Memória de nós

A partir de hoje, o Diário do Nordeste passa a publicar, todos os domingos, crônicas sobre Fortaleza, sua história, dilemas, rotinas, avanços e conquistas que têm como palco os espaços da cidade

Escrito por Dahiana Araújo , metro@verdesmares.com.br
Legenda: O prédio da Escola Jesus, Maria e José, no Centro, faz parte de um conjunto arquitetônico tombado.
Foto: Foto: Helosa Araújo

Esta história não tem início, não tem dono... É coletiva, precisa de um cenário: o concreto da cidade. Assim também é nossa vida. Coletiva, permeia muros, casas, cores. Constrói mundos infinitos dentro da cidade. Atravessa ruas. Não morre jamais. Renasce a cada brecha por onde o sol se espreita antes de ir-se embora, por ora. Contar e recontar os dias na capital cearense é associar concreto e sentido. Saudade e conquistas. Cidade e sentimento. É costurar memória, de si, de nós. É ver morrer uma província, nascer uma metrópole. E a cidade - é verdade - sou eu, somos nós. É tudo memória...

Viver exige cenário. Não dá para construir, criar, colaborar, interferir sem um espaço concreto. Não dá para experimentar, habitar sem um lugar. Não há como se lembrar se a paisagem não te oferece referência. Não se faz memória sem lugares de existência. Viver exige prédio, muro - para transpor? - portas abertas, fechadas. Labirintos... O tempo, decerto, passa, mas não precisa ser o culpado das ranhuras nas fachadas que guardam nossos dias, nas calçadas que abrigam nossos pés.

Mas, é fato: Fortaleza tem esquecido de lembrar-se de si, dos seus espaços de vida. Esquece-se de fazer entender que a sua história está também nos seus cenários, no concreto de pau e pedra que atravessa sol e chuva. Tempo. Desconstrói seus próprios territórios quando admite que só os prédios novos se sobressaiam, enquanto os mais antigos se esvaem.

Porém, se morrer para o concreto é luto, para a memória é afazer inútil. Porque memória a gente não mata. Muro cai, mas a lembrança fica. A referência continua a se fazer presente na esquina onde o protesto nasceu, o carnaval acabou. Onde as lágrimas lavaram as perdas, afastaram as pedras. Onde o grito se fez canto para celebrar a chuva, vaiar o sol. Onde deusas saíram do imaginário e ocuparam praças, polos. Onde o vestido mudou de cor no varal que liga nossas janelas já sem brilho.

Somos inteiros quando o espaço também conta as nossas histórias. Não há biografia sem palcos de vida. Não há memórias sem interações entre corpo e espaço. Não existe cidade sem patrimônio. Nosso coração mora onde nossa memória se reconhece. Parte de nós é tudo o que vivemos nos lugares em que nossas lembranças se descobrem nossas. A rua é o nosso maior refúgio quando o tempo se encontra meio assim, de perdas e esquecimento de si e dos demais. Esquecimentos das histórias, das heranças erguidas em símbolos palpáveis, prédios imortais, que perdem robustez, mas acumulam a cada dia mais e mais memórias, da cidade, da gente daqui e dali.

A rua

E a rua é onde a gente mistura nossas memórias, até aquelas que não se sabe onde começam. A escola, o edifício, a cadeira na calçada de cimento queimado e azulejos são só parte dos cenários de nós, guardando eternidades, que ora são símbolos, ora coisas. Patrimônio de gerações provirem. Palco do que viver, sentir e contar, como a história da cidade, que é minha, é nossa; contos que montam Fortalezas, em memórias de tantos, em palavras como essas, sem início, sem fim...

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