Com dono quase centenário, bar em Fortaleza serve à boemia raiz com sabor de feijão cozido à lenha
Lucidez do proprietário, funcionamento diário e painel icônico com fotos de visitantes fazem do Feijão Maravilha O Paraibano, no bairro Farias Brito, um espaço para se demorar
Dia de jogo para um dos times cearenses. Quem é torcedor, se prepara. Contata amigos, veste camisa, sai de casa cedo. O domicílio na Rua Dom Jerônimo, 256, no bairro Farias Brito, em Fortaleza, lota aos poucos devido a esse movimento. É noite de quarta-feira, e o Ceará Sporting Club enfrenta o The Strongest, na Bolívia. Transmissão aguardada.
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O tal “domicílio” trata-se do bar Feijão Maravilha O Paraibano, há três décadas no endereço que virou recanto. Outrora funcionando em outros dois pontos, é neste último a sede final da alegria. Basta entrar. Ultrapassada a fachada escura – fina luz a clarear mesas e cadeiras de plástico – logo damos de cara com o pai da simpatia. Seu Paraíba sorri quando nos vê.
“Vamo entrando”, convida o proprietário. Aguarda nossa chegada junto aos amigos. Já são muitos – quase duas dezenas – reunidos em frente à TV de 50 polegadas, acoplada na parede. Petiscos, cachaça e ansiedade. “Tão tudo esperando o jogo começar, ó”. Enquanto a lenta confusão de vozes vai ocupando o espaço, seu Paraíba ajusta a máscara e inicia a prosa.
Diz que, esbanjando saúde e sendo ajudado por Deus, vive num mar de rosas. Não é exagero. O boteco (também residência) tocado por ele tem ar de sala, família no sofá aos domingos. É isso: parece ser sempre domingo no Feijão Maravilha. O estabelecimento funciona diariamente. Desde às 6h, as portas estão erguidas. Silêncio? Só na Sexta-Feira da Paixão.
É coisa da vitalidade do dono. Aos 96 anos, seu Paraíba – cujo nome na certidão é Macedo Saturnino Gomes – não possui doença, não toma remédio e é quem passa troco no botequim. Em tempos de Pix, só aceita dinheiro vivo. “É mais garantido”, sentencia, sem desgrudar os olhos de uma caixa separadora branca, onde estão notas e moedas.
Embora abra o bar cedinho, os quitutes mesmo só são servidos por volta do meio-dia. A dinâmica segue até ele dizer que, por ora, já chega. Isso só acontece tarde da noite, porém. Em tom de brincadeira, alguns clientes o apelidam de Seu Lunga. Paraíba leva tudo na graça. “Aqui, tudim é meu amigo. Ninguém briga nem arenga. Vivo feliz”.
Montar o painel, construir um santuário
Esse clima de camaradagem é sentido não apenas no ar, mas de forma concreta. Vários detalhes enriquecem a experiência de estar no Feijão Maravilha. A começar talvez pelo mais chamativo: o enorme painel com fotografias de quem já visitou o bar. Clientes-amigos de curta ou longa data, e até personalidades do quilate do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva – de quem seu Paraíba é ferrenho admirador.
O encontro entre os dois aconteceu nos anos 2000, quando o atual candidato ocupava o mais importante cargo político da nação. “Ficou bonita a foto, né? Vocês já viram?”, indaga o proprietário. À época, Lula estava no Ceará para inaugurar o Porto do Pecém. Foi uma amiga de seu Paraíba, filiada ao Partido dos Trabalhadores (PT), que o levou até lá. Emoção.
Tem mais. No boteco, o famoso feijão – carro-chefe da casa, servido com osso de boi e, pasmem, cozinhado no fogão à lenha – é prato cobiçadíssimo e delicioso. Experimentamos com paçoca e carne. Um primor! Além disso, o fato de ainda usarem calculadora, caderno para anotar pedidos e conservarem a aura dos tradicionais botecos, sem luxo nem burocracia, torna tudo ainda mais aconchegante.
A única pessoa que trabalha no estabelecimento é Simone Meire Gomes, 53, uma das sete filhas de seu Paraíba. Enquanto o pai recebe a clientela, ela cozinha, serve e limpa. Desafio grande, tendo em vista que, para além do serviço no bar, atua como auxiliar administrativa numa loja em frente ao recanto. “A gente vai se virando”.
