Pesquisadora cearense propõe criar 'direção de acessibilidade' no cinema
Nova função se baseia no entendimento de que tornar uma obra acessível deve começar desde a pré-produção.
Considerar a acessibilidade desde a gênese de um projeto audiovisual, e não apenas tratar como algo a ser acrescentado no momento de exibição e circulação. É essa a proposta de uma pesquisadora e cineasta cearense, que defende, para isso, a criação da “direção de acessibilidade” nas equipes.
Em “Cinema e Audiodescrição: Locução Audiodescritiva e Voz Over na Produção Cinematográfica Acessível”, a autora Sara Benvenuto apresenta uma pesquisa que pauta a acessibilidade integradamente à criação cinematográfica, e vice-versa.
A publicação é fruto do doutorado da cearense de Iguatu, que se dedica ao tema desde a graduação, e foi concretizada com recursos da Lei Paulo Gustavo geridos pela Secult após aprovação em edital de Difusão e Pesquisa.
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Proposta de locução audiodescritiva
“A partir desse lugar da acessibilidade ser pensada desde o começo, como podemos fazer isso? Com uma equipe que cuide disso, assim como todo o trabalho coletivo que temos no audiovisual”, inicia Sara.
Junto a equipes como de direção, arte, fotografia, som e montagem, um núcleo dedicado a pensar como tornar aquela obra acessível também pode ser uma realidade — composto, inclusive, por pessoas com deficiência.
A pesquisa de Sara apresenta um modelo de locução audiodescritiva, que agrega a já reconhecida narração em voz over — seja feita por um narrador-observador ou um narrador-personagem, como no caso da sitcom “Todo Mundo Odeia o Chris”, no exemplo dado pela professora — ao recurso de audiodescrição, voltado principalmente a pessoas com deficiência visual.
Quais recursos de acessibilidade no cinema são os mais comuns?
No uso regular, a audiodescrição é “uma locução adicional que temos sobreposta à trilha sonora da obra audiovisual que está sendo acessibilizada”, resume a professora.
Essa locução é roteirizada e gravada, idealmente com acompanhamento e consultoria de pessoas com deficiência visual, e traz descrições do que ocorre em tela. Para acessá-la, geralmente o usuário usa um aparelho específico.
Além da audiodescrição, outros recursos mais conhecidos do grande público e reconhecidos pelo papel importante incluem a legendagem para surdos e ensurdecidos (LSE) e a janela de Libras, também chamada de TILS, (Tradução e Interpretação de Língua de Sinais).
Na LSE, o funcionamento é semelhante ao de uma legenda em um filme em língua original, porém com indicações como quem está falando na cena, trilhas e efeitos sonoros relevantes para a narrativa.
Já na janela de Libras, também voltado para pessoas com deficiência auditiva, um intérprete é captado e traduz os diálogos e sons relevantes da obra para a língua de sinais. Tal captação é exibida junto ao filme.
Cinema e acessibilidade integrados
Durante o percurso de pesquisa, Sara passou a se dedicar à proposta da locução audiodescritiva, buscando trazer a acessibilidade como elemento de criação e estética.
A prática dessa ideia se deu na experiência de “Amor no Ar”, curta dirigido por Sara enquanto estava no mestrado. O filme foi produzido inicialmente de maneira coletiva com alunos da graduação em Letras Língua Inglesa na Universidade Estadual do Ceará (Uece) de Fortaleza.
O projeto teve continuidade após o fim do mestrado dela. “A proposta do doutorado foi exatamente tentar retomar essa ideia da integração do cinema a partir de uma obra que foi feita, roteirizada, pensando nesse recurso de acessibilidade e nessa integração”, afirma.
“A gente, no cinema, tem a possibilidade de narração. Pensamos: e se essa locução também fosse audiodescrição? Seria possível? Como a comunidade com deficiência visual recebe?”, lembra.
No curta feito para experimentar a ideia, a história — baseada no conto “Entrevista”, de Rubem Fonseca — apresenta uma personagem que narra a história e é, também, audiodescritora.
Enquanto roteirista, diretora e audiodescritora do filme, Sara explica, ela conseguiu “organizar e pensar nisso do ponto de vista artístico e criativo, e informativo e acessível”. “Isso me deixou com mais liberdade para criar”, reconhece.
A hipótese de aliar a narração à audiodescrição passou por duas fases. “Um momento de proposição dessa locução e depois a testagem e verificação com a comunidade, tanto consultores — que são audiodescritores especializados — e usuários — que são as pessoas cegas que gostam de assistir filmes e usam o recurso”, explica Sara.
“Fruição de todos”
“A possibilidade da locução audiodescritiva voz over é a de unir. Eu não preciso de uma locução paralela que vai entrar num áudio paralelo. Nessa proposta, todos assistem ao mesmo filme, na mesma experiência”, explica a pesquisadora.
