Que mulher muda a vida do seu lugar? Audiossérie traz histórias de cearenses guardiãs de comunidades

Voltada para o público infantil, produção está disponível gratuitamente nas plataformas digitais e chega à segunda temporada com seis episódios sobre lutas, memórias e esperanças femininas

Escrito por
Diego Barbosa diego.barbosa@svm.com.br
(Atualizado às 14:58)
Na imagem, a atriz Maana Ferreira interpreta a personagem Esperança no projeto O Livro das Guardiãs II
Legenda: A atriz Maana Ferreira é a voz de Esperança, protagonista da segunda temporada da série
Foto: Fernanda Barros

Duas irmãs gêmeas fundadoras de um aquilombamento contemporâneo no Crato. Uma ativista ambiental e mediadora de leitura à frente de uma biblioteca comunitária em Fortaleza. Uma linhagem de brincantes da Dança de São Gonçalo, tradição na zona rural de Quixadá. Mulheres, elas imprimem força, poesia e inspiração nos lugares onde fazem morada. Mudam a vida, no melhor sentido. E, agora, têm as próprias histórias contadas ao pé do ouvido.

São as protagonistas de “O Livro das Guardiãs”, audiossérie cuja segunda temporada foi lançada no último mês de junho e deseja jogar luz sobre a jornada de mulheres guardiãs das próprias comunidades. Os seis novos episódios estão disponíveis gratuitamente nas plataformas digitais e, a priori, são voltados ao público infantil.

Basta escutar os primeiros minutos das produções para perceber, porém, que o convite é para que todas as faixas de idade cheguem junto a fim de ouvir narrativas capazes de encantar e estimular o melhor em nós. “São histórias ao mesmo tempo corriqueiras e extraordinárias, e que não são de uma pessoa só, mas sim de uma comunidade. Mulheres, portanto, que vivem em coletividade e, dessa coletividade, constroem algo único”.

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A fala é de Camilla Osório de Castro, criadora, roteirista e diretora do projeto. Aos 29 anos, ela diz que cada uma das mulheres participantes da audiossérie cruzou o caminho dela de forma especial ao longo dos anos. Por acreditar na força e no impacto desses encontros, a artista quis compartilhar o sentimento e prestar uma homenagem.

Em suma, falar sobre esperança. Que, mesmo na adversidade, é possível acreditar no destemor feminino e enxergar outras possibilidades de vida e horizonte. Não à toa, ganha destaque nesta temporada a personagem de mesmo nome do sentimento, Esperança – presente na anterior, mas sem o devido destaque do protagonismo.

Na trama, ela está em crise e sente que perdeu a identidade, logo toda a temporada representa a busca por si mesma nas histórias que ouvimos. Segundo Camila, a ideia de conceber o roteiro a partir desse mote veio de uma emoção pessoal. “Estamos vivendo um período muito difícil, em que todos nos sentimos sem esperanças. E eu observo que, para crianças e adolescentes, isso é muito pesado, crescer em um mundo que parece condenado”.

Interpretada na voz de Maana Ferreira, Esperança, a personagem, soma-se às guardiãs Memória e Luta, feitas pelas atrizes Eliahne Brasileiro e Paula Yemanjá, respectivamente. Com valentia, elas embarcam nessa viagem complexa, embora não menos fascinante, para salvar narrativas importantes do esquecimento e redescobrir os próprios percursos.

Como o projeto começou

“O Livro das Guardiãs” surgiu em 2020 e integra a pesquisa de um projeto de longa-metragem chamado “Maíra e o Jequitibá Mágico”, no qual já se tinha a ideia de uma personagem guardiã das histórias. A partir do levantamento para o filme, Camilla sentiu incômodo por perceber como existem histórias que conhecemos pouco, apesar de constituírem nossa cultura de maneira profunda.

Dandara de Palmares e Maria de Araújo foram as que mais lhe inspiraram pelo nível de apagamento que sofreram – mesmo sendo mulheres ativas em processos históricos de grande alcance.

“Dandara é tão apagada que a gente não sabe se ela de fato existiu, então o registro histórico da história de Palmares é muito focado na figura de Zumbi. Mesmo que não tenha existido especificamente uma mulher chamada Dandara, com certeza existiam mulheres ali. E por que a gente não sabe o nome delas? A mesma coisa com a Maria de Araújo”, analisa.

Na imagem, a atriz Paula Yemanjá durante gravação do projeto O Livro das Guardiãs II
Legenda: Paula Yemanjá é a voz da personagem Luta no projeto
Foto: Fernanda Barros

Por isso a crença da diretora de que a memória do passado protege e também cuida do futuro. Nas Guardiãs, as personagens assumem exatamente esses arquétipos que cuidam e salvaguardam as histórias. Oferecem apontamento prático porque tem algo um tanto didático também na proposta da produção. “Como cuido das histórias e como cuido do futuro? É a partir da ação dessas ideias, dessas forças em mim. A memória, a luta e a esperança são isso”.

