De técnicos a auxiliares, trabalhadores da saúde 'invisibilizados' relatam desgaste e desvalorização

De falta de reconhecimento a atrasos salariais, profissionais da linha de frente no Ceará amargam exaustão física e mental após 2 anos de pandemia

Escrito por Redação ,
Pandemia
Legenda: Pesquisa aponta que trabalhadores brasileiros sofreram com invisibilidade e falta de direitos, ao longo da pandemia
Foto: Divulgação

A importância dos trabalhadores essenciais foi escancarada, desde 2020, quando a maior crise sanitária da História recente atingiu o Ceará. Sentir o próprio valor, contudo, não foi experiência compartilhada por todos. 

Milhares de profissionais do Nordeste e do País amargaram a ausência de valorização e de direitos, como mostrou a pesquisa “Os trabalhadores invisíveis da Saúde: condições de trabalho e saúde mental no contexto da Covid-19 no Brasil”.

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Dos quase 21,5 mil entrevistados no estudo, feito pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a maioria é nordestina (32%) e atua em hospitais públicos e postos de saúde (56,6%). Mais da metade (53%) negaram se sentir protegidos no ambiente de trabalho.

41%
dos trabalhadores de saúde participantes da pesquisa confirmaram ter contraído Covid-19.

Além disso, 7 a cada 10 reclamaram de não possuir apoio institucional no dia a dia de trabalho, bem como de precarização, de terceirização e da falta de equipamentos de proteção individual (EPIs). Quase 51% admitiram excesso de trabalho.

Categorias entrevistadas no estudo:

  • Técnico/Auxiliar de Enfermagem;
  • Técnico/Auxiliar de Saúde Bucal/Prótese dentária;
  • Técnico/Auxiliar de Farmácia, de Hemoterapia ou Hematologia, de Análises Clínicas, de Laboratório, Citopatologia e Imunobiológica;
  • Técnico/Auxiliar de Radiologia;
  • Técnico em Imobilizações Ortopédicas/Gesseiro;
  • Técnico em Segurança do Trabalho;
  • Agente de Saúde;
  • Maqueiro;
  • Condutor de ambulância;
  • Sepultadores/Pessoal de agências funerárias e cemitérios;
  • Pessoal de cozinha hospitalar;
  • Pessoal de atividades administrativas e afins;
  • Pessoal de atividades operacionais;
  • Pessoal de limpeza e conservação;
  • Pessoal de manutenção geral.

Para João* (nome fictício para preservar identidade), 41, que atua como maqueiro terceirizado num hospital de Fortaleza há mais de 10 anos, a desvalorização do trabalho se traduziu de várias formas: veio tanto pela sociedade quanto pelos empregadores.

No auge mesmo da pandemia, em 2020, a gente recebia uma máscara pra passar o mês todo. Eu peguei, é claro, mas me recuperei graças a Deus.

Outro cenário desgastante, principalmente diante do aumento dos preços de insumos básicos, foi a irregularidade no pagamento mensal. “Várias vezes, até o fim do ano passado, o salário da gente atrasava direto. Mas tinha que continuar vindo, porque precisa do emprego, né?”, relata.

"Trabalho de domingo a domingo"

Se entrar no 3º ano de pandemia já é motivo de exaustão para diversas categorias profissionais, para quem atua na área da saúde é múltiplas vezes pior.

Farmacêutico e maqueiro, o cearense José Lino Ferreira, 33, divide a rotina, hoje, entre dois empregos. Trabalha todos os dias da semana.

José Lino, farmacêutico e maqueiro, posa em frente a prateleiras de medicamentos
Legenda: José Lino se divide entre dois empregos em hospitais de Fortaleza
Foto: Arquivo pessoal

“É desgastante, é uma rotina muito pesada, principalmente como maqueiro. Além de trabalhar com pessoas, que têm astrais diferentes, é pegar muito peso, ter cuidado demais com higiene. Fora do plantão, tem que pegar ônibus superlotado. É estressante”, desabafa.

Lino trabalha todos os dias das 7h às 19h, se dividindo entre as funções em dois hospitais diferentes, em Fortaleza – e vivenciando, assim, cobranças e cargas de trabalho em dobro.

Sou muito reconhecido pelo meu trabalho, tanto pelas chefias como pelos colegas e pacientes, e isso é muito bom. Mas no dia a dia o estresse é constante.
José Lino
Farmacêutico e maqueiro

A estratégia para cuidar minimamente da saúde mental, então, é aproveitar o turno da noite para “sair com os amigos, namorar e voltar antes de meia noite, pra acordar às 5h da manhã no outro dia e começar tudo de novo”, como ele descreve.

“A situação beira o insustentável”

A enfermeira Sandra Valesca Fava, 50, confessa que “nada do que viveu até começar a pandemia preparou pro que viria”, mesmo após 28 anos de exercício da profissão. As sucessivas ondas acumulam, então, “o desgaste físico e mental absurdo” que carrega hoje.

