Por que obras de Clarice Lispector continuam sendo adaptadas para o cinema e seguem relevantes?
“A Paixão segundo GH” e reexibição de “A Hora da Estrela” acendem novo interesse em diferentes gerações e comprovam caráter atemporal da literatura clariciana
Clarice Lispector está de volta. “A Hora da Estrela”, clássico do cinema nacional lançado em 1985, retorna aos cinemas de todo o país nesta quinta-feira (16) com cópias digitalizadas. O filme de Suzana Amaral foi agraciado com o Urso de Prata de Melhor Atriz no Festival de Berlim e foi o grande vencedor do Festival de Brasília no ano de lançamento. Um marco.
Mas o retorno de Lispector não se deve apenas a esse longa. Outro filme adaptado da obra da escritora – “A Paixão segundo GH”, dirigido por Luiz Fernando Carvalho – há pouco compunha a grade de exibição nas telonas, em franco movimento de imersão na literatura clariciana. Está na moda falar dela. E quando deixou de ser?
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Vários fatores explicam essa adesão, capaz de atrair antigas e novas gerações. “Em primeiro lugar, comprova o caráter perene e universal da obra de Clarice, que já se firmou como uma autora ‘clássica moderna’ da segunda metade do século XX, na qualidade de escritora em língua portuguesa mais conhecida e traduzida de todos os tempos”, situa Pedro Karp Vasquez, editor responsável pela obra dela na editora Rocco.
Segundo ele, o público amadureceu e está mais preparado hoje para apreciar o legado de Lispector do que estava quando ela começou a escrever, na década de 1940 – período em que mais da metade da população era analfabeta e o machismo imperava. Sem esquecer, claro, das diversas questões importantes abordadas pela pena atenta e forte da artista.
“O papel da mulher na sociedade, por exemplo, passou a ter maior relevância de tal forma que as feministas – e agora, as neofeministas – reconheceram de imediato Clarice como uma de suas precursoras”. Isso talvez explique a opinião do editor no que tange à recepção das adaptações tanto para pessoas de agora quanto de outrora.
Na visão de Karp, todos receberão os filmes da mesma forma, uma vez serem temáticas atemporais e universais. “A escrita de Clarice não era presa a uma época e a um local determinados – mesmo no caso de ‘A Hora da Estrela’, drama de uma retirante alagoense radicada no Rio de Janeiro. Isso porque o mais importante nela são as questões existenciais e transcendentais, na linha do ‘Quem somos nós, de onde viemos e para onde vamos’”.
Longe de serem ultrapassadas, as reflexões são comuns a todos os seres humanos em todos os tempos. Hoje, seguem cada vez mais atuais frente ao mundo informatizado, no qual o indivíduo é despersonalizado e cada vez mais oprimido pelas circunstâncias políticas e, sobretudo, econômicas. “São obras realmente fundamentais”.
Outra vez Macabéa
Sentada em uma das cadeiras do aeroporto de Fortaleza à espera do voo para São Paulo – onde cumpriria vasta agenda – Marcélia Cartaxo também conversou com o Verso a fim de localizar que momento é este das histórias de Clarice. Nas palavras da eterna Macabéa, protagonista de “A Hora da Estrela”, o momento para reverenciá-la é sempre.
“Acho que, de tempos em tempos, Clarice vai voltar. Enquanto tiver alguém com curiosidade em nossa história, em nossa literatura e no cinema brasileiro, ela nunca vai deixar de existir”, observa. O ímpeto da escritora de abordar assuntos pertinentes com uma dicção tão livre é um dos atributos destacados por Cartaxo. Lispector, para ela, é tradutora do mundo.
“Ela teve essa voz capaz de falar de um jeito todo próprio da gente, da mulher, dela mesma. É alguém que traduziu muito bem essas questões, colocou muito bem em palavras”. Não à toa, se ficasse cara a cara com a autora, nada expressaria melhor o sentimento que dizer “muito obrigado”. Ser grata pelas epifanias, pelos horizontes, pelas realizações.
