Qual o cenário da educação de tempo integral no Ceará

Com avanço na oferta de matrículas para estudantes, o Estado é o terceiro do Brasil na proporção de alunos em tempo integral matriculados na rede pública de ensino médio

Escrito por Gabriela Custódio , ceara@svm.com.br
Alunos em escola estadual no Ceará
Legenda: No tempo integral, os estudantes cumprem uma jornada de sete a nove horas diárias e têm três refeições garantidas por dia
Foto: Fabiane de Paula

Em passagem pelo Ceará, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o ministro da Educação, Camilo Santana (PT), lançam o Programa Escolas de Tempo Integral nesta sexta-feira (12). Um dos estados que se destacam nesse tipo de ensino, o Ceará foi escolhido pelo chefe do Executivo para anunciar a iniciativa, cujo objetivo é ampliar a oferta do tempo integral nas escolas brasileiras de educação básica em 1 milhão de matrículas.

No tempo integral, os estudantes cumprem uma jornada de sete a nove horas diárias e têm três refeições garantidas por dia. O currículo das Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral (EEMTIs) é composto pela formação geral básica e por itinerários formativos, com disciplinas eletivas e projeto de vida. Já nas escolas profissionais, o conteúdo do Ensino Médio é ofertado de forma integrada a cursos técnicos.

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A ampliação da jornada oferece “duas vantagens imediatas” aos alunos, segundo Eloisa Vidal, professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece): preservá-los da violência e assegurar uma alimentação equilibrada ao longo do dia. Além disso, ter mais horas de aula por dia “faz uma enorme diferença”, seja para reforço dos componentes curriculares “tradicionais”, como português e matemática, ou para ter acesso a outros tipos de conhecimentos.

A experiência do Ceará

No Ceará, o modelo de EEMTIs foi adotado a partir de 2016 na rede estadual e, seis anos depois, o Estado é o terceiro do Brasil na proporção de alunos em tempo integral matriculados na rede pública de ensino médio. Segundo dados do Censo Escolar 2022, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), o Ceará está atrás apenas de Pernambuco e da Paraíba.

No ensino fundamental, por outro lado, o Ceará ocupa o primeiro lugar, com 41% dos alunos matriculados em tempo integral.

“O Ceará começou com poucas escolas, e hoje já tem mais de trezentas nessa oferta. É uma iniciativa louvável, do ponto de vista de ampliação do tempo escolar para os alunos do ensino médio”, afirma a professora Eloisa Vidal. A docente avalia que a experiência do Ceará “estava muito bem desenhada”.

“No sentido de oferta dos componentes curriculares obrigatórios, segundo a legislação, e da oferta de um conjunto de disciplinas eletivas para que os alunos pudessem escolher disciplinas, unidades curriculares com que tivessem mais afinidade sem sacrificar os componentes curriculares”.
Eloisa Vidal
Professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece)

Porém, Eloisa Vidal critica a adoção do novo Ensino Médio. “Com o advento da reforma que reduz a carga horária dos componentes curriculares, eu acho que nós passamos a ter um problema e esse projeto de ampliação do tempo escolar se perde um pouco com este novo currículo, que tem um comprometimento muito grande das disciplinas básicas exigidas pela legislação”, avalia.

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Idevaldo Bodião, professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará (Faced/UFC) e membro do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca), também é contrário ao novo currículo.

“A escola de ensino médio do novo ensino médio está fraudando o adolescente que chega à escola porque não permite a ele o acesso ao saber e ao conhecimento”.
Idevaldo Bodião
professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará (Faced/UFC) e membro do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca)

O desafio de garantir não produzir mais desigualdades

Para o professor, a política de tempo integral é “interessante e desejável” e o esforço do estado brasileiro pela ampliação da jornada — em alguns estados mais que em outros — deve ser reconhecido. Apesar disso, ele aponta que a expansão do ensino médio em geral e do ensino médio de tempo integral apresenta problemas.

Um desses pontos é como garantir a permanência e assistência estudantil para jovens que precisam trabalhar. O professor cita a cearense Jade Beatriz, presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), ao pontuar a necessidade de se criar bolsas de estudo e passe livre para estudantes nessas situações.

A professora Eloisa Vidal também aponta a necessidade de se refletir sobre como estudantes da zona rural e que estudam no turno da noite podem ser beneficiados pelo tempo integral.

“Os jovens do noturno, os jovens das localidades rurais, o jovem que trabalha um expediente e não pode frequentar escolas de tempo integral. Como ele vai ter oportunidades? Ele vai ter que parar de estudar porque não tem outras opções? O ensino integral vai conviver com o ensino de meio período de turno único?”, questiona
.

“Tudo isso são questões que precisam ser colocadas e discutidas, sob pena de, ao não discutirmos, nós estarmos desenvolvendo iniciativas que aumentem as desigualdades em vez de diminuí-las”, aponta a professora.

