Rua que vira riacho: comunidade usa canoa para atravessar água após chuvas em Sobral; veja vídeo

Pessoas e motocicletas são transportadas sobre veículo de madeira comprado por articulador

Escrito por
Nícolas Paulino nicolas.paulino@svm.com.br
Mulher dentro de canoa em Sobral
Legenda: População é obrigada a utilizar o serviço improvisado diariamente
Foto: Davi Rocha

Período chuvoso no Ceará costuma representar alívio do calor e recarga de açudes, mas, em algumas localidades, pode trazer transtornos. É o que acontece na comunidade das Marrecas, em Sobral, na região Norte do Estado. O aumento do volume do riacho Madeira cobre de água a principal via de acesso dos moradores. Como resultado, a rua vira correnteza e eles precisam atravessar de canoa. A Prefeitura de Sobral, porém, não recomenda a travessia.

O local afetado fica próximo à Avenida Perimetral, a cerca de 6 km do Centro da cidade. Na última semana, o Diário do Nordeste foi até a passagem molhada para acompanhar de perto a situação ao fim da tarde, quando a movimentação aumenta por ser horário de retorno de trabalhadores para casa.

De prontidão em terra, o agricultor, pescador e “faz-tudo” Antonio Torres, 67, aguardava os clientes. Ele e o ajudante José se revezam na condução da canoa, cuja travessia de uma ponta à outra da passagem dura cerca de três minutos. Embora pareça curto, o trajeto exige vigor físico.

Segundo o barqueiro, a procura começa cedo, às 6h30. Ainda que bicicletas e motos sejam os principais meios de transporte da área, os ciclistas conseguem colocar os modais sobre o ombro e atravessar a pé mesmo, já que a água atinge a cintura (a fundura fica por volta de 1 metro, mas em dias atípicos pode chegar ao peito). Já os motociclistas precisam entrar na canoa, embora só seja possível carregar um veículo por vez.

Dois homens dentro de canoa no interior de Sobral
Legenda: Antonio (sentado) e José se revezam na condução da embarcação
Foto: Davi Rocha

Levando só pessoas, contabiliza Antonio, o máximo é de oito passageiros. Cada um paga o serviço “com o que pode”, às vezes deixa até fiado. Não há preço tabelado porque “todo mundo aqui é trabalhador, é pai de família, precisa levar sustento pra casa”, reconhece.

Por volta de 17h, se forma uma fila de motos esperando a vez de passar. Com o processo de embarque e desembarque, isso pode demorar até meia hora. Conforme o barqueiro, o serviço com os últimos clientes continua até 20h. Mesmo sem iluminação de postes, é possível conduzir a canoa pelo reflexo das luzes da cidade.

“Se a gente não soubesse dirigir, não tinha quem passasse não. E a gente ainda reveza, porque só para um aqui não aguenta não, é cansativo demais. Tenho 67 anos e nunca foi feito nada, só promessas e promessas”, lamenta Torres.

Homem entra na água com bicicleta nas costas
Legenda: Usuários de bicicleta conseguem atravessar riacho com modal sobre os ombros
Foto: Davi Rocha

Quanto custou a canoa?

Aristides Vasconcelos, aposentado, articulador comunitário e ex-presidente da Associação dos Produtores das Marrecas, foi o idealizador da canoa. Como tem mãe, irmãos e amigos morando na região impactada, ele decidiu por conta própria investir no equipamento.

A encomenda foi feita no início da quadra chuvosa de 2024 a um construtor de barcos do distrito de Jaibaras, onde há um grande açude. Pela falta de madeira com diâmetro específico, a canoa saiu mais estreita do que o esperado, mas fazer o quê? 

Barqueiros levam homens dentro de canoa
Legenda: Profundidade do trecho chega a mais de um metro em dias de chuva intensa
Foto: Davi Rocha

Aristides pagou R$1.800 no veículo, mais R$400 para revesti-la de piche - material usado para impermeabilizar a madeira e evitar que apodreça pela umidade. “Comprei pensando na comunidade. Se serve pra comunidade, serve pra mim. Agora, só quero que zelem”, afirma.

Segundo o aposentado, já houve conversas com gestões anteriores para construir uma ponte com galerias na localidade, mas os planos não ganharam forma.

Opinião de quem atravessa

João Paulo Melo, morador de Marrecas, alerta que o problema não é novo e representa um risco para quem precisa ir até o Centro. "Todos os anos a população sofre com a mesma situação porque várias famílias ficam ilhadas, sem poder passar para trabalhar", reclama.

Mesmo morando do lado da cidade há cinco anos, a dona de casa Vera Santos, 66, usa a canoa para se deslocar até Marrecas levando provisões para a nora. “E é porque isso aqui é só o começo. Toda vida foi assim”, recorda observando a passagem d’água. Antigamente, “quando tinha saúde”, ela mesma atravessava a nado, se agarrando aos galhos das oiticicas nas margens.

Homem leva duas mulheres dentro de barco
Legenda: Movimentação é mais frequente no início da manhã e fim da tarde
Foto: Davi Rocha

Outro usuário do serviço é o produtor de leite Edson Vasconcelos, que possui uma fazenda na comunidade. No dia em que a reportagem esteve no local, ele levava um carregamento de grama para os animais de criação. “Vou e volto todo dia, e é sempre a mesma luta”, desabafa. 

“Aqui merecia uma passagem bem alta. Tem colégio, posto de saúde, é um distrito bem conhecido. Merecia mais”, reforça.

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O que diz a Prefeitura de Sobral

Em nota conjunta enviada à reportagem, a Secretaria da Infraestrutura (Seinfra) e a Defesa Civil de Sobral informaram que a situação de Marrecas “não havia sido formalmente reportada à atual gestão da Seinfra, até o momento”. 

“Ressaltamos que a Defesa Civil não dispõe de embarcações para transporte e, por segurança, não recomenda a travessia sem a supervisão de profissionais habilitados”, declararam.

As Pastas asseguram que uma equipe técnica será enviada ao local para avaliar as condições e buscar alternativas viáveis para o problema.

O Diário do Nordeste também questionou se existe algum projeto a longo prazo para solucionar o impasse, mas esse ponto não foi respondido.

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