A era da TV na Praça e dos 'televizinhos' marca a vida dos cearenses
Pode parecer estranho aos olhos de hoje, mas durante um bom par de anos, a maioria da população brasileira não tinha condições de ter um aparelho televisor em casa. Para não perder as novidades diárias da telinha, o jeito era se virar como podia
O futebol pode ser a coisa mais lembrada quando se fala na tal “paixão nacional”. Contudo, vez ou outra, é comum recorrer ao termo para incluir outros amores confessos dos brasileiros. Inclua aí o Carnaval, cerveja, churrasco, novela…
Conforme a licença classificativa que a expressão nos permite, pedimos licença para incluir a TV nesse olimpo do bem-querer BR. O 18 de setembro marca as celebrações do “Dia Nacional da Televisão”. Sim, temos uma data que reverencia esta tecnologia tão presente no cotidiano dos lares. E fora deles também, diga-se.
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Longe da atual realidade de acesso ou oferta, possuir um aparelho televisivo em casa era privilégio de uma abastada minoria no País. Nas capitais, era comum a existência dos “televizinhos”. Já nos distantes municípios do Interior, a única TV presente transmitia direto da praça. Naquela caixa presa a cadeado guardava-se uma janela para outro universo.
Já se aventurou como televizinha ou foi um espectador assíduo da TV de praça? Adentramos esta memória recente da comunicação brasileira a partir de sua presença no cotidiano dos cearenses. Boa parte dessa história serve de referência para o alegre universo da série Cine Holliúdy, cuja segunda temporada segue estourada de audiência.
Kung fu, novela e futebol
Duas experiências, com curta distância de tempo entre elas, me mostraram um pouco do fascínio que as telinhas exercem. A primeira acontece no início dos anos 1990. Rua 35 do Conjunto Habitacional Jereissati 1. A sexta-feira seguia movimentada no bar do Jurandir.
Além da sinuca e dos bregas rasgados de José Ribeiro e Alypio Martins, outro elemento divertiria e dominaria a atenção da clientela. Um televisor Telefunken no balcão. Naquela noite, a grade da TV exibiria a fita do “Operação Dragão” (1973).
Para muitos ali era oportunidade das raras. A chance de ver Bruce Lee distribuindo canga leitão e tabefe fez encher o lugar. Telão? Que nada. O luxo era uma simples 14 polegadas e o quesito técnico pouco importava. Cada tapa ou movimento do herói a estalar da telinha motivava a alegria da pequena multidão.
Evandro, morador da 34, tirava onda com as habilidades do herói. Ensaiava umas voadoras no ar, evocando, sem ter ideia, o estilo Zui Quan do Kung Fu. Em português, refere-se ao estilo de luta do Punho Bêbado. Poucos anos depois, o interior cearense me propiciou o encontro com uma TV de praça
Caracará, 1992. Viagem de Semana Santa ao pacato Distrito de Sobral. No coração da localidade funciona a capela de São Francisco. O relógio marca algo em torno das 17h e um cidadão se dirige a uma caixa de concreto montada a alguns metros dali. A responsabilidade era garantir o funcionamento da única TV do lugar. Por ela era possível acompanhar do casal da novela à alguma peleja do Flamengo.
Os episódios acima ilustram duas maneiras de acesso a este equipamento. Da implantação da TV brasileira nos anos 1950 ao fluxo tecnológico da "smart" tela plana, a televisão é presença fiel na dia a dia da população. A Copa do Mundo vem aí e certamente tem torcedor planejando um novo eletrodoméstico. Além da fronteira cultural, a história da televisão se entrelaça com severas mudanças de comportamento.
Vizinhos, cheguei
O Dia Nacional da Televisão existe, porque há 72 anos, em 18 de setembro de 1950, o Brasil testemunhava a primeira televisão em funcionamento, com a inauguração da TV Tupi em São Paulo. O sonho da primeira emissora de TV nasce de um pioneiro da comunicação no país, o paraibano Assis Chateaubriand. 10 anos depois, a TV Ceará chegava à casa dos cearenses. Outros tempos nasciam ali.
