Morre Azuhli, artista plástica cearense, aos 29 anos

Familiares e amigos farão última homenagem nesta quinta-feira (16), e sepultamento será no sábado (18); artista era um dos nomes mais proeminentes da arte contemporânea do Estado

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
A cearense Luiza Veras, conhecida pelo nome artístico Azuhli morreu aos 29 anos
Legenda: A cearense Luiza Veras, conhecida pelo nome artístico Azuhli, morreu aos 29 anos
Foto: Fabiane de Paula

Morreu a artista visual Azuhli. Ela tinha 29 anos e era um dos nomes mais importantes da arte contemporânea do Ceará. 

Amigos e familiares farão última homenagem na Funerária Alvorada a partir das 19h desta quinta-feira (16). O sepultamento, por sua vez, acontecerá no cemitério Parque da Paz, às 10h, no sábado (18).

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Nascida Luíza Maynara Diogo Veras, Azuhli mantinha o ateliê no Palácio Progresso, no Centro de Fortaleza. O ambiente – repleto de plantas, uma das paixões dela – foi sede para a produção de peças que participaram de exposições no Brasil e em países do exterior. 

O amor era o grande tema que regia as criações da cearense. Em entrevista concedida ao Diário do Nordeste, em 2023, ela afirmou: "Minha casa, por exemplo, julgo ser organizada (assim como meu quarto, minhas coisas, minha vida em si). Mas o ateliê, quando você entra, vê a bagunça que está dentro da minha mente. É bem isso, sabe?”.

Poesia e corpo feminino

Nascida e crescida em Fortaleza, Azuhli elegeu a Capital e outras partes do mundo para aprofundar a dimensão da própria arte. Conectou-se com a produção em cores cedo, ainda criança, tendo como referência artistas da própria cidade-natal. 

Profissionalmente, iniciou as atividades na Universidad Nacional de las Artes, em Buenos Aires, onde morou por mais de um ano. Também teve ateliê na cidade do Porto, em Portugal, e participou de projeto de residência no espaço artístico Soma, na Cidade do México.

No site dela, tem-se que “sua produção é urgência, ressignificação e apropriação do corpo humano”. Não à toa, um dos focos de criação era o corpo feminino como ele é, e não da forma como o público encara como esteticamente aceitável.

“Os corpos, muitas vezes mutilados, trazem o questionamento do significado lúdico das ‘cicatrizes invisíveis sobre tela’, como ela gosta de chamar, sentido esse que nos leva a apropriação de cada pequeno detalhe de suas obras. As deformações são os traumas, os gritos interrompidos e a dor que cada pessoa sente e não pode deixar esvair”, expressa a mini-bio da artista plástica.

Legenda: Azuhli trabalhando em uma obra no ateliê sediado no Prédio Progresso, Centro de Fortaleza
Foto: Fabiane de Paula

A pintura de Azuhli possui forte conotação cromática, de alto valor poético, e reflete o compromisso dela com a luz equinocial de Fortaleza.  Na era contemporânea – na qual a artista não entregou de bandeja o significado das obras – é preciso parar diante da tela, apropriar-se e significar como as pinceladas cabem dentro do particular.

Durante residência no México, ela se deparou com histórias de amores impossíveis entre homens e mulheres LGBTs. Aquilo a tocou imensamente, e ela sentiu a necessidade de tornar públicas aquelas histórias escondidas em um baú. O sentimento resultou na exposição “O Amor é Coisa Mais Importante”, sucesso de público e crítica.

Refúgio nas próprias obras

Com relação ao próprio nome, Azuhli foi o modo que a artista encontrou para se refugiar na própria produção. O pseudônimo – também anagrama do nome de batismo – concebeu a liberdade artística desde a pincelada livre até o comprometimento com a desconstrução da pintura. 

Profissionalmente falando, aos 22 anos ela participou de algumas edições da exposição coletiva Muvuca e integrou o time de artistas da exposição de abertura, Em Desalinho, da Galeria Sem Título. Um prodígio.

“Descreveria meu ateliê de forma bem lúdica: é o espaço em que entro dentro da minha própria cabeça. É um ambiente muito acolhedor, e gosto de deixá-lo assim pra mim, pra quem tá comigo e para quem me visita”, explicou ao Verso em novembro de 2023.

Legenda: Pseudônimo da artista concebeu a liberdade artística, desde a pincelada livre até o comprometimento com a desconstrução da pintura
Foto: Fabiane de Paula

No mesmo ano, entre tantos projetos, lançou a primeira exposição individual. Intitulada “Amar sem pertencer”, ficou em cartaz na Galeria Karla Osorio, em Brasília. No total, 15 obras recentes integraram o panorama, com pinturas de diversos formatos.

Questões de gênero e sexualidade, como sempre, deram o tom enquanto marcadores políticos e sociais, com a artista retratando narrativas de resistência, de quem permaneceu acreditando em si e no amor, mesmo em tempos e culturas marcados pela intolerância.

No texto da crítica Lana Carrah Karla, o núcleo do trabalho da cearense: “Ao olhar para os quadros da artista, o corpo não enrijece. Contrariamente, evoca uma sensação de leveza como se nós, espectadores, pudéssemos finalmente afirmar para nós mesmos e para as pessoas ali retratadas: ‘Estar nesse corpo e nesse lugar é seguro, tudo está em paz!’”.

