Dos bastidores ao palco, intérpretes de Libras ampliam acessibilidade e fortalecem a arte cearense
No Dia Internacional das Línguas de Sinais, celebrado neste 23 de setembro, o Verso compartilha a trajetória de tradutores-intérpretes de Libras que se dedicam à cultura cearense
Durante a pandemia, uma profissão que possibilita que o acesso à cultura seja garantido a todos os públicos ganhou, finalmente, mais reconhecimento. Com o boom de shows, palestras e cursos on-line, os tradutores e intérpretes de Língua Brasileira de Sinais (Libras) encontraram mais espaço – primeiro, pela demanda imposta pelas restrições do isolamento; depois, pelas exigências de acessibilidade das leis de incentivo à cultura, como a Lei Paulo Gustavo.
Seguindo a tendência nacional, no Ceará, os equipamentos públicos de cultura têm, cada vez mais, se adequado às políticas de inclusão da comunidade surda nos eventos. No entanto, nem todos os espaços contam com intérpretes de Libras no quadro fixo de colaboradores – muitos desses profissionais são contratados de acordo com a demanda, em eventos pontuais.
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De acordo com Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza (Secultfor), é assim que acontece na gestão municipal da Cidade. Contratados por meio de empresa licitada para terceirização, os intérpretes costumam atuar “em grandes eventos como Réveillon, Ciclo Carnavalesco, Aniversário de Fortaleza, Férias na PI e São João, além de festivais e outras ações, conforme a demanda”, sinaliza a pasta.
Já na gestão estadual, “vários espaços que integram a Rede Pública de Equipamentos Culturais do Ceará (Rece) já dispõem de intérpretes de Libras contratados, que atuam regularmente em suas atividades”, informa a Secretaria da Cultura do Estado (Secult-CE).
Na Capital e no Crato, os equipamentos geridos pelo Instituto Mirante de Cultura e Arte, organização social que atua em parceria com a Secult-CE, são alguns dos que possuem tradutores-intérpretes fixos. Ao todo, nove profissionais atuam em quatro equipamentos: Estação das Artes, Pinacoteca do Ceará, Museu da Imagem e do Som (MIS-CE) e Centro Cultural do Cariri.
Já conhecidos do público pela atuação na Estação das Artes, Ellen Costa, 23, e Juan Guilherme, 24, são os responsáveis por traduzir e interpretar a programação cultural do equipamento, entre shows, palestras, apresentações cênicas e outras atividades.
Em uma feliz coincidência, a trajetória dos dois com a Língua de Sinais começou praticamente ao mesmo tempo: ambos concluíram o Ensino Médio na mesma escola, a EEEP Joaquim Nogueira, na Parquelândia, em 2019. Durante o período, fizeram o curso técnico de Instrução em Libras e começaram a trabalhar na área pouco depois, na Central de Central de Intérpretes de Libras (CIL) do Ceará.
Em entrevista ao Verso, ambos destacam que o contato com alunos e professores surdos foi essencial para que o interesse pela interpretação surgisse. “Quando me inscrevi no curso, não sabia nada sobre Libras, mas foi uma paixão de primeira”, lembra Ellen.
O interesse aumentou quando começou a trabalhar com cultura, no fim de 2020, ao interpretar um show do artista Berg Menezes em um evento no Centro Cultural Belchior (CCBel) – também artista da dança e do teatro, Ellen aproveitou para unir as duas paixões ao se dedicar ao segmento.
Em março do ano passado, após acumular experiência como intérprete em eventos culturais, ela foi selecionada para trabalhar na Estação das Artes; quatro meses depois, o amigo Juan se juntaria a ela, em uma nova seleção.
Por terem se acostumado a interpretar, muitas vezes, de forma virtual, houve um período de estudo e adaptação para interpretar em cima dos palcos; pouco tempo depois, porém, ambos já estavam enturmados com os demais profissionais e empolgados com a nova missão.
“Nosso trabalho é feito em conjunto com várias outras áreas: a comunicação, a produção, a técnica do som e da luz. Fazemos juntos acontecer a acessibilidade em cima do palco, porque é preciso toda uma adaptação para se ter uma boa visibilidade do intérprete”, explica Juan.
Para além do palco: estudo e troca de experiências fortalecem o trabalho
A tradução e a interpretação de obras artísticas exigem uma pesquisa específica: antes de “se apresentarem” junto aos artistas, os profissionais da área costumam pesquisar estilo de apresentação, performances similares e até mesmo vestuário, no caso de trabalhos em apresentações cênicas.
Ellen e Juan contam que, além do contato prévio com os artistas e os demais setores responsáveis pela parte técnica e conceitual das apresentações, os dois comumente também trocam ideias e tiram dúvidas com intérpretes de outros equipamentos culturais, em um grupo de estudos criado para aprimorar técnicas. Além disso, mensalmente, os nove tradutores-intérpretes do Instituto Mirante se reúnem para pensar melhorias e compartilhar experiências.
O alinhamento e a constante pesquisa evitam situações indesejadas – como, por exemplo, problemas com produtores externos e os próprios artistas. “Cada trabalho demanda um estudo e uma forma de se ter uma interpretação diferente”, destaca Juan. “Inclusive onde o intérprete vai ficar, justamente para não perder o foco do intérprete nem do artista”, completa.
A presença do intérprete no palco, aliás, vem sido ressignificada. Sai o profissional que se “esconde” e entra uma performance que complementa o show em questão: afinal, a Libras diz respeito também à linguagem corporal, e cada estilo de arte pede um tipo de interpretação.
“Eu gosto muito de traduzir e interpretar trap e rap. Por ser um gosto pessoal, facilita muito a interpretação, porque tenho um conhecimento a mais – e não é só uma interpretação, é uma apresentação mesmo, junto ao artista que está no palco”, explica Juan.
Já Ellen, que além de tradutora-intérprete é também artista da dança e do teatro, conta que se alegra quando pode unir as duas paixões em um só trabalho: a Língua de Sinais e as artes cênicas. “Quando tem alguma apresentação, alguma performance, eu consigo fazer as duas coisas que eu gosto. Já em relação aos shows, eu amo fazer forró das antigas”, afirma.
A personalidade dos intérpretes, aliás, é vista com um diferencial pelo público. Assim como intérpretes de eventos televisionados que, vez ou outra, viralizam nas redes, eles também chamam a atenção do público cearense – tanto o ouvinte quanto o público-alvo, a comunidade surda.
“A nossa profissão é exposição, querendo ou não chama uma certa atenção, as pessoas gravam. E quando tem público surdo e você percebe que ele está lá se engajando, é muito legal”, conclui Ellen.
Juan ressalta que a visibilidade que os profissionais da área recebem serve, principalmente, para lembrar da importância da Libras para a acessibilidade. Ele conta que, ocasionalmente, após as apresentações, é abordado por pessoas ouvintes que, ao conhecer o trabalho, ficam curiosas para aprender a interpretar. “A gente está conseguindo mostrar, cada vez mais, que a Libras é muito bacana”, pontua.
Outro ponto importante em relação à maior visibilidade dos tradutores-intérpretes vai além do direito à cultura, lembra Ellen. Se trata da oportunidade de trabalho para tradutores-intérpretes surdos, grupo que tem crescido, mas ainda precisa ganhar espaço no mercado.
“O ouvinte é usuário da língua, mas a língua não deixa de ser da própria comunidade surda. Esse mercado ainda está crescendo, mas é precisfo pensar por quem e para quem”, ressalta.
Intérprete-criadora
Há, no Ceará, um projeto musical no qual a intérprete de Libras não é uma presença pontual, mas uma integrante criativa. Vanessa de Assis atua há pouco mais de um ano junto à banda do cantor e compositor Berg Menezes, que tem na acessibilidade ao público surdo uma das mais fortes bases de trabalho.
No trabalho com Berg, Vanessa é integrante fixa da mesma forma que os músicos, por exemplo. No palco, a cada show, se posiciona logo ao lado do cantor não somente como intérprete, mas também vocalista e performer.
Na prática, além das funções citadas, contribui também em composições, sempre agregando os conhecimentos em Libras em cada uma das áreas. A profissional está, atualmente, acompanhando a turnê Sinais Musicais, do artista.
O contato inicial de Vanessa com a Libras ocorreu há mais de 10 anos, em 2013, quando ela começou a lecionar numa escola para alunos surdos e precisava ter as aulas acompanhadas por um profissional tradutor-intérprete.
“Era muito angustiante pra mim não conseguir me comunicar diretamente com meus alunos, por isso mergulhei nos estudos da Língua Brasileira de Sinais e, em um ano, eu já havia dispensado a necessidade do intérprete comigo”, partilha.
A partir da experiência, Vanessa desenvolveu carreira na acessilidade, participando de eventos e outras atividades ao longo dos anos. O encontro com o projeto musical de Berg, no Carnaval de 2023, ocorreu enquanto ela trabalhava como tradutora em shows da folia.
