Fotógrafo troca a França pelo Ceará e registra anônimos e paisagens locais: ‘Nasci francês, mas vou morrer cearense’
Denis Rouvre mora em Jericoacoara e está com trabalhos expostos na Caixa Cultural Fortaleza até o dia 20 de abril

Bastou Denis Rouvre chegar ao Brasil, há 25 anos, para ver até o próprio nome mudar de feição. Já foi “o gringo”, “o francês”, “o fotógrafo”. Hoje, orgulha-se de ser chamado de “cearense”. “Isso é muito bom porque, quanto mais você acreditar, mais consegue chegar onde quer. E eu vou conseguir. Nasci francês, mas minha vontade é morrer cearense”.
Esse amor todo pela terra de Alencar tem motivo: estar aqui é o sonho que o fotógrafo não dizia nem a si mesmo quando, em 1967, nasceu em Epinay Sur Seine – espécie de distrito nos subúrbios do norte de Paris – e, ano após ano, começou a desbravar o mundo por meio do trabalho com imagens. Parte dessa trajetória está disponível na Caixa Cultural Fortaleza.
Denis ficou consagrado por atuar como retratista para renomados veículos de comunicação, a exemplo dos jornais Le Monde e New York Times e da revista Marie Claire. Inúmeras celebridades e artistas de destaque no cenário mundial já foram clicados pelo francês.
Trabalhos expostos em mais de 10 países, seis prêmios de fotografia conquistados e nove publicações literárias individuais são alguns dos legados de 30 anos de carreira.
Aqui no Ceará, o público pode conferir a faceta autoral do fotógrafo com a exposição “O Amanhã não Existe”, que reúne mais de 50 obras de Denis, com personagens reais e imaginários.
Nelas, entra em cena a força do espírito humano e questões sobre um mundo mais sustentável. A exposição fica em cartaz até o dia 20 de abril e traz registros produzidos em locais como Jericoacoara, Pirambu, a Sucata Chico Alves e o Edifício São Pedro.
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Na mesma mostra, também é possível conferir a relação dele com o Brasil de forma mais aprofundada a partir de 150 outros trabalhos, ricos nas mais diferentes cores, gingas e perspectivas do país. Além de encher os olhos, o passeio pela jornada artística de Denis reforça o quanto o francês está cada vez mais contente em ter escolhido o Ceará como casa.
“Há 25 anos cheguei no Brasil e encontrei esse lugar ideal para viver. Surgiu em mim uma alegria, uma felicidade de viver o dia a dia… Já encontrei muitas coisas aqui que já foram um sonho na minha vida, sobretudo essa ligação com a natureza. Parece uma coisa muito simples, mas é o contrário, é algo muito rico”, relata.

Segundo ele – que primeiro desembarcou no Recife desprovido de GPS e "sem falar uma palavra em português" – a pandemia de Covid-19 desenhou outros rumos internos, capazes de fazê-lo olhar para trás, apagar um pouco o que passou e, a partir dali, iniciar uma nova vida. Após passar por Fortaleza e outras cidades, fixar morada em Jericoacoara pareceu perfeito.
Nesse lugar onde está há sete anos, deseja, por meio da fotografia, imaginar o mundo em que gostaria de viver. Não à toa, diz que a acolhida dos cearenses é fundamental para alimentar o percurso. Contribuem para isso nosso humor indefectível e a própria disposição das pessoas em posar para as lentes de Rouvre. A maioria é anônima e pertencem aos próprios lugares onde estão, contribuindo para uma maior veracidade do ofício de Denis.

