Cearense Efrain Almeida, referência das artes visuais no Brasil, deu asas a um sertão particular
Artista visual que transpôs memórias de um sertão íntimo a esculturas em mais de três décadas de trajetória faleceu na segunda-feira (23), aos 60 anos
Entre aspectos que nortearam a obra do artista visual Efrain Almeida (1964-2024) ao longo de mais de 30 anos de trajetória profissional, amigos e admiradores ressaltam ao Verso a generosidade, a humanidade, a intimidade e a singeleza. Junto da própria obra do cearense, elas se impõem como legados incontornáveis dele para as artes visuais do Estado e do Brasil.
Reconhecido principalmente por esculturas povoadas por versões dele mesmo, pássaros, elementos religiosos e miudezas — inclusive literais, com obras em escala reduzida que convidam o espectador a chegar mais perto —, Efrain nasceu em Boa Viagem, a cerca de 221 km de Fortaleza.
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Ainda cedo, fez morada e teve formação no Rio de Janeiro — município no qual faleceu na última segunda-feira (23), aos 60 anos, após uma parada cardíaca —, mas seguiu levando consigo memórias de um sertão particular, expressas principalmente na forma de esculturas em madeira.
Com ações artísticas intensas em anos recentes, Efrain teve no ano passado programação especial no Centro Cultural do Cariri com a abertura da exposição “Encarnado” e lançamentos do livro “Uma coisa linda” e de documentário sobre a própria obra.
As diferentes experiências foram feitas em parceria com Bitu Cassundé, amigo pessoal do artista há 25 anos, curador e gerente de Patrimônio e Memória do equipamento. A dupla também atuou junta na exposição “O Jardim”, que foi fruto de “Encarnado” e está atualmente em cartaz no Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba
Outro desdobramento em curso era um projeto de itinerância de “O Jardim” para o Rio de Janeiro, previsto para o ano que vem, para o qual Efrain estava desenvolvendo uma instalação com 60 pássaros, em comemoração aos 60 anos completados em janeiro deste ano.
“A gente entendia que esse ciclo de trabalho que a gente estava desenvolvendo vinha nesse lugar de celebração de 60 anos de vida e 30 anos de trabalho”, partilha Bitu.
Autobiografias do “corpo-pássaro”
Em matéria publicada pelo Diário do Nordeste em 5/7/2007 intitulada “Arte de passagem”, Efrain atestou: "Minhas exposições são sempre autobiográficas. Se é que é possível ser diferente".
Já na matéria “Um voo íntimo pelo olhar”, publicada em 20/1/2015, a ideia foi aprofundada: "O que percebo do mundo tem uma relação com minha história. Imprime uma relação da dualidade entre afetividade e aspectos de ter saído e retornar para lá, para minha casa".
Amigo e parceiro profissional, Bitu partilha que, em diálogo, os dois chegaram ao conceito de “corpo-pássaro” como relevante para a obra do escultor. São várias as obras nas quais o artista representa diferentes espécies do animal.
“Efrain trazia pássaros numa perspectiva de pensar deslocamentos, a relação migrante que o povo do Ceará tem de sair do seu lugar para outro. Esse pássaro estava também muito relacionado aos trânsitos que ele teve ao sair de Boa Viagem, depois morar no (bairro) José Walter algum tempo e chegar ao Rio de Janeiro”, contextualiza.
Experiências particulares tornadas coletivas
A dimensão biográfica do trabalho do escultor, reconhecida pelo próprio, é ressaltada por Bitu. “Efrain trazia com grande maestria essa relação entre questões universais a partir de uma perspectiva e de um posicionamento dele, uma coisa íntima”, elabora o curador.
“Tem uma frase de Efrain que eu acho maravilhosa, onde ele diz que o trabalho dele não é sobre o sertão, mas sobre a experiência dele no sertão. É interessante pensar ele e a produção dele dentro de uma perspectiva de se relacionar com esse território”
As elaborações de si empreendidas por Efrain ocorreram, inclusive, de forma “concreta” ao passo em que autorretratos também são característica forte da obra do artista.
“Tudo é autobiográfico, é um dos artistas brasileiros que trabalham com mais radicalidade nisso. Efrain trazia a própria imagem, se desnudava diante do público com autorretratos nus”, lembra Bitu.
Tais níveis de vulnerabilidade e particularidade elaborados pelo artista, então, enfatizam o diálogo da obra dele com o público muito a partir da sensibilidade.
“Em várias exposições que a gente fez, o público era recebido por uma imagem dele de braços abertos, totalmente nu, então essa dimensão de assumir o próprio corpo, as próprias questões e se desnudar diante do espectador é muito corajosa”
“Ele tinha um olhar muito infantil no sentido de uma certa ingenuidade que poetizava muito alguns contextos, conseguia olhar uma realidade difícil pelo olhar infantil e transformar aquilo numa experiência sensível para o outro”, avança Bitu.
Ex-votos e a experiência da arte
Um aspecto central das memórias pessoais de Efrain em relação ao território do sertão é o religioso. O ex-voto, tipo de objeto feito geralmente em madeira e concedido por fieis a figuras de devoção, é não só referência constante na obra do artista, como marco da trajetória pessoal.
