Os que não sabem amar
Os que não sabem amar desqualificam tudo aquilo que, no fundo, invejam

O início da vida é um caos. Sons, cheiros, sentidos, profusão de estímulos internos e externos que não conseguimos integrar. Um mundo novo repleto de desafios onde a sensação é de desintegração, confusão e desconhecimento. Sente-se incômodo mas não sei nomear fome, não tenho a compreensão da memória da experiência da dor, não tenho autonomia, independência diante do mundo caótico de luz, barulho, texturas, gostos, cheiros. Não sei o nome das coisas, não sei meu lugar no mundo, estou totalmente à mercê dos outros desde que fui retirado do ventre de minha mãe.
Não sei onde nasci, se em maternidade, casa, no meio da rua, se em meio a tiroteio, violências, se me desejaram, se possuem recursos financeiros, qual religião. Nascemos feito estrangeiros em um país desconhecido com inúmeros desafios para poder habitar um corpo, um lar, um país, tornar-se um sujeito e ter um lugar psíquico para chamar de seu.
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A experiência de ser cuidado, ser visto, nomeado e protegido por um outro, começa a estabelecer um espaço confortável para incorporar o mundo. Nos braços do outro as fronteiras começam a ser construídas, é a pele do outro , a voz do outro , a minha pele, a minha voz, o olhar do outro feito espelho para formar a base do meu próprio olhar. O cuidado constrói o vínculo, permite a descoberta do outro, funda o amor. O amor envolve a capacidade de perceber o outro, ser percebido, receber carinho, cuidado, ser envolvido em afeto e proteção, receber palavras, abraçar o mundo com a segurança de quem pode usufruir, brincar, se diferenciar, ir e voltar sem se perder.
O amor nos protege da morte no vazio e na solidão, instaura a confiança de que é possível conter um pouco do caos que nos habita e direcionar a agressividade em outras possibilidades que não fúria mortal. Entretanto, muitos atravessamentos podem intervir nesse caminho de dois, que posteriormente irá transpor para a capacidade de acolher e amar amplo, solidário e fraterno.
Quando o cuidado é atravessado por negligência, abandono, violência, rejeição, humilhação, desprezo, no lugar do amor que permite o encontro e a liga com as coisas boas de si e do mundo, fica o inerte, a desconfiança, aquilo que afasta, fica o medo, a raiva, a indiferença o rancor.
Privados da experiência de se encontrar e de constituir coisas boas dentro e fora, o sujeito deriva, desconfia, ataca, afoga no caos da sua própria armadura, não entende o encantamento do mundo, não vivencia delicadezas, tudo é embrutecido e distante, feito um morador solitário de um precipício dentro de si; ninguém pode se aproximar, não há em quem confiar, risos e arte são incompreensíveis, beijos, lágrimas e saudades, vestígios de uma fraqueza estranha e ameaçadora. Não há diálogo, pensamento crítico, ético, complexo; há um sobrevoo de alguém em constante alerta para não aterrissar, porque qualquer aproximação é perigosa, qualquer afeto é ao mesmo tempo ameaçador, desejado e rejeitado.
Os que não sabem amar ficam privados da poesia, não compreendem a diversão regozijante da bobeira em ter com quem brincar junto, a profundidade da justiça, do sonho e da esperança. Não sentem a presença das luas cheias, das estrelas, não brincam com a forma das nuvens, com o mistério das borboletas, não sentem a força e o deslumbramento da natureza e da diversidade. Ficam presos no reflexo da própria imagem, alimentando sonhos de domínio e controle porque não entendem das trocas que vêm do olhar amoroso.
Fragmentados, não experimentam a quietude contemplativa das ambivalências que ver a si em imensidão permite. O olhar fica limitado a uma urgência, uma pressa, uma agonia, uma angústia que desprovida da guarda do ser ou ter sido sido amado, deixa a pele em carne crua e sem vida. Não entendem a ideia do bem comum nem do alegrar-se com os outros; não compreendem a gratidão nem a grandeza do partilhar. Desqualificam rituais de união e amizade e são beligerantes com a felicidade alheia.
Os que não sabem amar almejam o material, o poder e a destruição porque só sentem a excitação do poder e da destruição furiosa; não experimentaram o prazer de ser desejado por ser quem se é, de ser esperado, dos sorrisos alegres nos encontros, das ansiedades das horas para um abraço, da alegria para contar do dia, da parceria para descobrir o mundo, dos presentes imateriais valiosíssimos, sem valor no mercado das coisas mortas em prateleiras; não sentiram as palavras aquecendo o coração, os olhos brilhando em ver o estranho familiar, o júbilo das descobertas em parceria e do perdão. Nunca sentaram à mesa imaginária das ideias cúmplices das intimidades. Os que não sabem amar desqualificam tudo aquilo que, no fundo, invejam.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora.