‘Santa das espancadas’ e mitologias do sertão compõem livro de cearense para inspirar mulheres
Estreia de Dia Bárbara Nobre no gênero romance, “Boca do Mundo” escancara as diferentes violências contra a mulher enquanto conclama a união de todas para combater a dor
A escritora Dia Bárbara Nobre tem desejo grande: que o novo livro assinado por ela seja lido não como um trabalho sobre violência contra a mulher, mas como uma obra a respeito de como mulheres podem encontrar refúgio umas nas outras. Como elas têm capacidade de retomar o poder sobre a palavra e a própria história diante de fatos possíveis de emudecê-las.
“Para mim, é uma das coisas fundamentais, que quem leia perceba que as personagens passam por situações muito duras, mas conseguem fazer disso uma escada para se reconstruírem como pessoa”, diz ao telefone, em entrevista ao Verso. O livro em questão é “Boca do Mundo”, lançado no último mês de julho pela Companhia das Letras.
Estreia no gênero romance da escritora natural de Juazeiro do Norte, Cariri cearense, a publicação vale-se das diferentes geografias palmilhadas por Dia, sobretudo os diversos sertões, para escancarar brutalidades vivenciadas por mulheres. Feito novelo, as histórias se emaranham para construir um todo no qual dor e esperança se enroscam e erguem algo novo, capaz de mover e mudar. Um alento, uma salvação.
Historiadora por formação – é dela a autoria de “Incêndios da Alma”, livro que investiga o apagamento de Maria de Araújo, protagonista dos milagres do Padre Cícero – ela não se atém à superfície no trato com o tema. Vale-se das próprias mitologias sertanejas para cruzar linhas e incorporar elementos do real na ficção, e vice-versa.
A trama é densa e parte de um lugar: Urânia. Povoado no Nordeste do Brasil em plena caatinga – onde “tudo se reinventava e trocava de pele” – abriga trajetórias como as de Abigail, Hermínia, Teresa e Bamila. Como a de Djanira e de qualquer mulher que se achegue.
Ao público, o ponto fulcral é saber que essa sociedade, além de matriarcal, tem capacidade de se transformar em reduto para todas em situação de crueldade. Ver como isso se desenvolve no texto é espantoso, comovente e não menos poderoso.
Desde 2021, quando iniciou o projeto, Dia sabia que queria escrever sobre mulheres, embora ainda sem ter noção a respeito do assunto específico. “A primeira questão que surgiu teve a ver com o cenário. Foi quando inventei um sertão que mesclava minhas experiências enquanto caririense e minha vivência no sertão de Pernambuco – também um vale, o Vale de São Francisco, pois a cidade em que morei, Petrolina, é cortada pelo rio”, detalha.
A própria concepção de sertão é complexa. Para além da imagem estereotipada da paisagem, no romance também há um sertão com Mata Atlântica, clima úmido, fontes de água mineral, cachoeiras, multiplicidade de culturas, sotaques e jeitos de falar, comer e sentir.
Solo vivo, capaz até de sangrar – e como sangra. Dia apresenta em parágrafos distintas barbáries contra mulheres, da violência física à psicológica, passando pelo modo como operam as estratégias de domínio masculinas. O resultado, ao mesmo tempo feroz, é também atraente, mérito de uma escrita tão fluida quanto inventiva.
A autora conquista sobretudo pela capacidade de fabular e pela prosa econômica, embora não menos poética e alinhada ao nosso modo de falar, de proceder. O equilíbrio permite que o virar de páginas aconteça facilmente enquanto, além de um bom enredo, a audiência fique por dentro de informações reais acerca de toda sorte de conhecimentos.
Como nossas lendas estão no livro
Muitos desses saberes são despertados a partir da já mencionada mitologia de “Boca do Mundo”. Ela nasce a partir de diversas outras – no geral, nordestinas, sobretudo baseadas em lendas dos indígenas Kariri e de uma parte das dos Tremembé, de Pernambuco.
“Peguei muito delas e quando, especificamente, pensei nesse lugar, ‘Boca do Mundo’, considerei muito a Pedra da Batateira – que fica no Crato, no leito de um rio. Enorme, em algum momento foi acorrentada ao chão. Existem várias histórias sobre ela”.
