Baiano finalista do Jabuti mistura realismo mágico e elementos do Nordeste em novo romance
Livro "Cartografia para Caminhos Incertos" se inspira em Gabriel García Márquez, Socorro Acioli e Italo Calvino
De uma terra sem eira nem beira, um herói parte pelas estradas do Nordeste em uma jornada de autodescoberta e amadurecimento. A caminhada de Mané, como é conhecido Gabriel Manoel García de Barros, é marcada pelo resgate do fantástico perdido no concreto, em "Cartografia para Caminhos Incertos", do escritor baiano Ian Fraser.
A obra, publicada este ano pela editora Intrínseca, nasce a partir de um diálogo sensível com diversos escritores, como Italo Calvino, Manoel de Barros, Gabriel García Márquez, Oswald de Andrade, Socorro Acioli e Voltaire.
Em entrevista ao Diário do Nordeste, o autor, que foi finalista do prêmio Jabuti em 2023, revelou que considera ser impossível escapar daquilo que ama e o inspira. Para ele, sua escrita é uma projeção de paixões. "Vamos ecoando aquilo que é belo e bizarro ao nosso redor", disse.
A história, então, vai acompanhar Mané, natural de Redenção, uma cidade mágica que está sempre em movimento. Por viver em romaria, os habitantes não devem deixar os limites do município para não arriscarem cair do mapa e nunca retornar.
Mas é tentando buscar flores que estavam logo ali, no limite da cidade, que o herói Mané vai longe demais. Redenção seguiu, e ele ficou para trás.
Dessa forma, inicia sua peregrinação em busca de sua cidade natal, enquanto descobre um mundo de belezas e horrores nessa narrativa marcada por realismo mágico e elementos da cultura brasileira.
Veja também
Desafios da escrita
Ao ser questionado se houve um desejo de desistir enquanto dava corpo ao manuscrito, Ian negou com veemência. "Não acredito em desistir de uma escrita. Na pior das hipóteses, o que tenho é um 'deixar para depois'".
Ainda assim, diferente de seus outros livros já publicados — "A vida e as mortes de Severino Olho de Dendê (2022)" e "Araruama: O livro das raízes" (2017) —, o autor precisou enfrentar o medo de se aventurar por estilos fora da sua zona de conforto.
"Creio que esse seja o maior desafio de Cartografia para caminhos incertos, me tirar da zona de conforto de uma narrativa estruturada em três atos, com clímax, nó e desenlace, e tantos outros jargões que usamos para descrever o ofício de escrever", disse.
Peregrinação por cidades encantadas
Para construir e elaborar essas cidades, Ian revelou que buscou inspiração no livro "As cidades invisíveis", de Calvino.
"As cidades, sua arquitetura, seus biomas, sua cultura, suas relações, são pilares fundamentais na construção dos sujeitos. Eu não podia deixar de explorar a relação do indivíduo com as muitas cidades que ele visita ao longo de sua jornada. Sendo assim, nada melhor que me ancorar nas costas do Calvino".
Assim, como Marco Polo conhecendo as cidades do império de Kublai Khan ou Alice tentando encontrar seu caminho no País das Maravilhas, Mané vai viajando por lugares encantados do sertão nordestino.
Neles, o leitor encontra há um evidente reflexo da história do Brasil, com paralelismos sagazes, que retratam principalmente as incoerências da realidade.
O patriota da história de Mané, por exemplo, ao invés de bater continência à bandeira dos Estados Unidos, porta um arco e flecha indígena, enquanto tem mesas cobertas por chitas e bois de barros. Em suas paredes? Possui quadros de figuras célebres como Machado de Assis, Ariano Suassuna e Irmã Dulce.
Veja também
Epifanias da caminhada
Com sutileza, Fraser aborda temas como a fé, a fome, o amor, a desigualdade e o abandono dos vulneráveis. Sua escrita surge como um convite aos leitores mergulharem em suas próprias cidades e territórios com outros olhares.
“Não há nada mais perigoso do que a arte com propósito”, afirma um dos personagens do livro, destacando que, muitas vezes, a cultura assusta porque revela “coisas ocultas", coisas que as pessoas escolheram ignorar. "A palavra, quando acesa, não queima em vão.”
Mané vê um mundo por um véu de poesia, que atravessa toda a construção narrativa da história. Ele está atento aos pequenos soluços de auroras e às conversas sobre voltas dos rios.
E é na estrada que Mané entende, por fim, aquilo que sua professora de infância uma vez tentou lhe mostrar: que é no quebrado, nas pequenezas e nas incompletudes que reside a beleza do que a vida tem a oferecer.