A história do batom que desafia o tempo e o machismo
Do front de guerra às salas de reunião, o batom vermelho segue sendo um ato de resistência em um mundo que ainda teme mulheres que não se apagam.
Há algo de profundamente político em um batom vermelho. Muito além da maquiagem, ele é símbolo, bandeira e, muitas vezes, um escudo. Poucos objetos de beleza foram tão amados, condenados e reinterpretados ao longo da história, e ainda assim, em pleno século XXI, continuam a causar desconforto em um mundo que insiste em fiscalizar o corpo e as escolhas das mulheres.
O colorido dos lábios não é novidade. Cleópatra já usava pigmentos extraídos de pedras e insetos para afirmar seu poder, por exemplo. Nos séculos seguintes, o gesto tornou-se pecado: na Europa puritana, mulheres de batom eram acusadas de bruxaria, associadas à luxúria e ao perigo. E o vermelho sempre foi a cor do que é “demais” e, bom, o excesso feminino segue sendo um tabu, não é mesmo?
Foi só no início do século XX que o batom começou a ganhar um novo significado. A empresária canadense, Elizabeth Arden, uma das pioneiras da indústria da beleza, entendeu que o ato de se maquiar podia ser também um ato político. Em 1917, ela distribuiu batons vermelhos às sufragistas que marchavam por voto feminino em Nova York. Aqueles lábios pintados eram, literalmente, o rosto da resistência.
Anos depois, durante a Segunda Guerra Mundial, o batom vermelho voltou a ocupar o front. Com os homens no campo de batalha, as mulheres assumiram fábricas e hospitais e, assim, Arden lançou o tom “Victory Red”, usado por militares do Corpo Feminino do Exército dos EUA. O governo britânico, inclusive, incentivava o uso do batom como símbolo de moral e patriotismo. E assim, o batom vermelho representava coragem, não vaidade.
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Mas o pós-guerra trouxe de volta o velho repúdio. O batom vermelho, que era sinônimo de força, passou a ser visto novamente como marca de mulheres “ousadas demais”, “sedutoras demais”, “inadequadas para o ambiente de trabalho”. É curioso, para não dizer triste, perceber que, tanto tempo depois, ainda há quem associe o vermelho à falta de decoro, como se a cor nos lábios fosse um convite, um desafio ou uma ameaça.
Em uma sociedade que ainda espera recato das mulheres, o batom vermelho continua sendo provocação. Ele chama atenção, impõe presença e comunica poder: três gestos que o machismo sempre tentou domesticar.
Por isso, usar um batom vermelho é escolher ser vista.
Mais de cem anos depois das sufragistas, o batom vermelho segue firme como um pequeno gesto de resistência. Ele carrega a herança de todas que ousaram existir sem pedir licença e, talvez, seja exatamente por isso que incomoda: porque continua sendo o lembrete silencioso de que a liberdade feminina jamais foi neutra.
* Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora