Obra de Charles Lessa une homoerotismo, humor e religiosidade e projeta arte contemporânea do Cariri

Há mais de uma década, artista do Crato (CE) mistura vivências pessoais, tradição e cultura para criar universo de cores e mistérios nas artes visuais

Escrito por
Ana Beatriz Caldas beatriz.caldas@svm.com.br
Charles Lessa, 31, é destaque das artes visuais cearenses
Legenda: Charles Lessa, 31, é destaque das artes visuais cearenses
Foto: Davi Rocha

Como quase tudo no mundo, começou com uma mãe: a professora Maria Lúcia, que trabalhava ensinando crianças a ler e escrever no Crato, Cariri cearense, foi também uma das principais influências artísticas de Charles Lessa, seu filho caçula, hoje com 31 anos. Artista visual de destaque na cena contemporânea brasileira, Charles começou a elaborar os primeiros traços no papel ainda na infância, com o estímulo da mãe, e nunca mais parou. 

Há mais de uma década, ele se dedica profissionalmente à ilustração, à pintura, à escultura e ao design gráfico, com obras que se concentram em temas como gênero, sexualidade, cultura pop, tradição e religiosidade, numa proposta visual que parte da experiência e da eterna sensação de estar “fora da norma”, o que intitula de estética pré-escolar queer-naif-punk.

'Date de power rangers pink in açude caririense' (2024)
Legenda: 'Date de power rangers pink in açude caririense' (2024)
Foto: Reprodução/Charles Lessa @chrlslssa

Os primeiros desenhos do artista começaram a surgir no mesmo momento em que aprendia a escrever, nas tarefas diárias, e aprendia a “desenhar” os números com Maria Lúcia. Dali, os rascunhos se multiplicaram e se transformaram em desenhos de atrações veiculadas na TV Globinho – Três Espiãs Demais, Digimon e Power Rangers, principalmente. Pouco depois, as réplicas evoluíram para cartazes e acessórios coloridos que decoravam as salas de aula em que a mãe ensinava nas principais datas comemorativas. 

Na época, as criações de cartazes infantis, feitas em colaboração com as irmãs mais velhas, Raniely e Camila, chamaram a atenção de outras professoras e Charles começou a receber as primeiras “encomendas”, que vendia pelo valor simbólico de R$ 5. 

“Minha mãe teve muita influência nesse processo. Era a partir dela que eu tinha acesso aos materiais básicos para desenho, porque nossa casa sempre estava meio cheia de material escolar”, lembra Charles, que concedeu entrevista ao Verso em uma das passagens recentes pela capital cearense para ministrar uma oficina de desenho. “Isso tudo foi me moldando e nutrindo meu interesse pelo desenho e, depois, pela pintura”, conta.

Veja também

Das paredes da escola às galerias e museus

'Yo soy la princesa' (2023)
Legenda: 'Yo soy la princesa' (2023)
Foto: Reprodução/Charles Lessa @chrlslssa

Com o passar dos anos, Charles aprimorou a técnica artística de maneira natural. Após a morte da mãe, quando ele tinha apenas 15 anos, seguiu se dedicando aos estudos de maneira autodidata e, de algum modo, mantendo o legado de Maria Lúcia por meio de sua “arte colegial”.

Mesmo antes de concluir a graduação em Artes Visuais na Universidade Regional do Cariri, decidiu que continuaria utilizando o desenho como meio de obter renda, junto a trabalhos freelancer como designer gráfico. 

Até aquele momento, as comercializações eram pontuais e feitas informalmente.  “Até que pessoas que colecionam começaram a ver o meu trabalho no Instagram”, lembra. Em 2014, o artista realizou a primeira exposição coletiva, em Juazeiro do Norte, e, desde então, sua obra rodou o País.

Charles teve trabalhos expostos em diversos salões de arte cearenses, além de galerias e museus de São Paulo e Rio de Janeiro, e foi indicado ao Prêmio Pipa em 2022.

Artista une tradição e cultura pop em ilustrações, pinturas e esculturas
Legenda: Artista une tradição e cultura pop em ilustrações, pinturas e esculturas
Foto: Davi Rocha

Segundo Lessa, parte do motivo de ter chegado tão longe foi a possibilidade de compartilhar seus trabalhos pelas redes sociais, o que o inseriu, aos poucos, na vitrine de arte contemporânea nacional. “É o que facilita, inclusive, a minha permanência no interior do Estado”, pontua.

