Para existirmos, precisamos do outro. Que nos alimente, nos banhe em carinho, cuidado, palavras, nos proteja diante do desamparo e da nossa insuficiência. Esse outro torna-se muito poderoso e onipotente e desejamos corresponder a todos os seus desejos para garantirmos o amor e a sobrevivência. O outro assim, nos habita, encontrando acolhida interna na força do nosso desejo de sermos amados.
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E como disse Orham Pamuk, escritor turco e prêmio Nobel de literatura, em seu livro Istambul: o poder que alguém possui sobre nós, reside no nosso desejo de sermos amados por essa pessoa. Os outros que nos habitam exigem, definem, criticam, impõem, regozijam-se, exaltam, atacam, empoderam, ameaçam, apoiam quem nos tornamos em uma amálgama complexa e ambivalente, que pode alimentar a saúde ou a doença.
No processo de autonomia, precisamos desalienar dos tantos que em nós nos despertecem, para descobrirmos o valor da nossa palavra e do nosso afeto. Será que preciso saber disso, usar isso, trabalhar nisso, pensar assim, acreditar nisso, vestir-me assim, ler essas coisas ? Será que preciso concordar com isso? Amar dessa forma? Suportar o que me oferecem? Comprar isso? Desejar isso?
Lidar com meu corpo dessa forma? Viver assim? Gastar o que não tenho? Dar o que não desejo? Posso pensar com minhas próprias ideias e ousar decepcionar, desagradar e me diferenciar dos outros? Tenho que ser o que o outro deseja? O não me é permitido? Aprendo que amor é sacrifício, silêncio e submissão?
Muitas famílias realizam simbioses com seus membros, exigindo que todos tenham que ser iguais, dificultando que a pele psíquica possa ter fronteiras e se diferenciar. Inúmeras são as invasões e intrusões que invadem a alma, o desejo e as palavras, ocasionando uma existência de medo, culpa, raiva, solidão e dificuldade em lidar com as diferenças, com as emoções, com a construção de um mundo interno próprio e aceitar em nós o que destoa do contorno familiar.
Tendemos a acreditar em quem amamos e a transferir a confiança das figuras de afeto e consideração para aqueles chancelados por eles. Paulo Freire já lembra que quando a Educação não é libertadora, o oprimido se identifica com o opressor, nessa identificação, desejamos ter aquilo que os espelhinhos do capital nos oferecem em ilusões. O silêncio e as palavras cedidas aos outros parecem confortáveis; entretanto, o preço de não lutar pela própria voz pode ser muito caro.
Respeitamos os nossos limites? Sabemos o que não conseguimos dar conta? O que nos violenta? O que nos faz mal? Conseguimos dizer não ao consumo de nós mesmos pelos outros? Consigo exigir que me respeitem? Luto pelo que tenho direito? Fico a mercê que o outro me diga sempre o que fazer, que me defina os passos?
Essa relação de dependência pode se transferir das relações familiares para as relações de trabalho, para as amizades, para namoros e casamentos, para a vida social. O não é palavra que diferencia o desejo de um sujeito do desejo do outro. Ao mesmo tempo, essa diferença assusta porque pode colocar em evidência o desagrado, a frustração, a divergência, o medo do desamor e do desconhecido.
Em nós sempre existirão as vozes dos pais, familiares, amigos, professores, amores, ídolos, escritores dos livros que li, poesias, dos filmes que assisti, daquilo que me encantou e seduziu. Mas como distingo isso do que é original na minha existência, como isso me construiu e onde me diferencio e reescrevo? Na relação identificação e diferenciação se situa um sujeito.
A alienação alimenta o poder sobre os corpos, os desejos, e enaltece o patriarcado. O sujeito que lida com os próprios limites, ao dizer o não, abre espaço para a aceitação da existência do não do outro e o suporte do desprazer e da realidade.
Famílias que fazem chantagens, comparações, exigindo que todos se fundam em um só, podem criticar e fragilizar a construção desse percurso. A existência dos limites permite ao sujeito a lida com a vida social, a aceitação das diferenças, das perdas e do conflito.
O não só é possível nas democracias, nas relações saudáveis, onde se permite ver, enxergar e respeitar o outro, que afinal não é refém do meu desejo e pode ter desejos que não me satisfazem e nem me agradam, e que precisarão ser negociados na justeza da lei e da civilização.
O sujeito que consegue dizer 'eu sou' é ao mesmo tempo o que não é outrem, é aquele que reconhece o outro, entretanto habita a si mesmo e não se perde indiferenciado na massa. O que tampouco significa arrogância ou prepotência, mas a capacidade de conquistar uma autonomia que respeita e assume a responsabilidade pelo seu agir, sem a submissão a um mestre idealizado.
Em um mundo com tantos simulacros, tantas cópias, tantas imitações, construir sua própria existência é um desafio assustador. Torna-se mais fácil seguir um modelo, copiar uma história que escrever a própria narrativa, porque para isso é preciso lidar com emoções complexas, decidir, posicionar-se, pensar, estudar, aprofundar, ir além das aparências, questionar o vivido, falar com a própria voz, as próprias ideias, criar.
Crescer dói, cortar o cordão umbilical psíquico, suportar os enigmas, dialogar, sustentar a relação com o outro enquanto outro é um percurso longo. Quem não diz o que precisa para existir, se engasga com as palavras do outro.