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Aquela nova mídia trouxe a rotina de reunir a família em torno da telinha. Acrescente a essa comunhão a presença dos vizinhos e outros conhecidos. Segundo mestre Gilmar de Carvalho (1949-2021), no livro "A Televisão no Ceará (1959-1966): Indústria cultural, consumo e lazer", a televisão passou a se influenciar na arte do povo, apesar de poucas pessoas terem o aparelho nesse tempo.
De repente, revistas passaram a dar conselhos de como ser um bom televizinho. Participar, levar algo, um refrigerante que seja. Um mimo para ajudar na casa que você estava assistindo televisão. Falamos de um contexto das capitais. E o resto do Ceará?
Agora, a respeito dos interiores, algo muito raro era quando tinha a televisão. Nos lugarejos próximos, todo mundo ia para o lugarejo que ia ter televisão, que o prefeito ia promover. Às vezes colocava até na praça para o público assistir. Hoje você vai ao menor casebre e tem televisão", descreve Gilmar de Carvalho na obra.
Em 2022, duas cidades do Ceará ainda mantém a arquitetura da TV de Praça. Falamos de Apuiarés (cerca de 102 km de Fortaleza) e o já citado distrito de Caracará. Naprimeira, confirmamos com moradores que a TV ainda é ligada até hoje. Situada na Praça São Sebastião, a caixa com a TV só perde a audiência quando o espaço público é tomado pelos praticantes de zumba.
TV na praça
Quanto a este movimento de televisores espalhados por praças do interior, vale a leitura do artigo "No tempo em que assistíamos televisão no meio da praça", assinado pelo Doutor em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Francisco de Paula Araújo. No estudo, o pesquisador resgata diferentes primas acerca deste fenômeno brasileiro.
No final dos anos de 1980 e início dos anos de 1990 os aparelhos de televisão eram itens obrigatórios em qualquer praça do interior do país, instrumento de barganha política junto a um eleitorado alijado de outros bens educacionais e culturais"
A presença da TV, reflete Araújo, comprometeu os parcos equipamentos culturais que existiam nestes municípios, a exemplo das salas de cinema. "Lembro que na minha cidade, no interior do Maranhão, havia um cinema chamado 'Cine Oriente' que, para sobreviver, passou a exibir filmes pornôs, o que não foi suficiente para sua sustentação, até porque não demorou muito a chegar à cidade as videolocadoras, onde os 'cinéfilos' podiam alugar suas fitas para assistir no conforto dos seus lares".
De forma lúdica e bem humorada, a série "Cine Holliúdy" traz o tema para o debate atual. Baseado no longa-metragem homônimo escrito e dirigido pelo cearense Halder Gomes, a trama gira em torno do personagem Francisgleydisson (Edmilson Filho). Dono de um cinema na fictícia Pitombas, este "cinemista" tem os negócios ameaçados por uma decisão do prefeito Olegário (Matheus Nachtergaele).
Retirando verbas da secretaria de cultura da cidade, o político instala um aparelho de TV na praça central do lugar. Da noite para o dia, os espectadores migram do cinema para os banquinhos a céu aberto. Diante do cenário, o herói da sétima arte passar a rodar os próprios filmes, com forma de manter a casa funcionando.
Em agosto último, estive no lançamento da segunda temporada de "Cine Holliúdy". Elenco, direção, roteiristas e as muitas mentes por detrás deste sucesso iluminaram ainda mais a sessão de imprensa. Ambientada nos anos 1970, a obra entrelaça eventos do passado para discutir situações do presente.
Matheus Nachtergaele refletiu sobre a presença desta nostalgia na trama. A TV na Praça sinaliza à luta do setor cultural brasileiro por dias melhores. "Temos nostalgia do melhor de nós e andamos tomando uma sova em tudo aquilo que é o melhor de nós. Cine Holiliúdy me parece a oportunidade mais linda, brincante, consequente de refazer as pazes do brasileiro com o Brasil, de reconstruir o amor que temos por nós", finalizou.