“Geralmente artistas, quando começam a circular em circuitos de arte contemporânea, pensam em grandes centros urbanos, que de fato têm uma melhor recepção para esse tipo de produção, já que existe um circuito e nos interiores a gente sempre está muito à margem de tudo”, aponta. “Fazer o meu trabalho circular sem necessariamente sair desse lugar tem sido muito importante para o que está rolando até agora”, completa. 

Profissionalização da arte e inspiração no Cariri

Além do trabalho como artista, Charles também ministra oficinas e workshops de desenho
Legenda: Além do trabalho como artista, Charles também ministra oficinas e workshops de desenho
Foto: Davi Rocha

Hoje, depois de mais de uma década de produção constante e em evolução, Charles acredita que, pela primeira vez, “está um pouco confortável”, conseguindo viver 100% da arte que produz em diferentes plataformas. A posição foi alcançada, pontua, muito pelo agenciamento da Cave Galeria, que trabalha com o artista desde 2021.

O fato de ser de ter nascido em um território pulsante criativamente, que tem sido cada vez mais valorizado em todo o País, também o coloca em uma rota de interesse nacional – assim como seu trabalho projeta, junto a outros artistas contemporâneos, a diversidade artística da região para o Brasil e o mundo.

“Cariri tem um reconhecimento nacional como um espaço, um território que produz, principalmente arte popular e arte dita não erudita. A arte contemporânea que tem nascido lá tem alcançado um certo reconhecimento, mas acho que pegando muito carona nesse movimento das tradições”, analisa o artista. “As pessoas que frequentam, que visitam, que pesquisam sobre Cariri, consequentemente, são levadas a conhecer o que está sendo produzido na atualidade. E, em algum momento, elas chegam até nós, até a nossa produção”, completa.

Atualmente, o artista desenvolve pesquisas voltadas para artistas populares do Cariri, a exemplo da família Cândido, formada majoritariamente por mulheres ceramistas que produzem “placas com cenas do cotidiano e do catolicismo popular”. “Estou bebendo muito dessa fonte”, destaca Charles.

No entanto, nem sempre foi assim,  admite. Na adolescência e início da vida adulta, como muitos adolescentes dos anos 2000, Charles teve como principais referências o que consumiu na internet. “Eu estava muito mais atento, de repente, a um artista asiático, um artista sul-coreano ou norte-americano, do que necessariamente alguém está produzindo ali em Mauriti, em Brejo Santo”, comenta. 

Hoje, um dos principais objetivos do artista é subverter essa influência e borrar as linhas entre arte contemporânea e cultura popular, com atenção especial à terra onde “brotou”. “Isso é um movimento que tem acontecido muito fortemente, acho que em todo o Sul Global, de artistas contemporâneos visitarem as tradições e os artistas ditos ‘populares’, até para romper um pouco com essas cisões e essas separações do que é popular”, opina.

Afetividade, prazer e o ‘Cariri Delícia’

Com peças em maioria figurativas, um dos aspectos que salta aos olhos na obra de Charles Lessa são temas ligados à identidade do artista, como o homoerotismo e a homoafetividade. No mundo colorido e vivo do artista, as imagens que tratam de amores, fetiches e fantasias unem-se a elementos cristãos – uma associação que representa um dos aspectos mais fortes da cultura popular nordestina, a união entre o que é considerado santo e o que é considerado “mundano”.

“O homoerótico aparece no momento em que eu consigo me comportar e me colocar abertamente como um homem gay – porque existe sempre toda uma batalha para que os meninos e os homens acessem esses lugares de liberdade, principalmente sendo um cara gay no interior do estado do Ceará”, pontua. 

As obras que permeiam o desejo começaram a surgir junto à sensação, no âmbito pessoal, de estar confortável no próprio corpo e identidade. “Em algum momento, eu sempre volto para isso da homoafetividade, de falar sobre os caras que eu já me relacionei”, comenta. “É um lugar em que eu não consigo não estar, porque me habita o tempo inteiro”.

No ano passado, um dos trabalhos de destaque de Charles foi o mural “Cariri Delícia”, parte da mostra coletiva Bloco do Prazer, exposta no Museu de Arte do Rio (MAR). A produção, que mostra autorretratos de Charles em cinco posições diferentes, conta com referência direta aos caretas de Potengi e busca refletir sobre o olhar do País para manifestações como essa.

“Tenho agora buscado esse interesse de pensar esse fetiche que se tem pelas tradições, pela arte popular, quase que se fosse um fetiche erótico. Então, estou tentando trazer essa hibridização de assuntos”, explica.