A autora se vale de uma das tantas narrativas para traçar o rumo do livro. A escolhida é a que diz que, se a pedra for retirada dali, a água do interior inundará o vale. Não à toa, essa “Boca do Mundo” é o lugar onde o universo nasce, mas também onde ele pode acabar. E é nele onde as mulheres se encontrarão para formar uma nova sociedade.
A teia de conteúdos se torna ainda mais interessante quando sabemos que, de fato, existe um processo de catalogação da língua indígena Kariri, e a própria autora conversou com representantes dessa cultura no processo de escrita do livro porque queria trazer alguns termos. Foi como criou o neologismo para Boca do Mundo em indígena Kariri: Teiwaridzá.
“Essa decisão foi para, realmente, batizar esse lugar, trazê-lo para a realidade. O próprio livro tem um pano de fundo que é a questão da violência doméstica – o caso da personagem Hermínia, por exemplo, foi muito inspirado num fato ocorrido no Ceará, na cidade de Crateús, com uma moça chamada Isabel Maria da Conceição. Ela foi morta pelo marido a facadas, em 1929, e virou uma santa popular no município”.
Pouco conhecida no Brasil, a santidade detém culto específico na cidade onde nasceu. Em determinado momento de “Boca do Mundo”, por sua vez, é a já citada Hermínia quem se torna alvo de reverência popular. Torna-se a Santa das Espancadas, vagando pelas paisagens em busca de vingança pela violência sofrida, mas sobretudo pela filha perdida nesse processo. “Envolta em uma névoa de ódio, Hermínia era uma espiral de escuridão e esquecimento”, narra a escritora.
Em outro momento, questiona: “Quantos beijos antecedem um tapa? Como confiar no amor se ele foi a causa de tanto sofrimento? Ou aquilo de antes não era amor, afinal?”. Para Dia – que se inspirou em várias mulheres reais para compor as personagens, a exemplo de Bárbara de Alencar para criar Abigail – as reflexões apontam para uma certeza: é preciso cada vez mais tirá-las da obscuridade. Trazer legados à tona.
“Por que não se ouve falar sobre elas? Por que elas foram apagadas, por que conhecemos tão pouco sobre Brígida de Alencar, Bárbara de Alencar? O Ceará é um dos Estados que apresentam altos números de feminicídio. Lembro de minha adolescência em Juazeiro do Norte, quando minha avó não deixava eu sair sozinha. Acho que é isso, sinalizar pras pessoas de que isso ainda é uma pauta, infelizmente. Precisamos falar sobre”.
Lançamentos e o lugar do realismo mágico
Inspirada por nomes como a conterrânea Socorro Acioli, Dia Bárbara Nobre também reflete sobre o lugar do realismo mágico na literatura cearense. Conforme observa, nosso fazer verbal contemporâneo traz para as páginas diversas questões pouco trabalhadas antigamente, munindo-se do diálogo entre realidade e ficção para enveredar por horizontes profundos.
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“É toda uma questão mística, mas que não sai do plano da materialidade. Modéstia à parte, acho que o povo nordestino, no geral, conta histórias muito bem. No Ceará, especificamente, temos uma produção literária muito bonita hoje, que está crescendo e que vai crescer ainda mais”, analisa, citando ainda Jarid Arraes, Tito Leite e Lorena Portela.
Por sinal, é no diálogo entre essa percepção e a narrativa que engendra em “Boca do Mundo”, que a autora desenvolve percepção certeira: quer que o novo trabalho inspire esperança. Não sem motivo, a serpente foi o animal escolhido por Dia para representar Urânia.
“A serpente por vezes passa por um processo de troca de pele. Larga a velha e sai com a nova. Acho que todas as personagens do livro passam por isso. E é isso que nós, mulheres, aprendemos na vida. No geral, somos socializadas para sermos obedientes, quietas. E então algumas começam a pensar: ‘Não é por aqui, deixa eu retomar o controle da minha vida’”.
É como a própria Urânia escreve: “(...) feito a terra que se renova, milênio, após milênio”. E é como Dia circunscreve. No momento percorrendo algumas cidades, e com previsão de lançamento do livro em Fortaleza no mês de novembro, a escritora estreia no romance com pé direito: sabendo ser composta por muitas. “Elas me formam, assim como eu as formo”.
Boca do Mundo
Dia Bárbara Nobre
Companhia das Letras
2025, 197 páginas
R$ 79,90/ R$ 29,90 (e-book)