Ameaças, xingamentos e violência física: profissionais da saúde relatam rotina de atendimento em Fortaleza
Impacto vai da saúde física a bem-estar mental e prejudica atuação profissional; percepção disso foi acentuada na pandemia
Do lado de dentro dos hospitais, unidades básicas e de pronto atendimento, além da tensão para o cuidado com a vida dos pacientes, os profissionais da saúde precisam lidar com situações de violência em Fortaleza. São excessos, contra a integridade física e psicológica das equipes médicas, que vêm se intensificando na pandemia.
O caso mais recente foi registrado no Hospital Nossa Senhora da Conceição, no Conjunto Ceará, onde uma médica foi atacada por um paciente com uma faca na quinta-feira (9). No mês anterior, três pessoas foram mortas dentro de um posto de saúde no bairro Dias Macedo com a tensão dos profissionais da saúde que fugiram do local.
Os casos despertam atenção, mas a violência também se manifesta no cotidiano em escala menor. Alguns pacientes ou acompanhantes, principalmente em contexto de lotação das unidades de saúde, perdem o controle e disparam ameaças, xingamentos ou praticam violência física.
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Lá no Hospital onde a médica e os seguranças foram agredidos, por exemplo, outro episódio já tinha perturbado a equipe, como lembra uma profissional da saúde da unidade que terá a identidade preservada.
“No dia anterior, tinha acontecido outra situação: uma mulher se aborreceu pela demanda de atendimento, pegou o álcool que estava em cima da bancada e jogou no rosto das meninas. Saiu e ficou e por isso mesmo”, relata com descrédito sobre medidas de proteção.
Quem está na linha de frente, recebe a pancada maior, porque até chegar no gabinete muita confusão aconteceu fora. Já teve colega minha, agredida por paciente, que levou um soco na cara e os óculos dela quebraram
A profissional atua há bastante tempo e percebe uma acentuação dos casos nos últimos anos. “Na verdade sempre existiram, mas a pandemia aumentou essas situações das pessoas muito afloradas, com raiva, um descontentamento geral com a saúde pública”, reflete.
Na assistência aos pacientes, ela nota o clima do hospital fica tenso quando as doenças sazonais elevam o número de pessoas em busca de ajuda. “Eu circulo dentro do hospital e não consigo dar as costas para pessoa que eu não conheço, porque tenho medo de ser abordada”, frisa.
A somatória disso acaba por prejudicar o cotidiano da profissional. “Isso porque o paciente está estressado, mas como eu fico? O meu trabalho é sempre na retaguarda. Começar um plantão às 7h e torcer para que às 19h sair ilesa, com a sensação de dever cumprido, é muito complicado”, conclui.
Esse temor pela integridade marcou os funcionários do Posto de Saúde Edmar Fujita, no Dias Macedo, que tiveram de se esconder e pular a janela após disparos e registro de três mortes na unidade.
“Quando aconteceu, teve uma repercussão imediata nos grupos de WhatsApp das equipes. Foi uma situação de pânico absurdo, os trabalhadores ficaram realmente num desespero tremendo por conta do tiroteio”, lembra odontologista Cláudio Nascimento.
Mesmo funcionário da unidade, hoje ele atua como coordenador do Sindicato dos Odontologistas do Ceará (Sindiodonto) e frisa que medidas, como o reforço da segurança no local, são demandas anteriores ao que aconteceu.
“Foi realmente um cenário extremamente traumático para todos os servidores, que expressaram isso lá naquele momento e depois quando a gente se encontrou pessoalmente por conta da mobilização dos servidores que está acontecendo”, frisa.
“Agressão psicológica também mata”
Uma das classes mais afetadas por situações de violência nos locais de trabalho é a enfermagem, que atua na linha de frente de atendimento aos pacientes. De psicológicos, como xingamentos, a físicos, como empurrões, os episódios são cotidianos.
O relato é da enfermeira Ana Paula Lemos, presidente interina do Conselho Regional de Enfermagem do Ceará (Coren). Em 2021, segundo ela, a entidade recebeu 49 denúncias de violência contra profissionais de enfermagem – o que, ela estima, corresponde a cerca de 30% dos casos reais.
Quando precisa conversar e dizer ‘não’ ao paciente, é a enfermagem que vai. O paciente, muitas vezes por desconhecimento ou questões culturais, não consegue entender e coloca a culpa do não atendimento no profissional. Aí parte para a violência
A enfermeira afirma que o maior número de reclamações são de profissionais que trabalham no atendimento à classificação de risco, os que ela considera “os mais suscetíveis à violência”.
“É o profissional que vai dizer ao paciente que ele precisa esperar. Por não compreender o sistema, que não é o profissional que impõe, eles reclamam e partem pra agressão, de xingamentos à agressão física”, cita Ana Paula, que, ela mesma, já sofreu agressões psicológicas.
