Aos domingos, preparava algo especial para a família. Costumava fazer o café da manhã. Era atencioso e prestativo com o amor. E, embora toda a simplicidade, buscava entender a complexa alma dos artistas. Este era Gilberto Gomes. Ele não está mais aqui. Partiu em 13 de agosto deste ano, mas revive toda vez que Beatriz Gomes Lessa se dispõe a escrever.
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Ela tem feito isso nos últimos meses, preencher páginas e páginas de cartas. É exercício de salvação. “Tem sido terapêutico para mim, uma forma de me sentir amparada, mesmo sem ter uma resposta”. Pudera: tudo foi muito rápido. De repente, quem a gente gosta não está mais. Some no ar. Gilberto foi embora devido a complicações de uma cirurgia no coração.
Por isso mesmo, toda vez que começa nova carta, Beatriz introduz: “Bença, pai”. Conta diretamente a ele o que tem acontecido, como se estivesse numa ligação ou conversando pessoalmente – o que, de fato, é. Dá chance de partilhar sobre a chuva, a saudade, as horas e as coisas simples, desejosas de serem divididas todos os dias.
Essa ternura, sem limite e sem tamanho, tem pretensões de alcançar mais gente. Porque é quase injusto que mais pessoas não conheçam Bebeto, o grande amigo de Beatriz. Assim nasceu a campanha de financiamento coletivo para o livro que a filha pretende lançar com os escritos destinados a quem ama. O título não poderia ser outro: “Bença, pai”.
“Não é um projeto que esteve comigo por muito tempo; ele surgiu enquanto atravesso a dor do luto. Desde que recebi a notícia da partida dele, venho escrevendo praticamente todos os dias. O desejo de transformar essas cartas em um livro veio depois que elas viralizaram, alcançando quase um milhão de visualizações”.
Foram muitas mensagens de pessoas contando se sentirem representadas com as descrições de uma saudade que não passa. É porque é exatamente isso, né? A certeza de que amamos tanto alguém a ponto de sentir falta. Sina de quem se entrega.
“‘Bença, pai’ surgiu também após um vídeo de homenagem que fiz para ele no domingo de Dia dos Pais. Meu pai ainda estava comigo, e, mesmo à distância – ele em Itapajé (CE), minha cidade natal, e eu em Brasília, onde moro há alguns meses – , choramos e conversamos”. Dois dias depois desse tributo, ele faleceu.
Beatriz lembra de tudo. Do fato de Gilberto ser comerciante, atencioso, simples e grande conselheiro. Homem de poucas palavras, num silêncio que hoje faz falta. Tinha olhos grandes, cabelos grisalhos e risada fácil. Apaixonado pela família, trabalhador e marido exemplar. Nunca se distanciou da esposa, nem nos momentos mais difíceis – como em 2015, quando ela enfrentou um câncer de mama.
Era cearense gaiato, que gostava de achar graça até do vento, deixando tudo mais leve. “Com ele, aprendi que o amor vai além das palavras; está também na forma como honramos os nossos. Sempre que eu viajava para Itapajé, ele me recebia com uma tigela de açaí e preparava algum prato que eu gostava. A paixão dele pelo açaí era tanta que ele começou a estudar sobre o cultivo da fruta e plantou mais de cem pés no quintal de casa”.
Bebeto também tinha a habilidade ímpar de aprender muitas coisas sozinho e estudar por conta própria, mesmo sem ter completado o Ensino Fundamental. Infelizmente, não teve a chance de ver os primeiros frutos de açaí. Beatriz encontrou o primeiro cacho da safra com o irmão, no quintal de casa, seis dias após a partida do genitor.
“Em seu epitáfio, que escolhi recentemente, eternizamos na lápide: ‘Aqui descansa um coração gentil e uma pessoa generosa’. Reverberar esse amor em sua inteireza é o meu principal desafio. O amor é um sentimento que vai além do que pode ser escrito”.
Ela tem razão. Não à toa, desde o começo as cartas passeiam entre homenagem ao pai e a tentativa de uma filha de recuperar o chão que se perde ao receber uma notícia tão difícil. Não há desesperança, mas sim uma saudade doída. Quem já perdeu alguém que amava há de compreender. No total, são quase 20 textos, divididos em capítulos que lembram estações.
O objetivo é claro: Beatriz não se vê como alguém com lição de vida a ensinar. Somente uma filha que perdeu o pai e decidiu escrever cartas para ele. “O que tenho experimentado e aprendido nesse período é que todos os momentos que temos com quem amamos devem ser vividos com a intensidade que merecem, pois o amanhã é incerto”.
Agora nos resta aguardar o livro, previsto para ser lançado no começo de 2025 – mais especificamente no final de janeiro. A campanha de financiamento coletivo segue. Para o lançamento, terá um momento bonito em Itapajé, onde Gilberto viveu por tantos anos e para onde Beatriz conta os minutos para voltar.
Essa filha, saudosa e emocionada, continuará produzindo vídeos, falando de memória, citando a preciosidade que é ser nordestina, cearense, nascida e criada no interior.
“Não vou parar de escrever essas cartas até eu sentir que me fez bem o suficiente. Tudo começou dessa forma - como um alívio. Assim será até o momento que fizer sentido. Sigo chorando, mas com a cabeça erguida, escrevendo para ele e colocando força nesse livro, que acredito que ele adoraria me ver lançando. Tenho sentido que minha missão é honrar a memória do meu pai e o lugar de onde vim”.
Esta é a história de amor de Beatriz Gomes Lessa pelo pai, Gilberto Gomes. Envie a sua também para diego.barbosa@svm.com.br. Qualquer que seja a história e o amor.