Faz sentido. Por meio da cineasta Suzana Amaral, Clarice presenteou Marcélia com uma de suas principais heroínas. A atriz paraibana foi descoberta aos 21 anos em uma peça de teatro e, daí, viu o próprio talento deslanchar. Premiada em Berlim e em tantos outros lugares ao redor do globo, continua espelhando a face da personagem de Lispector décadas depois da estreia do filme.
É motivo de alegria, e faz recordar da preparação para o papel – o primeiro dela no cinema. “Foi a descoberta da minha vida, da minha carreira, dos meus sonhos. Até então eu fazia teatro e desejava ser uma grande atriz, mas não sabia como galgar isso. Macabéa mudou minha vida. O jeito de Suzana Amaral me guiar por esse caminho fez toda a diferença”, conta, lembrando também dos conselhos e da presença da diretora, falecida em 2020.
“Ela me deu uma coisa pronta para eu vivenciar qualquer outro personagem. Eu tinha um ponto de partida – não ia ficar com a mente solta, sem ter o que fazer, quando fizesse algum teste ou procurasse um personagem ou trabalho de pesquisa. Foi muito lindo. E foi por meio de coisas assim que eu me senti segura para seguir na carreira”.
Ver e rever Clarice
Questionada se já reviu “A Hora da Estrela” após o lançamento, a atriz confessa ter reassistido à produção várias vezes. E está pronta para ver de novo nesse instante em que ela ocupa as telonas em 2024. Em cada uma, uma camada diferente de entendimento e apreciação. “Outro dia encontrei um pessoal que estava se preparando para o vestibular e ia ler o livro. Fiquei tão emocionada... Olha o tamanho disso, que bonito”, divide.
“A gente sabe que as coisas ruins que acontecem em nosso país poderiam ser melhor planejadas. O que está ocorrendo no Rio Grande do Sul, por exemplo: já vivemos isso em outro contexto e em outro extremo, com a fome, a miséria, a seca. E aí tem essa mulher com um olhar tão grande, tão profundo sobre o Brasil, que abraçou, foi acolhida e deu uma resposta muito profunda a ele. Ela quis falar sobre. Talvez seja uma das estrangeiras mais brasileiras que a gente tem”.
Pedro Karp Vasquez complementa. Há livros que morrem junto aos autores e outros que ultrapassam os séculos, mantendo intacto todo o poder de inspiração. “A obra de Clarice já demonstrou ter essa força, pois ela é hoje muitíssimo mais conhecida do que foi em seu tempo de vida”, considera.
“Ela já inspirou filmes, peças teatrais, programas de TV, músicas, obras de arte, assim como outras obras literárias, muitas vezes com resultados impressionantes, como no caso dos dois filmes citados. Isso sempre contribuiu para reacender o interesse pelos livros originais, pois quem não conhece as obras que inspiraram todos esses criadores fica curioso em ler os livros que as motivaram”.
No momento, o editor não tem conhecimento de outros filmes ou peças teatrais em preparação carregando o nome da escritora. Mas certamente vem coisa nova em ambos os setores por aí. “No que diz respeito a um livro que ainda não foi devidamente explorado penso que é seu último livro, publicado postumamente, ‘Um sopro de vida’. É um trabalho surpreendente, no qual Clarice retoma diversas das questões que a preocuparam desde o primeiro livro, ‘Perto do coração selvagem’”.
Em suma, para chegados, agregados ou mesmo ainda não-iniciados, ninguém passa indiferente à Lispector. No que tange ao mercado editorial, não há nada inédito para sair – uma vez que toda a obra dela, composta por 18 títulos, foi publicada com capas que reproduzem pinturas feitas por ela, em ocasião das comemorações do centenário de nascimento, no ano de 2020.
“Contudo, existem as edições especiais, como aquelas que reproduzem os manuscritos e datiloscritos dela, acompanhados de ensaios inéditos encomendados a pesquisadores, críticos e professores de renome. O próximo livro a sair nesta coleção – de capa dura, com sobrecapa – é a coletânea de contos ‘A bela e a fera’, que contém ótimos ensaios de Yudith Rosenbaum, Claudia Nina, José Castello, Faustino Teixeira e Bernardo Ajzenberg”.
Aguardemos.