Filme ‘Grande Sertão’ e adaptações promovem redescoberta do clássico de Guimarães Rosa

Luisa Arraes, Diadorim em cartaz no cinema, e pesquisadora Aíla Sampaio falam sobre as diversas versões da obra que parece "inadaptável"

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Luisa Arraes e Caio Blat em cena de "Grande Sertão", de Guel Arraes: clássico repaginado
Foto: Divulgação

Desde 1956, quando foi publicado, “Grande Sertão: Veredas” não é só clássico brasileiro. Entrou para o Olimpo da literatura mundial. No último dia 6, deu mais um passo na tentativa de se aproximar do grande público – feito notável, uma vez ser considerado inadaptável diante da complexidade do texto de Guimarães Rosa: ganhou o cinema.

“Grande Sertão” tem direção de Guel Arraes e atualiza a narrativa roseana. Em suma, transporta a história do cangaço do começo do século XX para uma comunidade dos dias de hoje, localizada em uma cidade fictícia. No lugar de jagunços, bandidos e traficantes; em vez de homens da lei, policiais corruptos.

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“É como se o cinema se tornasse um Coliseu, sabe?”, instiga Luisa Arraes, atriz do longa. Na pele de Diadorim, um dos protagonistas da trama, a artista conta que uma grande questão já se impunha no processo de adaptação: no livro, o personagem dela só existe devido à adoração de Riobaldo. Como transpor isso para a tela?

“Tivemos que fazer escolhas, porque falamos: ‘Esse personagem vai existir, não será só uma neblina na história’. Inclusive, acho que uma das partes mais ousadas da adaptação é mesmo essa criação do Diadorim. Se você pega o livro, ele tem, no máximo, cinco falas”, contabiliza. No filme, de fato, é bem diferente.

Legenda: Em "Grande Sertão", os outrora jagunços são bandidos e traficantes; em vez de homens da lei, há policiais corruptos
Foto: Divulgação

Diadorim é retratado desde criança, e não se furta a escancarar rapidamente para o espectador: é uma menina, filha do maior guerreiro de todos. Ainda pequena, ouve a sentença do pai: “Guerra não é lugar de mulher”. Assim, traveste-se de homem e parte para uma jornada de autoconhecimento e violência em um mundo inteiramente hostil.

“Acho que é o maior trabalho de composição que já fiz. Diadorim me parece uma tela em branco porque vejo que o masculino é muito retirado de nossas existências, erroneamente. Por outro lado, me identifico muito com ele. Até os 12 anos, eu só ia na seção masculina de roupas. E tem também a coragem e uma parte mais doida dele que acho interessante”.

Existe obra impossível de adaptar?

A boa notícia é que não existe obra impossível de ser adaptada. Pelo menos é a visão de Aíla Sampaio, Doutora em Literatura Comparada e professora da Secretaria de Educação do Ceará e da Universidade de Fortaleza. Segundo ela, como não se exige fidelidade da adaptação ao texto-fonte, a liberdade de criação faz todo o serviço.

Legenda: Edição especial de "Grande Sertão: Veredas" publicada pela Companhia das Letras em 2019
Foto: Divulgação

“Corta núcleos narrativos, acrescenta outros, pode mudar os cenários, trazer o enredo de um tempo passado para a contemporaneidade, pode eliminar ou acrescentar personagens… Enfim, selecionar o que de fato faz sentido colocar na tela e que dialogue com o texto original. Daí ser importante que o roteirista/diretor tenha se apropriado da história da obra escolhida, para então modificá-la com objetivos definidos”, contextualiza.

Mesmo “Grande Sertão: Veredas” consegue a proeza. Não à toa, além do recente filme de Guel Arraes, o livro já foi adaptado para o teatro pela atriz e diretora Bia Lessa; e para a TV por Walter Avancini – uma minissérie de 25 capítulos produzida pela TV Globo em 1985. Além disso, a mesma Bia Lessa deve lançar o filme “Diabo na Rua, no Meio do Redemunho”; e Adirley Queirós lançará “Grande Sertão: Quebradas”, ambos neste ano.