“Efrain tem o primeiro contato com o ex-voto nessas casas de milagres de Canindé na infância, diz que a primeira experiência que entende como arte é a de entrar numa casa de ex-voto quando criança e ter um tipo de transe ao ver tudo aquilo”, contextualiza Bitu.
A ideia é embasada pelo próprio Efrain em matéria de 27/11/2001 do DN. “A matéria-prima que utilizo me interessa principalmente pela carga simbólica, o significado cultural, o seu uso por exemplo para a arte religiosa", atestou, arrematando: "As pessoas não devem se questionar se tal criação é ou não obra de arte. (...) Não existe uma maneira específica de se olhar a arte".
Professora de Teoria e História da Arte da Escola de Belas Artes da UFMG, a cearense Carolina Ruoso destaca a obra de Efrain a partir das noções de “promessa” e “compromisso”. “A noção de promessa é muito importante, porque tem uma relação direta com o trabalho e a escultura do ex-voto”, inicia.
“Trago também a ideia de promessa como compromisso com essas referências culturais que estão relacionadas e ligam o artista a uma dimensão ancestral da vida com relação à paisagem, à religiosidade popular”, avança Carolina, ressaltando “uma religação com a ancestralidade”.
Apesar de ser característica singular e especial da obra de Efrain, a “fatura popular” expressa nas peças assinadas por ele pode, como reflete Bitu, ter sido motivo para que o artista não tenha “o reconhecimento que deveria ter recebido”.
“Isso vem de um preconceito e de um racismo de um sistema da arte que não se relaciona com a fatura popular de um trabalho. A arte contemporânea nunca conseguiu elaborar bem essa questão e colocar grandes artistas que estão nesse lugar no seu devido reconhecimento”, observa.
“Tem essas lacunas e violências. Ainda falta muito para que essa obra tenha o reconhecimento e o devido lugar em acervos importantes do Brasil e do mundo”, defende o curador.
Efrain como mestre
Para além do artista que foi parceiro em inúmeras exposições individuais e coletivas — como “Encarnado” (2023), “À Nordeste” (2019) e “O Jardim” (2024), para citar algumas —, Bitu ressalta também, em especial, o amigo Efrain.
“Ele sempre foi um irmão, é como se eu tivesse perdendo um pedaço muito bonito de mim. Ao mesmo tempo, fico muito feliz pela possibilidade de ter convivido, aprendido com ele”, destaca.
“Efrain me trazia muito esse lugar do mestre, mesmo, do professor. A principal característica dele foi justamente essa generosidade, ele fez arte com generosidade”
Os ensinamentos, Bitu avança, eram inclusive partilhados em processos formativos ou contatos eventuais com artistas de outras gerações.
“Efrain coordenou vários grupos de pesquisa e de estudos vinculados ao Parque Lage. Tem essa dimensão da presença dele como formador, professor, e essas referências vão passando de geração para geração de jovens artistas, que vão tendo ele como importante referência”, aponta.
É possível citar o artista visual cratense Charles Lessa como um desses nomes que referencia e reverencia o escultor na própria obra.
“Um amigo me apresentou o trabalho de Efrain na graduação em Design de Produto na UFC, isso em 2013, e desde então passei a ouvir o nome dele e ver suas obras com frequência em exposições e formações”, rememora Charles ao Verso.
A distância se encurtou em 2022, quando ele, nervoso, recebeu Efrain no próprio ateliê durante uma visita com Bitu.
“Tivemos um ótimo papo naquela tarde, falamos sobre nossas trajetórias, sobre como ele fazia tinta PVA caseira e, depois disso, fiquei me achando porque eu tinha o contato de Efrain Almeida no meu WhatsApp. Ele adquiriu algumas pinturas minhas, e pra mim aquele gesto foi mais que um símbolo de validação, foi um ‘bem vindo à festa’”
Para Charles, elementos como a técnica e a escala despontam como principais na admiração pelo escultor.
“Falar da escala como uma característica marcante da obra dele talvez seja o mais simples de se dizer, mas é um trabalho que pelo seu tamanho aproxima o espectador da obra, exige chegar perto e quase tocar os objetos com os olhos. Sem falar que sou apaixonado pela sua primorosa técnica com a escultura em madeira”, elenca.
O artista cratense ainda ressalta referências utilizadas por Efrain “que me fazem sentir como se habitássemos cosmologias muito próximas”. “Imagens de fé, de infância, de memória da casa, e o sentimento de carinho pelas miudezas”, lista.
“Leo Ferreira, o amigo que me apresentou à obra de Efrain é um jovem artista de Juazeiro do Norte que traz bastante referência nas formas e temas que Efrain usava, ou seja, as novas gerações ainda ouvirão falar muito em Efrain Almeida, ele continua conosco”, atesta.
O testemunho de permanência é enfatizado por Bitu. “O legado dele vai estar muito vinculado a esses artistas que sabem lidar com as referências autobiográficas, a poetização desse biográfico”, evoca o curador.
“São dois importantes legados: a própria obra, porque o artista parte mais a obra fica, e essa dimensão de ensinamento, que vai ficar em pessoas que conviveram com ele e que tiveram contato com a obra, porque ninguém sai imune diante dela”, sustenta.