Reconhecimento da região nem sempre chega aos artistas

Obras trazem cores vibrantes e referências da religiosidade e da cultura pop
Legenda: Obras trazem cores vibrantes e referências da religiosidade e da cultura pop
Foto: Jaqueline Rodrigues

Ao mesmo tempo em que Charles faz parte de uma geração de artistas contemporâneos no Cariri que vem conquistando espaço e projetando a região para além das tradições, ele também enfrenta os desafios de produção e circulação que a maioria dos artistas interioranos enfrentam, ainda que tenha a internet como apoio importante nessa demanda.

Essas dificuldades são divididas entre artistas de diversas gerações e plataformas, mas que chega às novas gerações, já impactadas pelo cenário econômico desfavorável, com intensidade. “É uma cena que existe, mas que enfrenta muitos desafios. Tenho visto muitas dificuldades com os meus pares, assim, de se manter atuante no meio”, pontua. 

“Meu trabalho tem tido mais facilidade de circular e de se manter em estágio de produção constante, porque é uma linguagem muito fácil de ser assimilada”, completa. “Mas quem está fazendo trabalhos de uma ordem outra, que vai tratar do abstrato ou de temas mais conceituais, tem muita dificuldade em se manter como artista. Então, tem pessoas que vão migrando de carreiras”, afirma.

As precarizações, destaca, não se concentram no interior do Ceará. Mas em espaços em que a cultura popular é sedimento da produção artística, a situação se torna mais dramática, pois nem mesmo os grandes mestres têm o trabalho valorizado.

“O que carrega toda essa força [do Cariri] são os artistas populares, os artistas dos subúrbios, das periferias, do interior, que são sucateados. Você vê artistas que já expuseram no mundo inteiro, mas que você vai visitar e você percebe que as pessoas ainda estão vivendo num nível de pobreza mesmo”, lamenta. “A maioria dos artistas populares não criaram fortunas, não enriqueceram. Isso não existe”.

“Até aqui o desenho me ajudou”

Mesmo com os desafios para se manter como artista profissionalmente, o amor pelo desenho que Charles cultivou desde a infância se mantém como sonho e, pela primeira vez em muito tempo, também como realidade. “Acho que eu estou, pela primeira vez, numa fase em que eu me sinto um pouco mais respirando, sabe? Tô um pouco confortável, as coisas estão acontecendo”, comenta. “Nunca experimentei algo como tenho experimentado agora. Isso vem através de um amadurecimento tanto do trabalho, tecnicamente falando, quanto do discurso, das investigações”, celebra.

Entre março e maio deste ano, o artista apresentou a quarta exposição individual, no CCBNB Cariri, intitulada “Até aqui o desenho me ajudou”, uma brincadeira com a expressão “Até aqui o Senhor me ajudou”, num reconhecimento do que o manteve vivo desde os primeiros anos de vida.

 

“Eu entendo que o desenho, para mim, está na base de tudo, né? Para eu fazer uma pintura, eu primeiro começo no desenho; para fazer uma escultura, a mesma coisa. Então, tem os resultados, obviamente, mas o desenho está na gênese de tudo o que eu faço. É ele que tem me mantido realmente vivo”, declara. “Sou muito grato a ele, talvez seja a minha religião”.

Produções mais recentes de Charles têm foco na arquitetura interiorana e na espiritualidade
Legenda: Produções mais recentes de Charles têm foco na arquitetura interiorana e na espiritualidade
Foto: Jaqueline Rodrigues

No momento, o artista prepara uma série de obras inéditas para a mostra SP-Arte Rotas, que ocorre na capital paulista em agosto, e segue com duas pesquisas distintas – uma “mais fluida e mais radical e outra mais contida e mais demorada”. Entre as temáticas exploradas estão, como de costume, o imaginário queer, mas também um mergulho na espiritualidade e na psique, com temas mais melancólicos, como abandono, solidão e pressão social.

“Abri mão um pouco da figuração, apesar de que ainda aparecem pessoas, mas elas estão ficando menores, e estou abrindo espaço para pensar em arquiteturas mais interioranas e meio absurdas também”, explica. 

A ideia é elaborar criações que se assemelhem a imagens geradas por inteligência artificial, mas sem usar nenhum tipo de prompt para criação de ideias – uma provocação para demonstrar que tudo que é feito por IA já é feito por artistas há muito tempo. “Quero dialogar com o que está sendo gestado na atualidade, que são essas imagens absurdas da IA”, explica.

Este conteúdo é útil para você?
Assuntos Relacionados