Realismo fantástico, utopias e o futuro de Fortaleza
As cidades também são fruto das utopias — realizadas ou não —, o que as torna matéria-prima ideal para aqueles que leem o mundo por meio do híbrido entre o real e o fantástico
No universo da literatura, o realismo fantástico nos presenteou com histórias intensas e incrivelmente sedutoras. Por vezes labirínticos e até confusos, os enredos dessa vertente criativa desafiam a imaginação dos leitores, convidando-os a aguçar suas capacidades interpretativas. Para embarcar nesses mundos, é prudente deixar de lado a razão instrumental e aventurar-se por caminhos mais sensíveis do ser. Esse modelo criativo nos oferece uma forma de repensar os fatos, o tempo e o espaço, distanciando-nos da frieza calculista que ingenuamente consideramos capaz de explicar a complexa realidade em que estamos imersos.
Com essa perspectiva em mente, comecei a refletir: seria possível aplicar os mecanismos explicativos do realismo fantástico aos meios convencionais de pensar as cidades? Falo das cidades porque elas são, por um lado, uma das produções sociais mais complexas e, por outro, tema central das reflexões que compartilho neste espaço. As cidades também são fruto das utopias — realizadas ou não —, o que as torna matéria-prima ideal para aqueles que leem o mundo por meio do híbrido entre o real e o fantástico.
Em 2025, a cidade de Fortaleza, após uma chuva de gotas agridoces, viu suas avenidas se transformarem de maneira abrupta. Árvores ancestrais, como que renascidas das profundezas do tempo, romperam as camadas de concreto e asfalto para retomar seu lugar. A sombra e o perfume das flores criaram uma sensação tão agradável no espaço urbano que as pessoas se tornaram menos cansadas, mais felizes e até mais tolerantes. De forma curiosa, as brigas de trânsito diminuíram, enquanto a cortesia atingiu níveis tão elevados que radares e multas tornaram-se desnecessários.
As calçadas, agora graciosamente protegidas pela exuberante vegetação, passaram a ser mais do que simples passagens: transformaram-se em corredores de sociabilidade e vida. Pessoas de todas as idades abandonaram os carros e redescobriram as ruas, sem receios. Curiosamente, no mesmo dia da chuva, surgiram no subsolo veículos rápidos e acessíveis, semelhantes aos futurísticos transportes das telas de cinema. Ir e vir de um canto a outro da cidade tornou-se tão simples quanto pedalar até os inúmeros parques criados nos bairros da capital.
A água agridoce, ao misturar-se de forma inexplicável à potável, desencadeou outro curioso efeito social. Meses após a chuva, avareza e ganância desapareceram entre proprietários de terras e construtores. Em vez de prédios inúteis, caros e vazios, surgiram novas formas de coabitação e construção. Assim, termos como "sem-teto" ou "favela" foram aos poucos eliminados dos dicionários, pois perderam sua aplicação.
Aquele aguaceiro misterioso também impulsionou mudanças profundas na gestão da cidade. Criou-se um sistema dinâmico, participativo e eficaz para administrar conflitos e decisões. Representantes ainda eram escolhidos pelo voto, mas, com um rodízio tão intenso, era difícil lembrar seus nomes. Em apenas quatro anos, centenas de pessoas contribuíam e se revezavam na condução das políticas públicas. Tudo acontecia de maneira transparente, graças a um excelente sistema de comunicação que, coincidentemente, surgiu no mesmo mês da chuva.
As noções de trabalho também foram radicalmente transformadas. Valorizavam-se igualmente os labores manuais e intelectuais, e ninguém era restrito por sua profissão. Médicos limpavam suas casas, enquanto pedreiros, quando desejavam, desenvolviam teorias bioquímicas para explicar os mistérios entre a terra e o infinito. Os ganhos tornaram-se justos, e fome, miséria e desemprego desapareceram do vocabulário coletivo.
Anos se passaram desde aquela chuva — a contagem do tempo tornou-se difusa —, e sua origem, composição e duração dos efeitos permanecem um mistério. Ainda assim, Fortaleza nunca mais foi a mesma. Os desafios permanecem, pois cada geração e cada era enfrenta os seus. Contudo, há uma certeza: a maioria dos fortalezenses não deseja retornar ao período anterior ao dia da chuva agridoce.