Os 'fantasmas do gênero' assombram o Tio Sam
A eleição de Trump e o seu alinhamento com as gigantes da tecnologia estão escrevendo mais um capítulo do perigoso avanço da extrema direita no mundo

Alerta de nuvens carregadas vindos dos “esteites”! Entre as notícias recentes das bandas de lá, alguns fatos merecem a nossa atenção. Logo após a empresa Meta anunciar mudanças na política de segurança das redes sociais Facebook e Instagram, o discurso de Donald Trump durante sua posse como presidente dos Estados Unidos da América deixou claro: o aparelhamento político e tecnológico da extrema direita e da sua obsessiva perseguição às populações LGBTI+ ganharam novos contornos.
Iniciemos pelo caso da Meta. Mark Zuckerberg, CEO da gigante da internet, divulgou que a empresa mudará a forma de moderação dos conteúdos, substituindo – inicialmente nos EUA - os checadores de fatos (criados para coibir a disseminação de notícias falsas e outros crimes cibernéticos) por um sistema de notas alimentado pela própria comunidade de usuários, tal como já acontece na rede social X.
Na prática, temas como imigração e gênero passaram a ter menos restrições nas plataformas virtuais da Meta, sendo possível que as pessoas criem e moderem elas mesmas os conteúdos de terceiros a partir de seus critérios ou crenças pessoais, eliminando, assim, as já insuficientes barreiras de propagação de discursos de ódio contra minorias sociais.
Entre as mudanças realizadas, a nova política de uso passou a permitir, por exemplo, a utilização de linguagem insultuosa nos debates sobre direitos de LGBTI+ e a associação de doenças mentais a uma orientação sexual e ou identidade de gênero, sob a falsa alegação de combate à censura.
Por sua vez, o recém-empossado presidente dos EUA usou o primeiro discurso do seu mandato para assinalar mais uma vez a sua rejeição à existência de qualquer expressão de gênero que não seja baseada na concepção biológica binária de masculino e feminino. Em dezembro de 2024, ele já havia anunciado que utilizaria sua passagem pela Casa Branca para combater o que classificou como “loucura transgênero”.
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Como o visto, as pautas anti-LGBTI+ estão no centro das preocupações da maior potência político-econômica do mundo. Mas por que Trump e as “big techs” têm tanto medo das questões de gênero e diversidade? Que interesses guardam a retomada dos discursos de patologização das identidades trans e LGBTI+?
A filósofa Judith Butler já observou que os “fantasmas do gênero”, vira e mexe, adentram o debate público na forma de ameaça à cisheteronorma. A obsessão de grupos hegemônicos para conter a luta por direitos e justiça social é o resultado do seu interesse em manter privilégios e formas de dominação. Não raro, eles se utilizam do esforço narrativo de combate à censura para promover justamente o seu contrário, afinal, como pode ser legítima uma liberdade de expressão que perpetua a contínua perseguição aos direitos de pessoas trans e travestis?
Há tempos que as pautas em torno da cidadania trans foram assaltadas pela extrema direita, que alimentam o fetiche sobre os nossos corpos e ameaçam as nossas existências em nome da barganha política e na manutenção do poder do capital, mirando a manutenção do seu lugar na hierarquia social. Com um discurso fácil e vazio de sentido, os viúvos da ditadura investem em narrativas de pânico moral e apontam suas miras para nós, uma “ameaça” que, pasmem, ainda disputa o direito básico à vida e à humanidade, que ainda sonha com espaços menos violentos e capazes de nos reconhecer como gente!
Está evidente que a eleição de Trump e o seu alinhamento com as gigantes da tecnologia estão escrevendo mais um capítulo do perigoso avanço da extrema direita no mundo. Lamentavelmente, a história já nos mostrou o que pode acontecer quando setores ultraconservadores de inspiração totalitária e nacionalista ascendem ao poder.
Apesar de assombroso, o cenário também é de esperança. Os atos de Trump e da Meta ignoram algo característico da subjetividade humana, especialmente quando falamos de gênero e sexualidade: essas dimensões não se comandam apenas por decreto ou algoritmos artificiais. As plataformas digitais e os governos constituídos só existem porque há uma vida que pulsa, múltipla, diversa, por e além deles/as, que fogem e que podem resistir ao delírio autoritário do imperialismo norte-americano e da extrema direita.
Ainda é cedo para projetarmos em que medida a ofensiva norte-americana influenciará no exercício da cidadania de pessoas trans, travestis e LGBTI+ em geral no Brasil e no mundo. O que fica visível para nós, ativistas, pesquisadores e aliados, é que a luta por dias melhores precisa - mais do que nunca - continuar e que não existem alternativas ou contraofensivas verdadeiramente democráticas fora da defesa inegociável dos direitos de LGBTI+. Sigamos em marcha pelo direito à vida.