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Esse ambiente de ameaça costuma se estabelecer com frequência, como observa uma profissional da saúde atuante em Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Fortaleza, que opta por não se identificar.
"Nesse período de viroses, que aumentam os atendimentos, demora e pessoas começam a ameaçar quando entram no consultório, os profissionais e os funcionários da unidade”, detalha.
Os excessos passam por questões de segurança pública à intimidação aos atendentes. "Dizem que conhecem todo mundo na unidade, que sabem exatamente quem trabalha lá e o cargo em que estão”, completa.
O que está por trás da violência?
Quando alguém adoece, vários medos se somam e o contexto de dificuldades históricas no atendimento afetam pacientes e familiares, como contextualiza a psicóloga e professora da Universidade de Fortaleza, doutora Cynthia Melo.
"Sabemos que nosso sistema de saúde temos fragilidade na estrutura, organização, qualidade de atendimento, seja no setor público ou privado", frisa. Isso se manifesta no excesso de demanda, poucos servidores e o consequente atendimento precário.
Dentro dessa fragilidade do sistema, muitas vezes, os profissionais da saúde estão no fim da esteira do processo. Então, são quem o usuário vê para descarregar as insatisfações
A pandemia ou qualquer outro fenômeno que torne a situação nas unidades mais crítica acaba por propiciar novos casos de violência. Com isso, os funcionários também perdem em bem-estar e satisfação profissional.
"Não é à toa que os profissionais da saúde estão dentro das categorias com maiores níveis de bornout, que é o estresse profissional", conclui.
Violência intensificada
Para Ana Paula, à medida em que o sistema público de saúde fica mais deficitário, a tendência é que a violência aumente. “É difícil pra todos: pro profissional que não consegue atender e pro paciente que não consegue atendimento”, diz.
Com a pandemia de Covid, a pressão sobre as unidades de saúde aumentou – e, por efeito, houve “grande aumento nos casos de agressão a profissionais”, segundo destaca a presidente interina do Coren/CE.
Não havia espaço nem profissional suficiente pra atender todos. A falta de conhecimento da sociedade em entender que aquilo não é culpa do profissional, mas do sistema, faz com que, no auge da dor, o paciente agrida
A enfermeira afirma que foi criado um grupo de apoio aos profissionais adoecidos mentalmente pela sobrecarga e pela violência psicológica diária sofrida nos postos de trabalho – intensificada até pela falta de segurança pública.
“Vivemos numa cidade com índice de criminalidade muito alto. Muitas vezes, você vai trabalhar numa área de risco, e se a pessoa não teve consulta atendida, diz ‘vou lhe matar’. Não tem medicamento, ‘você vai morrer’”, exemplifica.
O aumento dessa tensão na pandemia é uma percepção compartilhada pelo médico emergencista Khalil Feitosa.
"É importante ter bastante empatia dos dois lados, a gente vai conseguir evitar essas situações. Passamos por dois anos complicados, porque a pandemia aumentou o nível de estresse tanto na população como nos profissionais da saúde", reforça.
Impactos para os profissionais
Contornar as situações de tensão com diálogo faz parte das vivências do médico emergencista nos 10 anos de atuação em unidades de saúde públicas. No período, não houve agressão física, mas diversos casos de excessos verbais e ameaças.
"Na grande maioria das vezes acontece pela superlotação, da sobrecarga dos profissionais, pacientes esperando bastante. São vários focos de incêndio que vão se juntando, se não controlar, podem culminar numa situação trágica", reflete Khalil.
Pacientes questionam o trabalho da equipe, fazem comentários do tipo 'se não atender, vou quebrar tudo aqui'. Na sua carreira, já viu um paciente quebrar os computadores da recepção da unidade hospitalar privada.
"Isso contribui até mesmo para uma menor produtividade, o profissional não se sente confortável no ambiente de trabalho, geralmente eles abandonam quando podem esse ambiente de trabalho ou podem ter situações patológicas de saúde mental", enfatiza.
Proteção aos profissionais
A Secretária Municipal da Saúde (SMS) informou que as unidades hospitalares de Fortaleza contam com vigilância privada 24h, para a proteção de pacientes, visitantes e funcionários.
"Além disso, as unidades possuem porteiro na sua escala de profissionais", completou em nota. O diálogo sobre ações e medidas para preparar e responder aos desafios do contexto do dia a dia é permanente com os profissionais, como destacou a SMS.
A Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) lamenta e repudia casos de agressões verbais e físicas aos profissionais em qualquer unidade de saude, seja pública ou privada, como ressaltou em nota.
"A pasta investe no corpo de profissionais de segurança, além da exigência de identificação e cadastro nas unidades", acrescentou.
Duas das principais redes de assistência à saúde da iniciativa privada foram procuradas para detalhar a proteção dos funcionários de unidades médicas, mas ambas não responderam até a publicação desta reportagem.