Trabalhadores essenciais ‘invisíveis’ equilibram medo e compromisso em meio à pandemia no Ceará
Vigilante, maqueiro e funcionária de serviços gerais descrevem convívio com pacientes e aprendizados no enfrentamento à Covid
Em 18 anos de ofício e 40 de vida, Edmilson Teixeira Filho nunca ouviu tanto sobre saudade. Como maqueiro do Hospital São José (HSJ), ele é “as pernas” de quem a Covid debilitou – e carrega nos braços, todos os dias, as incontáveis histórias e ausências contadas pelos pacientes.
Como ele, diversos outros profissionais dividem o tempo, hoje, com o trabalho e a função de serem companhias e ouvidos para os que entram e saem dos leitos. Longe do rótulo de heróis, os essenciais se equilibram entre o medo e o compromisso com o ofício.
“No começo, era desespero, porque ninguém sabia como agir com uma doença nova. Tinha medo até de chegar no paciente, todos chegando muito graves, muito rápido”, confessa Edmilson, cuja rotina girou 180 graus após a chegada do coronavírus.
Como todo essencial, nunca pode se isolar, e precisou amargar “por muitos dias” uma dormida solitária, num quarto longe da esposa e dos filhos, na tentativa de protegê-los. Até hoje, mesmo vacinado, o percurso é um só: casa-trabalho, trabalho-casa.
Não poder fazer isolamento foi difícil. Queria me proteger, mas ao mesmo tempo queria estar aqui, porque gosto do serviço e sabia que ajudaria quem tava precisando.
Além do papel prático de maqueiro – transportar pacientes que não estão habilitados a caminhar –, Edmilson desenvolveu, informalmente, o de amigo. “Eles falam muito de saudade da família, que querem voltar pra casa. E eu dou apoio, converso, peço calma. Sirvo de companhia”, narra.
“Estou bem na porta, na linha de frente”
Do lado oposto, Antônio Vilemar Campos, 52, escuta as preocupações de quem ficou fora do hospital. Hoje, em 1º de maio de 2021, completa um ano desde que foi contratado como vigilante do HSJ e precisou aprender a conviver com o receio de se contaminar.
O medo da Covid, aliás, é só um entre o turbilhão de sentimentos com que precisa lidar dia a dia. “Vejo gente chegando mal e saindo bem, gente vindo com parente e saindo sozinho. Famílias chorando pelas perdas. É muito difícil”, relata.
A maior lição que fica depois de um ano de atuação na linha de frente de combate à virose pandêmica, então, “é sobre humanidade”. “O que vejo nas pessoas não quero pra mim. Sinto a dor do outro, fico sentido, aprendo a conversar, a dialogar. Não perdi ninguém, mas me sinto mais ser humano”, reconhece Vilemar.
Quando as pessoas chegam, já passam por mim. Tô na linha de frente. Por isso acho que o respeito com quem vem muito mal ou perde algum parente é essencial.
Hoje, o vigilante está vacinado contra a Covid, mas o temor de infectar a mãe idosa, as filhas e os netos segue mobilizando uma rotina de higiene rigorosa. “No começo, eu não queria a vacina, fiquei receoso. Mas os colegas tomaram, ficaram bem, e fui. Estou 100%. Não cheguei nem a gripar, nesse ano todo”, pontua.
“Não tem dinheiro que pague”
A jovem Juliana Bento, 28, não teve a mesma sorte: como numa guerra, encara o coronavírus de forma direta todos os dias, entrando e saindo de leitos infectados com a missão de torná-los livres do inimigo invisível. Em abril e outubro de 2020, ele a derrotou. Os sintomas, contudo, foram leves.
Desde março do ano passado, Juliana integra a equipe de higienização e serviços gerais do hospital. Entra às 7h e começa a limpeza pelas áreas menos contaminadas, as administrativas, até chegar às enfermarias. Às 19h, quando “larga”, parte para o turno de limpeza da própria casa.
“Na minha casa, a limpeza de tudo é com álcool, dos móveis ao chão. Cuidado nunca é demais. Reduzi inclusive a ida na casa dos meus pais, pra evitar levar o vírus pra eles”, descreve.
Antes de entrar no hospital, a jovem estava desempregada há um ano. O preço da reinserção no mercado, contudo, tem sido alto. “Achei melhor meus filhos de 7 e 12 anos ficarem na casa da minha mãe, pra prevenir. Enfrento uma saudade grande, a gente dormia junto”, emociona-se.
Os anticorpos que desenvolveu por contrair a doença duas vezes e a própria vacina não diminuíram o medo da doença – sentimento que, segundo Juliana, “faz a gente se preservar”. A gravidade crescente dos casos que presencia também contribui.
Na entrada, na estadia e na saída do paciente do leito eu tô lá. Antes eu conversava com eles. Hoje, quase todos são graves, ficam sedados.
Apesar de ser funcionária terceirizada e não receber os mesmos auxílios financeiros dos demais, Juliana relata que a valorização de todos os profissionais da linha de frente pelos pacientes é garantida.
“Somos muito corajosos em sair de casa todo dia, enfrentar esse vírus horrível, correndo risco de levar pras pessoas que amamos. Não tem palavras nem dinheiro que paguem isso”, frisa.