Qual a verdade que você suporta?

Vivemos em um país onde a verdade falseia e facilmente se acomoda ao discurso mais conveniente, ensejando muitas vezes um conservadorismo cínico seletivo

Legenda: Atacamos e menosprezamos diferenças, para mantermos uma pretensa superioridade, que ao ser consultada nas origens genealógicas é repleta de assaltos à dignidade humana
Foto: Pexels

A psicanálise é um saber que nos confronta com a verdade e os enigmas que nos habitam; nossas fantasias e desejos, que revelam a existência de um mundo inconsciente que por vezes nos atordoa e surpreende. Revela que a sexualidade se relaciona a essas fantasias e desejos sobre os objetos, e ao analisar a forma como obteremos prazer em relação a isso e como lidaremos com a alteridade, mostra que o biológico não define o desejo nem as escolhas.

Freud construiu os fundamentos da psicanálise ouvindo as mulheres e descobrindo que desejos reprimidos produzem sintomas e que aquilo que não conseguimos falar se expressa de outras formas, inclusive nos adoecendo. Freud em 1913 lembra que “não há nada mais caro na vida do que a doença e a estupidez”. A psicanálise tem influenciado a forma de pensar e cuidar ocidentais, as artes, as ciências, porque confronta os homens a pensarem sobre a sua história e assumirem a responsabilidade pelos seus desejos e por sua verdade, lembrando que as palavras e o amor curam. 

Lacan, um brilhante psicanalista francês, diz que “cada um alcança a verdade que é capaz de suportar”. Neste sentido, produzimos narrativas convenientes para sustentar a imagem idealizada que temos, a que desejamos que os outros tenham, a que nos proteja da culpa, a que não nos envergonhe, a que muitas vezes de tão distante de quem verdadeiramente somos, nos adoece.

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Vivemos em um país onde a verdade falseia e facilmente se acomoda ao discurso mais conveniente, ensejando muitas vezes um conservadorismo cínico seletivo. O que parece um nome estranho ou indigesto à primeira vista, na verdade é uma matriz subjetiva nacional. A ambivalência, os paradoxos, constituem nossa história e está presente no cotidiano de forma estrutural compondo formas de agir e pensar nas quais não se percebe os absurdos e incoerências.

Proferimos indignados, sanções, maldições e absurdos sobre a sexualidade alheia, à exposição dos corpos, do desejo, das identidades que não se moldam a um poder conservador, sem questionarmos a verdade das estruturas perversas de poder; e silenciamos complacentemente diante das violências sexuais, que acontecem prioritariamente nos ambientes domésticos, sem nos incomodarmos com a exploração sexual infanto e juvenil, a exploração do corpo para fins comerciais, desde que respaldada pelo cobertor identitário de classe e raça a que pertencemos.

Criticamos e condenamos o aborto em situações legais, desde que não seja com alguém da nossa família, e que possamos oferecer de forma sigilosa o respeito que a proteção financeira garante. Defendemos intransigente a vida, mas somos a favor da pena de morte, defendemos armar a população, exterminar pessoas que pensam diferente, não nos incomodamos com as mortes da população LGBTQIA+, somos indiferentes à tortura, à ditadura e ao extermínio de adolescentes.

Consideramos abjeta relações que destoem do tradicional mesmo que embasadas no amor, respeito e fidelidade, mas mantemos casamentos baseados nas traições e aceitação das dores desde que bem recompensadas pela exposição nas colunas sociais com a foto da família perfeita e feliz. Usamos o nome da religião para atacar com o bastião da verdade e da justiça qualquer conduta desviante, desde que seja dos outros, e usamos essa mesma lógica para nos absolver das infrações mais graves contra o amor e a vida.

Julgamos e condenamos corrupção, contanto que não olhem nossos delitos cotidianos. Atacamos e menosprezamos diferenças, para mantermos uma pretensa superioridade, que ao ser consultada nas origens genealógicas é repleta de assaltos à dignidade humana.

Sustentamos muitas vezes, a defesa da família perfeita para justificar a manutenção social que invalide a descoberta da hipocrisia da nossa, em suas traições, assédios, crimes, desamor, violências. Oramos para nos sentirmos perdoados e absolvidos, para podermos cometer novos pecados e não vermos o divino nos semelhantes do cotidiano.

Pregamos o amor ao próximo, mas atacamos qualquer proposta de igualdade de direitos, salários e justiça social. Condenamos os que passam fome, pela perda da dignidade e deselegância no agir, mas aceitamos complacentes as grosserias em alto patamar financeiro. Criticamos de forma agressiva a violência do outro. Defendemos uma visão limitada de casamento, para muitas vezes manter a imagem social que oferece retaguarda às traições e ataques à lealdade e ao cuidado.

Realizamos discursos em defesa da moral e dos bons costumes, para acobertar o envolvimento com exploração sexual de crianças, adolescentes, opressão de gênero e trabalhos análogos à escravidão. Somos contra educação sexual, mas somos um dos países com maiores índices de exploração e violência sexual contra crianças, adolescentes e mulheres. Realizamos discursos efusivos contra uso de drogas, entretanto em todos os eventos fazemos uso abusivo do álcool, causando transtornos para familiares e amigos.

Ficamos incomodados com manifestações de amor e carinho entre pessoas do mesmo sexo, mas não nos indigna violência doméstica, espancamento entre casais héteros, violência patrimonial, e fazemos o possível para que a ideia de família permaneça, desconsiderando a pluralidade e legitimando que os casais permaneçam unidos, mesmo que somente para sustentar aparências de um amor e respeito que há muito se foi.

Usamos de pautas morais enquanto disfarce para relações de opressão, de busca de poder e das nossas ambivalências e hipocrisias, e fazemos seleções para julgar no outro, aquilo que absolvemos em nós. Somos nacionalistas, mas pouco sabemos da história do país, não conhecemos boa parte das nossas riquezas culturais e artísticas e selecionamos aqueles que devem usufruir dos privilégios da cidadania; além disso, quando existe oportunidade, beijamos bandeira de outros países e desejamos cidadania estrangeira.

Respeitamos a diversidade, desde que enquanto alegoria, e sem ocupar espaços de privilégio, para não nos confrontamos com a verdade dos nossos desejos e de quem somos.

Silenciamos desejos e afetos, por medo de que o outro nos faça o mesmo julgamento que fazemos dele. Assim, sem sabermos nem o porquê de defendermos, sentirmos ou pensarmos o que simplesmente tomamos como verdade, vamos segregando partes valiosas de nós, que podem ficar amordaçadas por não ousarmos refletir sobre qual a verdade que realmente nos libertaria.

*Esse texto refle, exclusivamente, a opinião da autora. 

 

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