Mulher consegue certidão de nascimento após 70 anos e redescobre paixão pela vida

Maria Imaculada Conceição faz aniversário nesta segunda-feira (8), com alegrias inéditas.

Escrito por
Diego Barbosa diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Em mãos com a certidão de nascimento, Maria Imaculada Conceição agora sonha alto.
Foto: Kid Júnior.

Quando falo Maria, falo de muitas. Quando falo Maria Imaculada Conceição, são apenas duas: a santa canonizada pela Igreja Católica, considerada livre da “mancha do pecado”; e a cearense que passou quase sete décadas sem existir oficialmente para o Estado. A história desta última é tão comovente quanto felizarda. Revela amor pela busca da dignidade.

Tudo começa com uma névoa no conhecimento de si. Dona Maria Imaculada até hoje não sabe quem são os próprios pais, nem qualquer pessoa da família. Desconhece a data exata de nascimento e até como chegou ao mundo. Sabe apenas que, ainda menina, passou a ser criada por uma família, cuja casa localizava-se na Praia de Iracema.

Desse tempo, a memória tratou de gravar o pior. “Me adotaram não como filha, mas como escrava”. Nunca foi ao colégio, não aprendeu o beabá. Sabia que aqueles não eram os próprios parentes, e, mesmo quando perguntava pelo pai e pela mãe, sobre como foi parar ali, não obtinha retorno. Davam calado por resposta. E havia coisas ainda mais cruéis.

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O padrasto, por exemplo, era violento quando bebia. Fazia-a sofrer. A solidão tornou-se quase amiga, e a desesperança tomou conta dos dias. Uma apatia, um desconsolo. Além de inexistir para a pátria – sem certidão de nascimento, RG, CPF ou qualquer tipo de documentação – passou a morrer para si mesma. Amofinou-se, pequena que já era.

Mas esta jornada muda pela força poderosa da amizade e o desejo de transformação. Quando libertou-se da casa onde cresceu e da residência onde, na sequência, passou a trabalhar como doméstica – saiu de lá porque os moradores contraíram Covid-19 e ela, sem conseguir tomar vacina devido à inexistência de documentos, acatou a sugestão de uma amiga de ir embora – dona Maria passou a viver em Caucaia e a cultivar ternura com a vizinha, Cláudia de Araújo.

Na imagem, retrato em plano médio de uma mulher brasileira mais velha, de pele morena, sorrindo e olhando diretamente para a câmera, segurando dois documentos. Com a mão esquerda, ela segura, bem próxima e em foco suave, uma Certidão de Nascimento (Certidão de Nascimento) brasileira. Com a mão direita, em foco mais nítido, ela segura uma carteira de identidade ou documento de registro nacional (RG) plastificado, que mostra sua foto. Ela está vestindo uma blusa estampada e um colar. O fundo mostra uma parede pêssego/rosa e uma porta de madeira.
Legenda: Desejo de transformação e amizade oportunizaram novos rumos para dona Maria.
Foto: Kid Júnior.

Apresentou-se a ela como Conceição – nome que recebeu daquela família – e, vez ou outra, visitava o lar da nova companheira de vista. As trocas sempre apascentavam as dores. Gostava daquele movimento. Em certo período, contudo, sumiu. Não ia mais na casa de Cláudia, não ocupava mais a rua. Aquilo despertou curiosidade: o que havia acontecido?

No reencontro, explicou: por estar doente e não conseguir ir ao hospital, dada a inexistência dela para o Estado, preferiu se guardar para se curar e voltar, renovada, à rotina.

Atenta à amiga, Cláudia decidiu ali mesmo que tentaria reverter aquela situação. Prometeu fazer com que, um dia, dona Maria fosse, de fato, alguém – não só para os próximos, mas para o mundo. “Deus me incomodou para eu ajudar a ela; até em sonho, me senti incomodada”.

Na imagem, close-up de uma mão segurando uma Certidão de Nascimento (Certidão de Nascimento) brasileira oficial. O documento está em papel de segurança e exibe o brasão da República Federativa do Brasil no topo. O nome do indivíduo é
Legenda: Certidão de nascimento de Maria Imaculada Conceição foi emitida em agosto deste ano.
Foto: Kid Júnior.

Dirigir-se à unidade de Caucaia da Defensoria Pública do Ceará foi o primeiro e mais concreto passo. Por meio do órgão, o que parecia quase impossível, dada a complexidade da situação, tornou-se real: em 12 de agosto deste ano, quando recebeu, pela primeira vez, a certidão de nascimento, dona Maria, outrora sem saber quem era, mudou o status: a quem perguntasse, responderia pelo nome de Maria Imaculada Conceição.

A identificação assim, completinha, nome e sobrenome, foi escolhida em homenagem à santa que com ela esteve em todos os momentos. Quem cuidou e vigiou, dirimiu o pranto. “Ela nunca me abandonou”, emociona-se.

Apegada a essa certeza, agora ela quer fazer outros carinhos na vida. Décadas sem os direitos básicos de qualquer cidadão constituídos por Lei – educação, saúde e benefícios sociais – pretende neste instante sonhar e realizar.

Iniciar os estudos é uma das vontades. Conseguir a carteirinha da gratuidade no transporte público, outra. Será bom expandir os horizontes da cidade.

Uma das maiores, porém, é garantir a aposentadoria e, assim, desfrutar ainda mais dos dias nos quais se vê diferente, mais dona do próprio coração. Cabisbaixa que andava, voltou até a sorrir.

Na imagem, retrato em close-up do rosto de uma mulher brasileira mais velha, de pele morena, olhando diretamente para a câmera com um leve sorriso ou expressão serena. O fundo, à direita, está desfocado, mas é claramente visível uma estrutura com raios ou hastes escuras que se projetam de um ponto central claro, com áreas em tons de vermelho e esbranquiçado (parecido com um ventilador ou um padrão de sol).
Legenda: A conquista da aposentadoria é um dos desejos de dona Maria Imaculada.
Foto: Kid Júnior.

“Tem coisa melhor que essa? Tem não. A minha vida mudou muito, demais”. Cláudia também percebe outra pessoa renascendo na vizinha e amiga. “Ela já foi uma pessoa muito sofrida, vivia sendo humilhada na casa dos outros, não tinha onde morar, já dormiu até no mato... Agora é alegre, não dá mais pra ver tristeza no coração”.

Hoje à noite haverá bolo na casa de Cláudia. Amigos se organizaram para celebrar o aniversário de 69 anos de dona Maria como tem que ser – bolo, vela, salgadinho. É o mesmo dia de Imaculada Conceição, a santa. Organizaram também uma vaquinha para garantir a permanência dela na casa que alugou, até conseguir outro trabalho. Quem tem um amigo, realmente tem tudo.

“O amor, pra mim, é tudo isso. Penso muita nas minhas amizades, principalmente na dona Cláudia – que eu já amava, mas que passei a amar ainda mais por ela ter feito tudo isso por mim. Agora não vou precisar trabalhar na casa das pessoas sendo humilhada. Vou atrás da minha aposentadoria, e sossegar, porque não tenho mais aquela mesma coragem de antes. A partir de agora, vai dar tudo certo pra mim”.


 

Esta é a história de Maria Imaculada Conceição e o amor dela pela vida. Envie a sua também para diego.barbosa@svm.com.br. Qualquer que seja a história e o amor.

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