Por vezes, recebe ajuda do irmão mais velho e de outras pessoas que, feito família, chegam junto nos afazeres. No cardápio, por exemplo, além do já comentado feijão, prepara-se costela, carneiro, almôndegas e peixe – para felicidade dos fãs de tira-gosto. Aos fins de semana, a cartela de pratos aumenta, juntamente à quantidade de público.
Ao falar sobre o negócio idealizado por seu Paraíba quando ele ainda era jovem – forma de ocupar as horas antes do expediente noturno de vigia – a herdeira é direta: “O movimento é esse mesmo, tem mais o pessoal da velha guarda. E papai está sempre firme e forte, conversador que só”, suspira.
Para completar, o ícone ainda é revestido de causos – até mesmo envolvendo o próprio nascimento. Durante muito tempo, acreditou que havia nascido em 10 de outubro de 1927; contudo, em viagem ao interior da terra natal, descobriu ter sido no dia 1º de outubro daquele mesmo ano. Por sua vez, recebeu o apelido de “Paraíba” apenas quando chegou ao Ceará, em 1957. Foi batizado lá. Mas veio ao mundo mesmo no Rio Grande do Norte.
Amizade e intimidade
Amigos do proprietário saúdam toda essa fartura de excentricidades. É onde mora o carisma de seu Paraíba e do pequeno império que construiu. Frequentador do bar há mais de 25 anos, o corretor de seguros Emanoel Ribamar, 71, considera ser o local uma extensão da própria casa. Passa por lá de uma a três vezes por semana. “Me sinto bem demais aqui”.
Feito seu Paraíba, também é torcedor ferrenho do Ceará e, entre uma colherada e outra de feijão, revela que o dono do boteco já foi inclusive jogador de futebol – em times de Natal e de João Pessoa. Afirma também sempre convidar outros colegas e até parceiros de trabalho para conhecer o bar. “Seu Paraíba precisa ser estudado”, diz.
“A memória dele é muito boa, não esquece nada. No dia 1º de outubro, faz 97 anos. E todas as vezes, nessa mesma data, não perco a comemoração. É sagrado. Ele só não trabalha aqui na Sexta-Feira da Paixão. Há dois anos, ainda ia para o mercado fazer compras. Mas, como teve chikungunya e Covid, não foi mais. Nessa época, fiquei preocupado, sem saber se meu amigo voltava do hospital. Com menos de 30 dias, ele retornou”.
Numa mesa próxima, o advogado Marcos Barros, 54, igualmente tece elogios ao mestre. Há apenas dois meses frequentando o Feijão Maravilha, sempre às quartas-feiras, já tem boas histórias para contar. “O forte daqui é o papo, a amizade e o osso que vem com o feijão, bem carnudo. Eu gosto. Fora que o cozimento no fogão à lenha é diferente”, destaca.
“Outra coisa interessante é a caixinha do seu Paraíba, e o fato de que ele não gosta de receber Pix. A gente já tem essa intimidade – minha com ele, e também com a Simone. Sempre estou reunindo os amigos e convidando mais gente para conhecer o bar”.
O homenageado ouve tudo com gosto. Já são quase 19h30 quando ele pega a bengala, levanta da cadeira de balanço e se dirige à mesa mais próxima do balcão de atendimento. É hora de tomar a sopa – prato diário, servido religiosamente no mesmo horário. No caminho, abraça a clientela, manda beijos, solta alguns impropérios engraçados. Passa pela plaquinha que fez questão de colocar com o tempo: “Não aceito debate político aqui”.
“É porque tinha gente que chegava e dizia, 'O Lula é ladrão', 'O Lula não presta'. Decidi que ia acabar com isso”, explica. “O que continua é a cachaça. Você pode ter o maior pecado do mundo, o pessoal não resolve nada. Sabe o que resolve? Botar um barzinho e vender cachaça. Lidando com um cara que bebe cachaça, você vai pro céu”.
Mais tarde, naquela mesma noite, o time do Ceará venceria o The Strongest por dois a um. Seu Paraíba decerto dormiu feliz. Os amigos torcedores também. Mas o bar não dorme nunca. Feito o próprio dono, sossegado chama: “Vamo entrando”.
Serviço
Feijão Maravilha O Paraibano
Aberto diariamente, a partir das 6h. Rua Dom Jerônimo, 256, bairro Farias Brito, Fortaleza