Legenda: Bruna Lombardi é Diadorim em minissérie de 25 capítulos produzida pela TV Globo em 1985
Foto: Divulgação

“É uma obra de leitura complexa devido à sintaxe muito particular do Guimarães Rosa e dos tantos neologismos. Mas, ao adaptar, o roteirista e o diretor são livres para colocar na tela uma reescrita que a aproxime mais do público. As adaptações das obras literárias contribuem muito para que o espectador se converta em leitor do material-fonte, fazendo com que a obra seja redescoberta e trazida de volta ao cenário”.

Luisa Arraes reforça a ideia ao dimensionar que, tanto na peça de Bia Lessa quanto no filme de Guel Arraes, o componente teatral é muito forte. Neste ela é Diadorim; no primeiro, interpreta Riobaldo mais jovem e vários personagens, além de fazer o monólogo da morte dos cavalos. “A peça está dentro do filme. Acho que tem uma coisa em comum entre os dois que são esses sentimentos grandes, não-domesticados, teatrais”, diz.

Legenda: Cena da peça de Bia Lessa, homônima ao livro de Guimarães Rosa
Foto: Divulgação

“É o nosso maior livro da literatura brasileira, quiçá mundial. Tenho muita pena de quem não fala e não lê português e fica impedido de conferir ‘Grande Sertão: Veredas’. São mil livros em um, ele é inesgotável. E é incrível trazer a adaptação pra hoje porque tem essas grandes questões que eu acho que vão permear a humanidade em todas as épocas. Infelizmente sempre haverá guerras e, quando existe guerra, existe outra lei”.

Gostar de adaptar livros

Fato é que o mercado gosta de adaptar obras literárias. A iniciativa acontece há muito tempo e no mundo inteiro. Segundo Aíla –  cuja tese de doutorado foi sobre adaptação de obras literárias para o cinema – se fizermos uma pesquisa nos streamings, perceberemos que mais de 50% dos filmes têm roteiros adaptados de livros. 

“Isso beneficia a obra, porque ela ganha visibilidade nas telas, mas, sobretudo, beneficia o mercado cinematográfico, pois é praticamente garantido emplacar uma história saída de obras já lidas e consagradas”.

Esse movimento de transpor letras para as telas, por sinal, torna as obras mais acessíveis. E, embora o leitor conservador muitas vezes não concorde com a releitura ou com a imagem dos atores que representam os personagens, ele mergulha em um novo universo semiótico e vive uma experiência estética interessante. 

Legenda: Luisa Arraes na pele de Diadorim: "Acho que é o maior trabalho de composição que já fiz"
Foto: Divulgação

“A literatura há muito saltou dos livros das estantes para histórias em quadrinhos, filmes, pinturas, peças teatrais e músicas, num intermitente e profícuo diálogo. É a pluralidade das artes nos envolvendo”. Por outro lado, quando questionada de que forma fazer com que adaptações se tornem atraentes sem perder o foco no material-base, mas primando pela originalidade na forma de abordar, a pesquisadora reflete algo importante.

“O cineasta que investe no roteiro adaptado de obra literária é livre para criar a partir dela. Cabe a ele a releitura, o recorte, a decisão do que levar para as telas. Ele deve focar muito no que o público deve querer ver, nas tendências de seu tempo. No caso do filme de Guel Arraes, ‘Grande Sertão’, ele resolveu tirar Riobaldo e Diadorim da jagunçagem no interior mineiro, na época da República Velha, e colocá-los na cidade contemporânea e no contexto de facções criminosas. É uma aposta ousada que vale a pena conferir”.

Ao que Luisa Arraes completa: “Tinha 18 anos quando li pela primeira vez ‘Grande Sertão: Veredas’. Foi realmente a maior experiência que eu tive com a literatura. Lembro que a vida ficou em segundo plano. Eu sentia que era mais importante ler do que viver minha vida, foi a primeira vez que isso aconteceu – e acho que até hoje a única. Li outras duas vezes quando fiz a peça da Bia e agora também fazendo o ‘Grande Sertão’. É um oráculo”.

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