Como arqueólogos escavam áreas de Fortaleza para descobrir resquícios da história enterrada
Em canteiros de obras com grandes remoções de terra, profissionais tentam resgatar o máximo de informações sobre os hábitos de populações remotas
Há muitas histórias enterradas em Fortaleza e algumas delas, vez ou outra, para sorte das gerações atuais, emergem em escavações de obras em distintas áreas. São vestígios materiais da ocupação humana que revelam como a cidade foi ocupada e habitada. Objetos usados há 50, 100, 150 anos ou mais informam sobre experiências remotas.
E quem realiza essas descobertas? Como as registra? O que os arqueólogos têm encontrado no solo de Fortaleza em obras, por exemplo, como a que ocorre atualmente no Centro de Fortaleza, para a construção da Linha Leste do Metrô?
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Cerâmicas, garrafas, faianças (espécie de cerâmica branca) portuguesas e inglesas, ferros, vidros, canhão, cachimbo, e até osso de animal foram achados em escavações, nos últimos anos, nos sítios arqueológicos na Capital. Fragmentos que, em análise inicial, remetem aos séculos 18, 19 e 20.
Em 2021, foram revelados em 4 pontos de trabalhos da Linha Leste do Metrofor, e na intervenção da Estação das Artes, próxima à Praça da Estação e à antiga Estação Ferroviária João Felipe diversos materiais.
Antes, Fortaleza já tinha, ao menos, outros 4 sítios arqueológicos registrados: dois no Parque Natural Municipal das Dunas (com achados pré-históricos), na Sabiaguaba, onde foram encontrados cerâmicas datadas em 5 mil anos; a Igreja do Rosário, no Centro, onde acharam ossos humanos, louças, vidro e objetos religiosos; e a Casa José de Alencar, no bairro de mesmo nome, onde havia louças, moedas e estruturas de ferro nas ruínas do antigo engenho da família Alencar.
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Em todos esses lugares, as descobertas são reconhecidas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional Ceará (Iphan) como sítios arqueológicos.
1. Acompanhamento Arqueológico
O primeiro ponto é que, segundo as normas brasileiras - legislação federal - as obras consideradas de média e alta interferência sobre as condições do solo, por exemplo, escavações que façam grandes remoções de terra, precisam do Acompanhamento Arqueológico.
Aí começa o trabalho das equipes de arqueologia ligadas às empresas especializadas no serviço.
Nessas situações, os empreendedores, seja a iniciativa privada ou o próprio poder público, precisam ter um Projeto de Avaliação de Impacto ao Patrimônio Arqueológico. O documento deve ser autorizado pelo Iphan.
A presença de um arqueólogo na obra é também obrigatória. No dia a dia, esse profissional coordena o trabalho quando eventualmente podem ser descobertos artefatos. Compete à empresa contratada fazer os procedimentos adequados. Todo o material retirado do solo pertence à União.
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2. Mãos à obra
Na construção da Linha Leste do Metrô, no Centro, nas proximidades da Escola Justiniano de Serpa, os tapumes envolvem um dos sítios arqueológicos identificados em 2021 em Fortaleza. A intervenção no local é para estruturação de um poço de ventilação do metrô. Desde a identificação do sítio, no segundo semestre de 2021, a obra segue parada.
A paralisação é obrigatória. Esse é um ponto fundamental para garantir, na prática, o trabalho dos arqueólogos.
No local, após os primeiros achados, explica o coordenador de gestão do Programa de Acompanhamento Arqueológico da Linha Leste, da empresa ARC Soluções em Arqueologia, Luís Mafrense, as informações foram enviadas ao Iphan, que reconheceu a existência do sítio arqueológico.
A ARC foi contratada pelas empresas executoras da obra para fazer o acompanhamento arqueológico. Na área, profissionais, desde o segundo semestre de 2021, escavam o solo.
Em 2022, devido às fortes chuvas, o trabalho tem sido mais lento e complexo, relata a equipe. Inclusive tem causado imprevisibilidade em alguns prazos.
As águas deixam as escavações cheias de lama e, por isso, sempre que há sol é preciso “limpar” os terrenos, antes de prosseguir. Isso também eleva o tempo para a coleta do material. Nas mãos as equipes têm pequenas pás (semelhantes às utilizadas em jardinagem ou colheres de pedreiro) e pincéis (para ‘varrer’ a areia).
