Artistas cearenses produzem autorretratos como elaboração de sentimentos, memórias e invenções de si
Na fotografia, pintura ou ilustração, artistas cearenses de ontem e de hoje lançam mão da prática do autorretrato para refletir sobre identidade, representação, imagem e mais temas.
Ainda que à primeira vista o autorretrato possa ser encarado como uma expressão artística puramente baseada na representação e reprodução fiel de si, ele se revela na prática de diferentes gerações de artistas visuais do Ceará como uma possibilidade de elaboração de memórias, questões e até de invenção.
Do pintor Antonio Bandeira (1922-1967) ao ilustrador Beija Aragão ou da fotógrafa Telma Saraiva (1928-2005) à fotógrafa Jane Batista, o Estado acolhe exemplos históricos e contemporâneos que ajudam a somar reflexões sobre o formato.
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"Desnudamento" de si
“O retrato perpassa a história da arte, assim como as movimentações em torno da subversão dele, quando os artistas também manipularam outras formas e possibilidades de se retratar”, inicia Bitu Cassundé, curador cearense que atua como Gerente de Patrimônio e Memória do Centro Cultural do Cariri.
“O autorretrato pode ir para vários lugares”, resume. Dependendo da poética e das pesquisas de cada artista, o formato pode ser ligado a “uma dimensão figurativa e do real”, enquanto outro caminho se desvela a partir de “relações de ficção e fabulação da própria imagem”.
Se o fortalezense Leonilson (1957-1993) “subverte” o autorretrato, como aponta o curador, ao trazer obras que partem de “referências não diretamente ligadas à imagem” — como bordar a própria altura, peso ou iniciais —, o boa-viagense Efrain Almeida propõe uma “radicalidade no oposto” ao produzir esculturas onde se apresenta nu.
“O autorretrato não deixa de ser um desnudamento do artista diante do público, de uma questão”, considera Bitu, que assina a curadoria da exposição “Amar se aprende amando”, em cartaz na Pinacoteca do Ceará, dedicada à trajetória de vida e obra de Antonio Bandeira.
Da figuração à abstração em Bandeira
O artista cearense é um dos nomes históricos que desponta nas artes visuais do Estado como um “praticante” central do autorretrato. Na Pinacoteca, a mostra voltada a ele abre com duas obras no formato: “Autorretrato na garrafa” e “Autorretrato no espelho”, ambas dos anos 1940.
“Um dos eixos principais da exposição é justamente trazer essa relação de Bandeira com a sua imagem, identidade”, ressalta Bitu, destacando a evidência dada pelo artista nas pinturas às características da própria negritude.
“Tem a dimensão dos índices da cultura afro-brasileira, a evidência das características da raça negra”, aponta Bitu, que ainda ressalta: “O sistema da arte é branco e vai embranquecendo todas essas referências — as pessoas nem sabem que Bandeira é um pintor negro”.
Na produção geral, o artista traçou um percurso que começa mais figurativo e se “dilui” para o abstracionismo. “A diluição da imagem vai acontecendo na produção do Bandeira. É a diluição do figurativo. O flamboyant, a luz, a arquitetura e a própria imagem dele vão se transformando em abstrações”, explica Bitu.
Os autorretratos expostos na Pinacoteca pertencem ao “primeiro momento figurativo” do artista. A fase abstracionista é avaliada pelo curador como um “curso natural” da pesquisa poética do pintor. Do segundo período, Bitu destaca um autorretrato de Bandeira de 1965 que é composto por “manchas abstratas, um gesto figurativo e a mão dele impressa na tela”, como descreve.
“É interessante pensar o autorretrato com detalhes e signos de representação do corpo que o artista pode sugerir. Um retrato não é somente uma realização figurativa da imagem de si ou do outro, ele pode se apropriar de outras possibilidades de leitura e construção de imagem”, reforça.
Autorretrato como performance
Pondo-se em frente às câmeras de forma performática, a artista e fotógrafa cratense Telma Saraiva desponta como um caso relevante da produção do tipo no Estado. Na trajetória artística, ela produziu 30 autorretratos entre as faixas dos 20 e 50 anos de vida. Neles, emulava, a partir de si mesma, construções imagéticas inspiradas na estética de Hollywood.
“Telma teve acesso aos meios de comunicação e cultura de sua época e conviveu fortemente com a estética do cinema de ficção de estúdio hollywoodiano”, inicia a cineasta Adriana Botelho, que se aprofundou no percurso criativo da artista no documentário “Todas as Vidas de Telma”. A obra será exibida no Cinema do Dragão, adianta a diretora, ainda em janeiro.