“Imagina a minha surpresa quando disseram que, naquele show, não precisavam do nosso serviço pois a própria banda tinha seu intérprete, e a surpresa foi ainda maior em ver o formato do show, onde o intérprete não estava ali no cantinho, de preto. Ele fazia parte do espetáculo”
Após conhecer o projeto no início de 2023, Vanessa acabou recebendo, em agosto do mesmo ano, uma proposta para acompanhar Berg em uma turnê pelo Nordeste.
“Apesar de muitas dúvidas, medo, insegurança, eu não consegui dizer ‘não’. Essa energia da música e da arte são muito atraentes pra mim. Conhecendo um pouco do trabalho do Berg, a decisão foi assertiva e mergulhei nos estudos do repertório, ensaios, conhecer o pessoal da banda e me aprofundar na proposta do trabalho dele”, relembra.
No projeto, como Vanessa havia percebido desde que viu o grupo no palco pela primeira vez, a pessoa intérprete é também criadora e integrada à banda. “Como intérprete de Libras, minha performance não só traduz as letras, mas também expressa o ritmo, a emoção e a energia da música”, ressalta.
“Isso cria uma nova camada de comunicação artística, mostrando que a arte pode transcender qualquer barreira de comunicação. E um show musical, que em teoria seria apenas uma experiência sonora, acaba sendo também visual, sensorial, para surdos, ouvintes e pessoas com outras deficiências”
“Essa é a proposta do Berg, levar a sua música para todos”, resume a artista. Para Vanessa, a experiência do projeto musical reforça a acessibilidade como “compromisso contínuo”.
“A experiência de ser não somente intérprete fixa da banda, mas uma integrante, me mostrou que a acessibilidade é um compromisso contínuo, não um evento isolado, e exige adaptação constante, estudo e respeito”, aponta.
“Além disso, a colaboração com a banda demonstra que a inclusão na arte é um esforço coletivo que enriquece a experiência para todos. Não é somente a presença do intérprete que traz a questão da acessibilidade, todo o show é pensado para ser inclusivo, conta com audiodescrição, luz, figurino e várias outras questões”, avança.
“Ser pioneiro não é fácil, desbravar qualquer área não é fácil, mas é um trabalho muito gratificante e eu amo”, finaliza a intérprete.
Tour Sinais Musicais
- Acompanhe a agenda da turnê em @bergmenezes
Brasil avança na acessibilidade, mas ainda enfrenta desafios
Segundo o advogado José Olímpio Ferreira, vice-presidente da Comissão de Direitos Culturais da Ordem dos Advogados do Brasil - Secção Ceará (OAB-CE), a legislação que garante o acesso aos bens culturais no Brasil para pessoas com deficiência é bem fundamentada e segue orientações e documentos internacionais, mas ainda enfrenta desafios na implementação.
Apesar de legislações específicas, como o Estatuto da Pessoa com Deficiência (lei nº 13.146/2015), já versarem sobre a obrigatoriedade do acesso à cultura para todos os públicos, alguns avanços surgiram apenas recentemente, por meio de leis de incentivo durante a pandemia.
"A Lei Paulo Gustavo, por exemplo, propõe a quebra de barreiras físicas e atitudinais, prevendo a contratação de profissionais que garantam a acessibilidade, bem como adaptações necessárias para garantir o acesso físico. A Lei nº 8.313/1991, conhecida como Lei Rouanet, também trata, de forma específica, do acesso de projetos culturais a pessoas com deficiência", explica José Olímpio.
O Ceará se destaca como um estado de vanguarda na implementação de políticas culturais, e é citado, nesse sentido, por diversas autoridades políticas, bem como acadêmicas. Esse movimento tem base em discussões internacionais, de longos anos, fruto de muita luta e participação popular que precisa ser cada vez mais ampliada."
Para garantir que o acesso à cultura seja pleno e universal, porém, não basta estabelecer normativas. É preciso, também, fiscalização, tanto do poder público quanto da população, defende José Olímpio.
"É preciso estabelecer, por exemplo, rubricas de acessibilidade nos editais, que pontuem para a sua aprovação, implementando nos projetos culturais, recursos para a acessibilidade tais como Libras, audiodescrição, braille, fonte ampliada, linguagem simples, acessibilidade arquitetônica, dentre outros. Além disso, a vigilância constante do público, pois a participação efetiva da sociedade é que altera a realidade", pontua.