Os 'fantasmas do gênero' assombram o Tio Sam

A eleição de Trump e o seu alinhamento com as gigantes da tecnologia estão escrevendo mais um capítulo do perigoso avanço da extrema direita no mundo

Escrito por
Dediane Souza ceara@svm.com.br
Legenda: Na prática, temas como imigração e gênero passaram a ter menos restrições nas plataformas virtuais da Meta, sendo possível que as pessoas criem e moderem elas mesmas os conteúdos de terceiros a partir de seus critérios ou crenças pessoais, eliminando, assim, as já insuficientes barreiras de propagação de discursos de ódio contra minorias sociais
Foto: Pexels

Alerta de nuvens carregadas vindos dos “esteites”! Entre as notícias recentes das bandas de lá, alguns fatos merecem a nossa atenção. Logo após a empresa Meta anunciar mudanças na política de segurança das redes sociais Facebook e Instagram, o discurso de Donald Trump durante sua posse como presidente dos Estados Unidos da América deixou claro: o aparelhamento político e tecnológico da extrema direita e da sua obsessiva perseguição às populações LGBTI+ ganharam novos contornos.

Iniciemos pelo caso da Meta. Mark Zuckerberg, CEO da gigante da internet, divulgou que a empresa mudará a forma de moderação dos conteúdos, substituindo – inicialmente nos EUA - os checadores de fatos (criados para coibir a disseminação de notícias falsas e outros crimes cibernéticos) por um sistema de notas alimentado pela própria comunidade de usuários, tal como já acontece na rede social X.

Na prática, temas como imigração e gênero passaram a ter menos restrições nas plataformas virtuais da Meta, sendo possível que as pessoas criem e moderem elas mesmas os conteúdos de terceiros a partir de seus critérios ou crenças pessoais, eliminando, assim, as já insuficientes barreiras de propagação de discursos de ódio contra minorias sociais.

Entre as mudanças realizadas, a nova política de uso passou a permitir, por exemplo, a utilização de linguagem insultuosa nos debates sobre direitos de LGBTI+ e a associação de doenças mentais a uma orientação sexual e ou identidade de gênero, sob a falsa alegação de combate à censura.

Por sua vez, o recém-empossado presidente dos EUA usou o primeiro discurso do seu mandato para assinalar mais uma vez a sua rejeição à existência de qualquer expressão de gênero que não seja baseada na concepção biológica binária de masculino e feminino. Em dezembro de 2024, ele já havia anunciado que utilizaria sua passagem pela Casa Branca para combater o que classificou como “loucura transgênero”.

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Como o visto, as pautas anti-LGBTI+ estão no centro das preocupações da maior potência político-econômica do mundo. Mas por que Trump e as “big techs” têm tanto medo das questões de gênero e diversidade? Que interesses guardam a retomada dos discursos de patologização das identidades trans e LGBTI+?

A filósofa Judith Butler já observou que os “fantasmas do gênero”, vira e mexe, adentram o debate público na forma de ameaça à cisheteronorma. A obsessão de grupos hegemônicos para conter a luta por direitos e justiça social é o resultado do seu interesse em manter privilégios e formas de dominação. Não raro, eles se utilizam do esforço narrativo de combate à censura para promover justamente o seu contrário, afinal, como pode ser legítima uma liberdade de expressão que perpetua a contínua perseguição aos direitos de pessoas trans e travestis?

Há tempos que as pautas em torno da cidadania trans foram assaltadas pela extrema direita, que alimentam o fetiche sobre os nossos corpos e ameaçam as nossas existências em nome da barganha política e na manutenção do poder do capital, mirando a manutenção do seu lugar na hierarquia social. Com um discurso fácil e vazio de sentido, os viúvos da ditadura investem em narrativas de pânico moral e apontam suas miras para nós, uma “ameaça” que, pasmem, ainda disputa o direito básico à vida e à humanidade, que ainda sonha com espaços menos violentos e capazes de nos reconhecer como gente!

Está evidente que a eleição de Trump e o seu alinhamento com as gigantes da tecnologia estão escrevendo mais um capítulo do perigoso avanço da extrema direita no mundo. Lamentavelmente, a história já nos mostrou o que pode acontecer quando setores ultraconservadores de inspiração totalitária e nacionalista ascendem ao poder.

Apesar de assombroso, o cenário também é de esperança. Os atos de Trump e da Meta ignoram algo característico da subjetividade humana, especialmente quando falamos de gênero e sexualidade: essas dimensões não se comandam apenas por decreto ou algoritmos artificiais. As plataformas digitais e os governos constituídos só existem porque há uma vida que pulsa, múltipla, diversa, por e além deles/as, que fogem e que podem resistir ao delírio autoritário do imperialismo norte-americano e da extrema direita.

Ainda é cedo para projetarmos em que medida a ofensiva norte-americana influenciará no exercício da cidadania de pessoas trans, travestis e LGBTI+ em geral no Brasil e no mundo.  O que fica visível para nós, ativistas, pesquisadores e aliados, é que a luta por dias melhores precisa - mais do que nunca - continuar e que não existem alternativas ou contraofensivas verdadeiramente democráticas fora da defesa inegociável dos direitos de LGBTI+. Sigamos em marcha pelo direito à vida.