“(Ela) construía o cenário, preparava sua indumentária e os adereços, ajeitava o cabelo e se maquiava. Posicionava os refletores, a câmera no tripé e, com um cabo para acionar o mecanismo do disparador, dava seu clique único”, descreve.
“Depois, ampliava e revelava a imagem em seu laboratório. Após, dedicava-se à etapa da pintura”, segue a diretora, destacando a junção que Telma efetuava entre as referências estrangeiras e a prática da fotopintura tradicional do Ceará.
Os gestos criativos da artista, reflete Adriana, guardam em si diversas reflexões possíveis sobre os imaginários de juventude e beleza. “Em sua representação do feminino, interessa-nos o uso que faz da imagem para criar a fantasia de ser muitas mulheres, contrapondo-se a um estereótipo. Dessa forma, consegue expressar as tensões relacionadas ao universo feminino e as suas contradições”, considera.
As reflexões espelham a própria prática da fotógrafa enquanto mulher, profissional e artista no interior cearense no século XX. “Telma não participou com regularidade dos espaços de arte institucionais, quer fossem galerias ou acadêmicos, pois teve formação artística familiar, de maneira autodidata e trabalho voltado ao estúdio de fotografia comercial”, explica Adriana, que destaca ainda que a produção de autorretratos foi guardada pela cratense por décadas, ganhando destaque somente a partir dos anos 2000.
Para a diretora, a obra de Telma desponta pela atualidade. “Ela levantou questões do campo da arte que permanecem atuais, pelas ferramentas digitais de manipulação da imagem do retrato, como o photoshop; na arte da performance, com a criação de múltiplas personas; e o uso popular dos autorregistros – os selfies”, relaciona.
Memórias e sentimentos
Nomes da produção contemporânea, o artista visual sobralense Beija Aragão e a fotógrafa Jane Batista, piauiense radicada no Ceará e moradora do Titanzinho, são exemplos do alargamento de entendimentos e possibilidades do autorretrato como expressão de si.
“A criação dos meus retratos surgiu quando senti curiosidade em usar elementos do meu cotidiano, explorando como eles se transformariam em meu corpo. Isso também ocorre quando percebo a oportunidade de expressar meus sentimentos e memórias”, compartilha Jane, que produz as fotos com a câmera do próprio celular.
Os motivadores da prática artística para Beija, que se dá pela ilustração, se assemelham aos de Jane. “Parti para o autorretrato na busca de construir um diário do meu consciente para descobrir rastros da minha infância deslocados da minha memória”, compartilha.
“É uma espécie de ritual pra mim, de colocar para fora as coisas que estão transbordando naquele momento, sejam elas boas ou ruins”, define ele, destacando ainda que gosta de colocar o próprio corpo nas obras “como sinalização pros sentimentos” que carrega em um momento específico.
Tanto Jane quanto Beija também se aproximam do caminho de subversão do autorretrato, buscando criar imagens que misturam as ideias de realidade e ficção em prol da elaboração.
Para ele, uma ilustração de si pode tomar como base uma foto recente ou uma memória antiga. “Tento ir por caminhos mais subjetivos e figurativos de mim, em diversas situações cotidianas ou até mesmo em situações que nunca aconteceram”, aprofunda.
Já Jane define o próprio processo como uma “performance” que envolve inventar espécies de outros usos para objetos do dia-a-dia. “Busco elementos que representem meu cotidiano em casa, no trabalho, na comunidade do Titanzinho”, diz, listando exemplos que vão de ovos, arroz e mel a cordas e raízes encontradas na praia.
Ainda que os autorretratos do ilustrador e da fotógrafa partam de lugares e questões notadamente íntimas, ambos veem reverberações importantes das obras pessoais junto ao público.
“Mesmo em autorretrato muitas pessoas se identificam com as ilustrações, justamente por representarem situações e sentimentos nas quais elas são atravessadas também, principalmente pessoas trans que se reconhecem fisicamente”, observa Beija.
“Posso transmitir, por meio dessas imagens, o que sinto no momento presente ou experiências passadas. O diálogo com o público é subjetivo, dependendo de cada olhar e pensamento. Cada pessoa interpreta a fotografia de maneira única, resultando em diálogos diversos conforme suas observações e sentimentos”, compreende Jane.
Confira mais obras dos artistas
- Jane Batista: @anjo.batista
- Beija Aragão: @flordebeijaflor
- Pinacoteca do Ceará: @pinacotecadoceara
- Centro Cultural do Cariri: @centroculturaldocaririce
- Telma Saraiva: @casadetelmasaraiva