Artista-patrimônio

Dentro e fora do campo das Artes, o lamento é geral pela partida de Azuhli. Nas redes sociais, a Secretaria da Cultura do Ceará publicou uma nota em que expressa: "Azuhli foi uma fomentadora de espaços criativos e incentivadora de novos artistas da cena contemporânea cearense, assumindo a organização de galerias, ateliês e outros espaços expositivos. Entre cores vivas e contrastes marcantes, suas obras também estão presentes em espaços criativos culturais e marcas autorais de design cearense".

Amiga de Azuhli, a também artista visual Alice Dote esteve com ela desde o início da trajetória profissional. Entre sonhos e realizações, carrega incontáveis memórias.

"A gente sempre se estimulou, e acho que isso se repete em muitos artistas da nossa geração. É recorrente ver todo mundo falando como a Azuhli abriu caminhos pra muita gente. Ela dava os recursos, os meios, o modo de trilhar algo e de ser artista. E, mesmo sendo muito nova, acabou sendo uma precursora", divide.

Emocionada ao telefone, ainda incrédula com a notícia do falecimento, Dote diz que a morte de Azuhli é uma "perda imensurável" justamente por, entre outras coisas, ela ser a cara da nova geração de artistas visuais do Ceará.

Legenda: “Descreveria meu ateliê de forma bem lúdica: é o espaço em que entro dentro da minha própria cabeça", disse a artista ao Diário do Nordeste
Foto: Fabiane de Paula

"Ela continua em muita gente da cidade porque muitas pessoas foram desenhado por ela, têm algo dela, tatuagens – eu mesmo tenho uma com desenho dela. É como se ela também fosse uma espécie de patrimônio, deixando um pedacinho em cada pessoa das obras que assinou. Essa obra continua a ser nossa, com certeza. Mas não queríamos perder a pessoa".

Outro grande admirador do trabalho de Azuhli é Felipe Brito. Curador da mais recente exposição coletiva com obras da cearense, em São Paulo, "O Nordeste não é só um lugar", diz que o grande diferencial da criadora era a liberdade de representação dos corpos, sobretudo femininos.

"Ela já deixa muita falta pela sinceridade e pelos trabalhos que, desde o título, pareciam trechos de um diário. Eram quase como uma fresta dentro dessa figura emocional, querida e incrível que foi a Azuhli. A perda é muito forte para todos nós da Arte e para o cenário brasileiro e cearense da arte contemporânea. Estou com o coração partido".

No processo da coletiva, Brito compartilha que Azuhli foi "super solícita" e estava muito feliz de participar da exposição com as colegas nordestinas – incluindo a já citada Alice Dote, com quem ela esteve também em outra mostra coletiva, "Vórtex", com curadoria de Lucas Dilacerda.

"Era uma pessoa amorosa, que tinha muito a acrescentar. A exposição aqui em São Paulo acabou de terminar, as obras estavam voltando pra ela. E então veio essa notícia e me deixou muito desolado", confessa Felipe.

"O amor é a coisa mais importante"

"Mais que uma artista" é a forma como Leonardo Leal descreve Azuhli, grande amiga do galerista. Ela é quase um símbolo, uma bandeira. "O trabalho dela falava de minorias e de uma estética que não necessariamente era a do belo. Conseguia trazer beleza a algo que nem sempre era percebido pelas pessoas como bonito", percebe.

Nas primeiras obras, por exemplo, falou de feridas sentimentais por meio da pintura de cicatrizes. Procurava curar dores de coração ao simbolizar cirurgias. Na visão do amigo, isso se comunica com todo um grupo de pessoas que muitas vezes não tinha chance de se expressar.

Além disso, o fato de a artista não se prender a uma estética de cor – do que era considerado belo – atesta que, se olharmos com atenção, podemos enxergar beleza em tudo. "Acho que isso é a maior contribuição dela: desconstruía preconceitos".

Legenda: No mais recente ateliê da artista, a frase que se tornou uma das bandeiras de Azuhli
Foto: Fabiane de Paula

Em números, a escolha temática também foi farol. Apenas com o suporte de Leal, Azuhli assinou 80 trabalhos em exposições individuais. Neste ano, ela já havia participado de duas mostras coletivas. E tem obras com colecionadores dos Estados Unidos, Alemanha, França, Itália, São Paulo, Rio de Janeiro, entre outros lugares. Transcendeu, em muito, a barreira do Ceará. 

O maior quadro de autoria dela, "O amor é a coisa mais importante", com dois metros de altura, não à toa fica ao lado da mesa de jantar de Leonardo. É a mensagem de um mundo mais igual. "Se a gente carregasse isso dentro da gente, viveríamos numa sociedade melhor", situa.

"Estou falando do lugar de um homem hétero, branco, bem-sucedido. Em tese, é uma classe que não sabe olhar para o outro. E o que o outro tá pedindo é só pra ser visto. Quem entende essa frase, 'o amor é a coisa mais importante', sabe olhar para o outro, se colocar no lugar dele".

E deseja que ecoe: "Azuhli deixou uma semente. A arte não se perde. É isso que a gente tem que fazer agora: dar assistência à família e perpetuar todas essas mensagens de inclusão, de respeito, que ela colocou nas obras".

 

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