“Ranking de desigualdade”

Idevaldo Bodião destaca um aspecto que caracteriza como “muito delicado, no sentido de como resolver”. De acordo com o professor, há um risco de que esteja sendo criado no Ceará, dentro do sistema educativo estadual, um “ranking de desigualdade”.

Ele aponta que a escola de tempo integral profissionalizante não atende necessariamente a própria vizinhança. “Ela faz seleção e traz os melhores alunos para si. (...) O aluno que tem pouca formação, que tem pouca escolarização, é alijado da escola de tempo integral profissionalizante. Então, aquela que está melhor equipada vai receber o melhor aluno, o que cria uma desigualdade dentro do próprio sistema”, afirma.

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Para o professor, há pelo menos quatro redes de ensino na rede estadual do Ceará: as escolas de tempo integral profissionalizantes — com mais equipamentos, mais recursos e melhores instalações —, as escolas de tempo integral “regulares”, as escolas que ainda não viraram em tempo integral e as escolas noturnas.

“Nesta ordem eu tenho padrões de qualidade da escolarização oferecida gradativamente pior”, aponta.

A professora Eloisa Vidal também divide a rede de ensino em quatro sub redes, mas ligeiramente diferente do professor Bodião. Ela cita três visíveis — as escolas profissionalizantes, as de tempo integral, as regulares noturnas — e acrescenta uma invisível: os anexos escolares

O termo anexos escolares, como são chamadas as extensões de matrículas, é utilizado no Governo do Ceará e consiste na matrícula de crianças e jovens na educação básica em uma escola que possui, além da sede,  outros  espaços  físicos  separados  territorialmente. A modalidade foi criada para atender principalmente a população do meio rural e não consta especificamente no Censo Escolar — por isso a caracterização como invisível.

“Esse jovem tem o direito à educação, porque afinal de contas a educação chega pra ele, mas ele sofre uma uma desigualdade enorme em relação a todos os outros. Ele está lá isolado, com professores polivalentes, com infraestrutura muito precária. Quando muito, ele tem três horas de aula por dia”, avalia a professora.

Adaptação ao ensino de tempo integral

Após passar por mudanças como construção de vestiários, adaptação do quadro de funcionários e compra de equipamentos de buffet, a Escola de Ensino Médio de Tempo Integral Presidente José Sarney passou a ofertar a jornada prolongada em 2023. A instituição localizada no bairro Araturi, em Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza, estava entre as 46 escolas estaduais listadas para a ampliação de jornada em anúncio do então governador Camilo Santana, em junho de 2021.

tempo integral
Legenda: No ensino fundamental, por outro lado, o Ceará ocupa o primeiro lugar, com 41% dos alunos matriculados em tempo integral.
Foto: Thiago Gadelha

Professor de História da instituição desde 2014, Aramis Alexandre conta que a mudança para o Ensino Integral é um “verdadeiro desafio” tanto para os professores quanto para os alunos. De um lado, para os alunos a jornada mais longa exige mais disciplina e organização no processo de aprendizagem, além da adaptação ao currículo do novo Ensino Médio.

Do outro, Aramis aponta que os professores precisam compreender a fase de adaptação e a resistência de muitos estudantes frente à quantidade de aulas e ao cansaço mental, “principalmente em um momento pós pandemia”.

“Os docentes têm que exercitar muito a paciência e saber dosar a quantidade de conteúdo e o ritmo de aprendizagem das turmas para não exigir demais dos estudantes”, afirma.
Aramis Alexandre
Professor de História da Escola de Ensino Médio de Tempo Integral Presidente José Sarney

Apesar de ver aspectos positivos no tempo integral, como a oportunidade de aprofundar conteúdos devido ao tempo que os estudantes têm para exercitar as atividades, o professor aponta que outros momentos de descanso e de "internalização do conhecimento", que não necessariamente precisam ocorrer na escola, também são importantes.

“O ambiente escolar pode ser estimulante, mas também uma distração e não podemos esquecer que estamos lidando com adolescentes e que vivemos ainda uma ‘recuperação’ psicológica, social e econômica de uma pandemia que afetou todos de maneira que ninguém imaginava”, opina.

Além disso, Aramis avalia que é necessário mais investimento e que que mais escolas sejam criadas para que haja melhor distribuição de alunos por sala de aula. “Embora existam muitos debates acerca de uma mesma aula ser possível para 20 e 45 estudantes, o acompanhamento não é. (...) A quantidade de alunos precisa ser reduzida”, destaca.

Formação e remuneração dos profissionais, assim como a estrutura das escolas, também são aspectos que precisam de investimento e melhorias, segundo o professor. “As escolas precisam ter salas climatizadas, com cadeiras confortáveis para que os alunos possam passar o dia com uma mínima qualidade de vida, que por sua vez gera mais aprendizagem. Acaba-se sempre batendo na tecla do investimento. O projeto precisa de gastos. Não se tem uma educação de qualidade sem investimentos”, finaliza.

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