fundamental nesse sentido e no sentido de você se formar enquanto indivíduo. É essencial desbravá-lo”.

 

Serviço
Programação especial do filme “O Diabo na Rua no Meio do Redemunho” em Fortaleza
Pré-estreia nesta terça-feira (19), às 18h30, seguida de debate, no Cineteatro São Luiz (Rua Major Facundo, 500, Centro). Gratuito.

A partir de quinta-feira (21), exibição do filme no Cinema do Dragão a preços regulares.

Na sexta-feira (22), Oficina Processo Criativo com Bia Lessa (gratuita, mediante inscrição prévia neste link)

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