A arqueóloga e coordenadora geral do trabalho no local, Vanessa Rodrigues, explica que a área a ser escavada é delimitada na primeira ida a campo. “A gente define se vai ser dois por dois, um por um, e a profundidade que vai descer. Geralmente, já é acordado com o Iphan”.
3. Achados e identificação
No sítio perto da Escola Justiniano de Serpa já foram encontrados fragmentos de faianças, vidros e cerâmicas com cronologia do século 19 e 20. No contexto mais recente, até um cachimbo foi achado e ainda passará por análise.
O tamanho das peças e a “integralidade” delas varia de local para local e do tipo de material. Mas, geralmente os achados são pequenos fragmentos.
Em um perímetro, determinado pelo Iphan, vizinho ao poço de ventilação, foi instalada uma marcação, em quadrículos (feito por linhas fixadas em hastes na terra) para determinar física e geograficamente a localização exata dos objetos.
Isso porque, explica Luís, ao retirar os fragmentos, a arqueologia literalmente recolhe os vestígios. Daí, a obrigatoriedade de detalhar precisamente onde cada material foi localizado.
“A arqueologia por si só é ‘destrutiva’, porque a partir do momento que a gente está recolhendo, está destruindo os vestígios. Então, tudo tem que ser muito bem registrado. A partir do momento que você retira, aquela informação já se dissipou”.
Na área, os profissionais já escavaram uma parte e devem seguir até 2 metros de profundidade. A medida foi definida junto ao Iphan devido às características do sítio. Em outros casos, a escavação pode avançar mais. “O sítio é que vai conduzir a própria escavação”, completa.
“Cada quadrado desse é um sistema de quadrícula, que é uma unidade de escavação. Então, a partir dela, delimitamos o local de cada quadrícula. A gente sabe que isso aqui é a escala quadrícula um, dois, três, quatro e vai medindo. Quando aparece algum material já se sabe que é desse local, dessa área de escavação”, afirma.
A equipe é composta por um arqueólogo coordenador, uma arqueóloga de campo e cerca de 8 auxiliares de escavação, que podem atuar também na parte mais pesada de “retirada de terra”.
4.Marcação, higienização e registro
Cada material encontrado é sinalizado com uma bandeirinha no solo. Em dias de chuvas, o material é colocado em sacos plásticos próprios para a conservação. Eles são retirados apenas quando o registro é concluído.
“Posteriormente, a gente faz a plotação desse material com extração total. Depois de plotar a gente pega o material e faz uma etiqueta informando o número do ponto topográfico, qual o tipo de material e um número de etiqueta. Acondiciona no saquinho plástico separado por tipologia. Acondiciona inicialmente aqui (no canteiro de obra) e depois leva para o laboratório e uma instituição de guarda”.
Em algumas situações, pode ocorrer de pedaços de material serem retirados nas escavações e a terra já removida precisa ser peneirada. No caso do túnel de ventilação do metrô isso aconteceu. A terra retirada especificamente do poço foi avaliada para saber se havia fragmentos em meio a ela.
A escavação é encerrada quando o Iphan faz uma visita técnica ao local e orienta a conclusão.
5. Do laboratório à instituição de guarda
O material recolhido e catalogado é enviado ao laboratório. No trabalho também é possível comparar as fotos, fazer diferença entre contextos históricos. As análises laboratoriais são realizadas no Ceará. Mas, explica Vanessa, em alguns casos a análise da datação (definição da idade) vai para outros estados.
Depois todos os registros são cadastrados em um site específico do Iphan. Os relatórios podem ser acessados por toda a população. Neles é possível ver fotos, datação, característica dos fragmentos e uma contextualização dos achados.
Vanessa lembra que além de ampliar o conhecimento geral, essa disponibilidade auxilia pesquisadores que querem aprofundar trabalhos sobre achados arqueológicos.
Os artefatos nas quais não é possível fazer a contextualização, por não ter elementos que permitam fazê-la, são cadastrados como “bem arqueológico móvel”.
Ao serem finalizados os procedimentos de higienização, numeração e registro, o material encontrado é enviado a alguma instituição de guarda, que deve ser aprovada pelo Iphan.
Esse local pode ser um museu, uma universidade ou um instituto cultural. O material fica preservado, conforme estabelece a legislação brasileira, e pode ou não ficar exposto à visitação pública.