Há diferenças entre a primeira e a segunda temporada, de conceito e de conteúdo. Na anterior, havia as guardiãs Luta e Memória e o arco narrativo era que Luta tinha perdido a Memória, sendo então guiada pela própria Memória para recordar as histórias das mulheres brasileiras. Por isso mesmo, o tomo de episódios tinha uma abordagem mais geral, eram mulheres de vários períodos históricos distintos e de várias partes do Brasil.

Na imagem, a atriz Eliahne Brasileiro interpreta a personagem Memória no projeto O Livro das Guardiãs II
Legenda: Na audiossérie, Eliahne Brasileiro é Memória
Foto: Fernanda Barros

A narrativa também era mais cômica e existia um imaginário de viagem no tempo. Agora, é diferente. O recorte da segunda temporada é muito mais presente e aterrado. São jornadas de mulheres cearenses com atuações fortes nas próprias comunidades e vidas consideradas comuns. É tudo intencional, para que quem ouça pense: “Essa mulher parece com minha mãe, minha avó”.

“São histórias extraordinárias, emocionantes e impactantes em uma outra lógica que não é essa da História Oficial. Por isso mesmo, a trilha musical é toda orgânica, com instrumentos mais acústicos devido a essa conexão maior das histórias com o presente e com a terra. A gente se propôs a fabular essas vidas. Não apenas narrar a vida de outra pessoa, mas também incluir o maravilhoso, o mágico... É muito delicado e exigiu muito diálogo com elas”.

Os episódios são estes:

  • Episódio 1, “A Encantadora de Barro”: conta a história de Maria Cândido, uma artista que trabalhava com esculturas de barro no Juazeiro do Norte;
  • Episódio 2, “A Menina Sabiá”: conta a história de Gleiciany Queiróz, a Gleicy, ativista ambiental e mediadora de leitura que lidera a biblioteca Sabiá na Sabiaguaba, em Fortaleza;
  • Episódio 3, “A biblioteca infinita”: conta a história de Rita de Cássia, a dona Ritinha, e de como ela e o filho criaram a biblioteca Livro Livre, no Curió, em Fortaleza;
  • Episódio 4, “A história da Mulher Serpente”: conta a história do Povo Karão Jaguaribaras, habitante na divisa entre Aratuba e Canindé, e Merremii Karão Jaguaribaras, a mulher serpente, uma artista visual e pesquisadora que faz parte dessa etnia;
  • Episódio 5, “As guardiãs da dança”: conta a história da linhagem de mulheres do Quilombo Sítio Veiga, realizadoras da dança de São Gonçalo, tradição basilar na identidade e na cultura da comunidade localizada na zona rural de Quixadá;
  • Episódio 6, “Quando você encontra a sua estrela”: conta a história das gêmeas Verônica e Valéria Neves, conhecidas como As Pretas, fundadoras de um aquilombamento contemporâneo – o Terreiro das Pretas, no Crato.

Para o futuro, novas guardiãs

Dado o alcance positivo da audiossérie, há vários motivos para continuá-la. Camilla pensa em criar mais guardiãs e abordar histórias de mulheres de outros territórios brasileiros. “Tem muita coisa pouco contada no Brasil, então há muito espaço pra expandir esse projeto sem se repetir. O escopo de narrativa seriada é interessante porque a gente consegue ter um recorte a cada temporada, então podemos passear pelo território e pela temporalidade”, diz.

A bem da verdade, as novidades já começaram a surgir. Além do lançamento nas plataformas digitais, a iniciativa também conta com rodas de conversa em diferentes cidades do Ceará – Fortaleza, Aratuba, Quixadá e Crato são contempladas – e um livro ilustrado reunindo as jornadas contadas nesta temporada, adaptadas para a linguagem escrita. A intenção é estimular o hábito da leitura nas crianças e expandir o alcance do conteúdo.

Na imagem, a criadora, roteirista e diretora de O Livro das Guardiãs II, Camilla Osório de Castro
Legenda: A criadora, roteirista e diretora do projeto, Camilla Osório de Castro
Foto: Fernanda Barros

O áudio continuará, contudo, como a principal ferramenta de concepção dos episódios, algo festejado por Camilla e toda a equipe. A realizadora acredita que projetos em áudio têm crescido no Ceará, com possibilidade de franco crescimento. “Seria bem legal se existissem linhas de financiamento específicas para essa linguagem, por exemplo, no âmbito das políticas públicas municipais e estaduais”, sugere.

“A narrativa em áudio está em ascensão porque nos traz muitas oportunidades, tanto de criação quanto de produção. Se por um lado esse tipo de narrativa é a mais antiga que existe – muito anterior à escrita, com as histórias contadas ao redor da fogueira – por outro ainda é um campo pouco explorado pela ficção. Logo, tem muito espaço pra criar coisas novas, experimentar.... E é mais barato do que o vídeo”.


Serviço
Audiossérie O Livro das Guardiãs II
Episódios disponíveis nas plataformas digitais Spotify, Soundcloud e Youtube. Mais informações por meio do perfil do projeto nas redes sociais

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