“Foram várias dores, ao longo desses últimos anos, mas a onda da Ômicron veio diferente: houve um número enorme de profissionais afastados por Covid. Tínhamos equipes reduzidas pela metade, agravando ainda mais a sobrecarga”, frisa.

Sandra alerta, por outro lado, que a pandemia em si não gerou todos os problemas enfrentados por categorias como a enfermagem: apenas “lançou luz” sobre um cenário que, segundo ela, “tá muito, muito pesado, beirando o insustentável”.

Já existia sobrecarga de trabalho, dimensionamento inadequado de equipes, falta de local digno pra repouso, carga horária exacerbada. Esses problemas só vieram à tona de forma mais gritante.
Sandra Valesca
Enfermeira

A esperança, como projeta, é de que os holofotes direcionados pela pandemia aos profissionais de saúde impulsionem melhorias para uma “categoria que se sente desvalorizada e desrespeitada, mesmo sendo a que não sai do lado do paciente”.

“A sociedade nos deu aplausos, e agradecemos, mas precisamos que o reconhecimento passe para soluções efetivas: temos família pra sustentar, precisamos de condições seguras e dignas de exercer o trabalho. Não somos heróis, somos profissionais”, finaliza.

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Para Maria Helena Machado, socióloga e coordenadora do estudo da Fiocruz, esses trabalhadores – que muitas vezes, sem um jaleco, nem são vistos como “da saúde” – são “completamente invisibilizados pela gestão, por suas chefias, pela equipe e até pela população usuária”.

“As consequências da pandemia para esse grupo de trabalhadores são muito mais desastrosas. A pesquisa evidencia uma invisibilidade assustadora e cruel nas instituições”, destaca a pesquisadora.

Na contramão

O barulho agudo das sirenes de ambulâncias talvez nunca tenha sido tão ouvido pelas ruas como em 2020 e 2021. Em grande parte dos 212 mil chamados pelo Samu Ceará que resultaram em transporte de pacientes no período, quem estava à frente do volante era Francisco das Chagas Lima Júnior, condutor socorrista há 7 dos 42 anos de vida.

O profissional, conhecido apenas como Lima Júnior, está entre os que atuam na linha de frente do atendimento a pacientes graves de Covid desde a chegada da doença ao Estado – quando as equipes foram atingidas por uma forte onda de incertezas.

Foto de Lima Júnior, condutor socorrista do Samu Ceará
Legenda: Lima Júnior é condutor socorrista do Samu Ceará há cerca de 7 anos
Foto: Arquivo pessoal

“No início, foi muito complicado, um vírus pouco conhecido, com um surto muito grande de casos, as unidades sempre lotadas. Às vezes, a gente tinha que mudar de uma cidade ou até de uma região pra outra. Mas a equipe se desdobrava pra atender”, relembra.

Em meio à correria, a atenção com o uso de equipamentos de proteção era indispensável. “O mesmo cuidado que tinha na base já trazia pra casa também. Pensava logo na minha família. Apesar disso, eu, minha mãe e minha esposa pegamos, graças a Deus todo mundo passou bem, não tive nenhuma perda”, diz.

Apesar disso, as inúmeras perdas alheias que presenciou “são casos que não saem da cabeça”. 

Em várias situações, a equipe tentava estabilizar o paciente usando o procedimento padrão, mas não funcionava. Com esse vírus, as coisas não faziam sentido, isso impactava muito.
Lima Júnior
Condutor de ambulância

A invisibilidade aos holofotes que miraram os profissionais de saúde ao longo da crise sanitária, porém, não incomodava, segundo Lima – entre os colegas, o reconhecimento era certo.

“O condutor leva a equipe ao local e auxilia no atendimento, fica exposto. A desvalorização acontece, a gente não é visto, mas aqui isso não influencia – porque temos importância. Dentro da minha equipe, me senti sempre valorizado”, frisa.

O que os gestores têm feito

Diante dos relatos, as reportagem questionou as Secretarias Estadual (Sesa) e Municipal de Saúde de Fortaleza (SMS) sobre quais políticas ou medidas têm sido adotadas para apoiar os trabalhadores da área, tanto em termos laborais como de saúde mental.

A SMS afirmou, em nota, que "durante os picos da 1ª e 1ª onda da pandemia, ofertou atendimento psicológico online para os profissionais de saúde, expandido depois para os da educação, pelo Projeto Sintonia. Foram realizados cerca de 900 atendimentos neste período".

Já Sesa reforçou a existência do canal de atendimento do Centro Estadual de Referência em Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (Cerest), que funciona das 8h às 17h, de segunda a sexta-feira, atendendo profissionais da rede estadual.

Disponível pelo telefone (85) 3101-5343, a assistência possui equipe formada por enfermeiro, psiquiatra, terapeuta ocupacional, assistente social e fonoaudiólogo. "Por atuarem de forma direta no combate à pandemia, estes trabalhadores têm de lidar com estresse, ansiedade e outros transtornos mentais", reconhece a Pasta.

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