No processo de pesquisa, houve sessão de “Amor no Ar” voltado especificamente à comunidade com deficiência visual. Posteriormente, foi realizada uma sessão aberta, com público com e sem deficiência.
“Depois, nós tivemos um debate. Não era sobre acessibilidade —, embora isso também acabou perpassando por ser uma inovação —, mas sobre o filme, os elementos, a narrativa, o personagem, o que aconteceu. Ou seja, a possibilidade de fruição de todos”, destaca.
Profissão em construção
A experiência demonstra, para Sara, a importância de pensar a acessibilidade desde a gênese do projeto e, inclusive, como advento de criação.
“Quando você pensa numa obra que tem essa acessibilidade desde o começo, você consegue inclusive ampliar suas camadas narrativas. Trago muito essa discussão para produtores, realizadores. A acessibilidade não é esse aposto”, aponta.
A pesquisadora segue: “É uma obrigação, um direito, mas é uma camada também artística, de linguagem. Seja a legenda, a Libras, a audiodescrição, é uma camada a mais de linguagem que sua obra pode ter. É uma camada a mais de criação artística que nós estamos perdendo ou, no mínimo, subestimando”.
É neste ponto que entra a proposta de “direção de acessibilidade”. “Que a gente tenha essas pessoas desde o começo. Pessoas que vão pensar numa possibilidade de locução audiodescritiva voz over, de uma janela de Libras que vai estar no filme e não vai contradizer a arte ou a fotografia, de uma legenda que contemple o espaço dentro daquela tela”, ilustra.
Além da amplitude de possibilidades de criação e narrativa, Sara também destaca a importância desse olhar para a acessibilidade incluir a empregabilidade de profissionais com deficiência.
“Isso a gente está falando só dos recursos, mas tem também uma equipe que pensa: tem pessoas com deficiência nessa equipe? Tem pessoas que precisam de acessibilidade dentro da própria equipe?”
Como a pesquisadora ressalta, a proposta ainda está em formação. “Defendo que produtores e realizadores escutem, leiam, abram a cabeça para essa possibilidade. Que abram também as equipes, para que a gente consiga concretizar isso inclusive junto. Essa proposta ainda é nova, inédita e precisa ser testada, organizada”, aponta.
“Essa é uma equipe, uma profissão, que está em construção. É uma profissão necessária demais, que já está passando da hora de entrar no mercado, inclusive (ser) legislada, mas nós temos como já, pelo menos entender, que a gente pode fazer isso desde a pré-produção”, segue a pesquisadora.
“Até que extensão e até qual tipo de possibilidade criativa, vai depender muito das equipes, do filme, do gênero, do projeto — eu digo isso no sentido da integração. Mas nós com certeza estaremos dentro de uma equipe acessível e acessibilizada, de uma obra de arte que será desenhada acessivelmente e que, inclusive por isso, pode ser ainda mais artística”, confia.
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Leis que incentivam
Um ponto destacado por Sara também é o papel das leis de incentivo para estimular a acessibilidade cultural. “Enquanto a luta de desenhar essa acessibilidade, essa carreira, está acontecendo, paralelamente as normatizações precisam acontecer”, defende.
A professora explica, por exemplo, que a própria Lei Paulo Gustavo foi essencial no entendimento da centralidade da acessibilidade, uma vez que foi demandado dos projetos aprovados que uma porcentagem mínima de orçamento fosse voltada para isso.
“Muita gente da acessibilidade finalmente teve seu espaço nas equipes e essa pesquisa, inclusive, ganhou mais possibilidades e eu pude investigar mais a partir dessas produções em que eu estava sendo contratada para participar”, celebra.
“(As leis de incentivo) têm que acontecer para que a gente consiga discutir, para que a gente tenha o mínimo estabelecido, para garantir subsistência, porque, sim, é uma carreira e isso não pode ser esquecido”, opina.
Lançamentos
“Cinema e Audiodescrição: Locução Audiodescritiva e Voz Over na Produção Cinematográfica Acessível” terá lançamento em Fortaleza e em Iguatu no mês de dezembro.
Na capital cearense, o livro será lançado no dia 10 de dezembro, às 17 horas, compondo nova edição do Seminário Acessibilidade no Cinema, no Dragão do Mar.
Já em Iguatu, ocorre o evento de lançamento no Auditório do Campus Humberto Teixeira da Uece, no dia 15 de dezembro, às 19 horas.
Sara é doutora em Linguística pela Uece e professora do curso de Letras da instituição em Iguatu, onde criou e coordena os projetos Cine Alicerce e Cine Bastiana — que proporciona sessões de cinema gratuitas à comunidade —, além de coordenar o Laboratório de Estudos da Tradução Audiovisual (LETRAA).
Mais informações:
- Instagram: @sara.benvenuto