No ensaio realizado no extinto Edifício São Pedro, por exemplo, os próprios ocupantes do prédio à época foram protagonistas dos registros. Para o fotógrafo, nossa população é “muito aberta a imaginar outros mundos”, e isso justifica essa adesão tão generosa aos projetos capitaneados por ele. Há outras variáveis nessa equação, claro.
“É nas margens da sociedade que encontro pessoas que lutam, têm energia para trabalhar, para sobreviver. Elas têm muita vontade de conversar, jogar e brincar comigo, sempre me tratam com muito respeito. É essa ligação que faz com que eu me sinta muito mais cearense”.
Do estrelato para o autoral
Na seara autoral de realização, Rouvre viajou para países como Senegal, Tailândia e Japão – nestes, fotografando sobretudo lutadores. Para ele, a luta faz parte do percurso humano, não à toa a profusão de retratos sobre o tema.

Uma imersão pela África foi a responsável por mudar tudo em Denis, da ótica profissional ao espírito indomável. “No início da minha vida, morei na África porque fiz o serviço militar lá – naquela época, ele era obrigatório. Isso me influencia até hoje. Inclusive, ‘O Amanhã Não Existe’ é uma frase que aprendi com eles. Significa ‘hoje é o dia para viver’, remetendo às vivências que tive nessa terra durante mais ou menos quatro anos”.
De lá até aqui, além das séries mais conhecidas, a exemplo daquela sobre lutadores, ele também desenvolveu uma a respeito da violência contra a mulher após viajar por países como Nepal, Colômbia e Congo, e também com indígenas no Xingu. Pretende lançar outras, sempre com olhar acurado a respeito das diferentes particularidades humanas.

“É um retratista, então o foco dele sempre será empoderar a pessoa retratada. Geralmente, não gosta de deixar uma coisa clara. Prefere que as pessoas tenham livre interpretação sobre o que verão. Na exposição da Caixa, a ideia é utilizar a fotografia como um filme que começa dentro de uma narrativa ficcional, à la Mad Max, para imaginar um futuro possível e depois ir para o real”, situa Bruno Ko, curador de “O Amanhã Não Existe”.
Na conversa com o Verso por videochamada – Denis sob um temporal em Jericoacoara, e Bruno no nublado de Fortaleza – o curador ainda adiantou que um dos próximos projetos de Denis será apresentado no Museu da Imagem e do Som do Ceará, e que a mostra na Caixa tensiona questões que deveríamos refletir todos os dias.
“A narrativa tem como mote, ‘E se um dia o mundo parasse? E se um dia houvesse um colapso, e a energia, por exemplo, parasse de funcionar? Como a gente ficaria sem comunicação?”. A sociedade precisaria se reinventar e voltar às origens. E as origens dizem respeito a viver em comunidade – uma vez que essa dinâmica social nos deixa mais fortes. É um convite para mundo sem preconceito, mais livre”.
Próximos passos
Um documentário e série de outras empreitadas imagéticas estão no radar de Denis Rouvre. É artista inquieto. Em Jericoacoara mesmo, já foi capaz de passar 15 dias recolhendo todo o lixo vindo do mar para criar figurinos dos modelos que retrataria em um trabalho. Também esta iniciativa pode ser conferida de perto na Caixa Cultural Fortaleza.
“Trabalhei sobre o tema da identidade desde o início da minha vida profissional sem saber”, percebe, cada vez mais imbuído do espírito de exaltar a liberdade nas mais diferentes esferas do fazer fotográfico. E, se for para fazer isso no Ceará, que seja carregando as mais amplas insígnias do que faz nosso povo ser quem é.
“Nada faz de mim um gringo senão o sotaque. Me sinto honrado em poder ser outra pessoa aqui no Ceará. Uma coisa que adoro aqui é que, se você faz uma piada sem graça para um cearense, ele também vai fazer uma piada e os dois vão tomar uma até o fim da noite. É muito legal”. Alguém duvida de que, nesse sangue europeu, também corre vento Aracati?
Serviço
Exposição “O Amanhã não Existe”, de Denis Rouvre
Em cartaz na Caixa Cultural Fortaleza “Avenida Pessoa Anta, 287, Praia de Iracema” Visitação até 20 de abril de 2025, de 10h às 20h (terça a sábado) e de 10h às 19h (domingos e feriados). Entrada gratuita. Contato pelo telefone (85) 3453-2770 e pelo site da Caixa