O que aconteceria se a amizade fosse o centro da vida afetiva, e não o amor romântico?

Neste domingo (20), Dia da Amizade, entenda a importância de vínculos fraternos e conheça grupo de amigas que se reúne há 50 anos para celebrar união

Escrito por
Diego Barbosa diego.barbosa@svm.com.br
(Atualizado às 07:54, em 21 de Julho de 2025)
Na imagem, grupo de amigos se abraça durante encontro
Legenda: Estudiosos situam que vínculos seguros e afetuosos atuam como fator de proteção psíquica e existencial
Foto: Bricolage/Shutterstock

Mãos dadas, abraços trocados, gostar de estar perto. A cena pode ser de namoro ou amizade, mas geralmente atribuímos ao primeiro. Pudera: fomos moldados para privilegiar o amor romântico em detrimento do amor fraterno. Mas e se, de repente, invertêssemos a lógica? O que aconteceria com o mundo se essa fosse a nova bandeira das relações?

Se os laços fraternos ocupassem um lugar central, reorganizaríamos nossas escolhas relacionais com base no que é valoroso e sustentável, e não apenas no que é intenso, idealizado, presos à fantasia da completude ou justificado pelo desejo sexual, analisa Angélica Lacerda, psicóloga e professora do Instituto Fratelli. 

Para a estudiosa, amizade é o espaço onde o amor pode existir com coragem, mesmo diante das imperfeições. “Como diz Ana Suy: ‘Descobrimos que amizade é como a gente chama o amor que deu certo’”, menciona. Amar, seja na amizade ou no romance, é ato que envolve consciência, vulnerabilidade e escolha.

Premissas feito essa também podem ser encontradas no livro "A vida é melhor com amigos", da  jornalista norte-americana Rhaina Cohen. Lançada no Brasil pela editora Vestígio, a obra lança luz sobre parcerias de amizade que, longe dos moldes românticos e sexuais, oferecem suporte emocional, segurança e sentido de pertencimento tão profundos quanto casamentos tradicionais.

Na imagem, capa do livro
Legenda: Além de retratar histórias emocionantes, livro de jornalista americana revisita práticas históricas para mostrar que a separação rígida entre amizade e casamento é recente
Foto: Divulgação

Com base em entrevistas envolvendo 70 pessoas e ampla pesquisa histórica e sociológica, Cohen expõe um fenômeno pouco reconhecido: amizades que assumem lugar central na vida dos participantes, moldando decisões, projetos de vida e redes de apoio em todas as fases da existência.

Será esse o motivo pelo qual temos visto, com cada vez mais frequência, publicações nas redes sociais sobre o valor dos amigos? É uma via de entendimento. O palpite de estudiosos é que essa virada cultural está conectada a uma maior consciência coletiva de que o bem-estar psicológico depende da qualidade dos nossos contextos sociais. 

Na imagem, grupo de amigos se encontra de forma descontraída
Legenda: Se os laços fraternos ocupassem um lugar central, reorganizaríamos nossas escolhas relacionais com base no que é valoroso e sustentável
Foto: PintoArt/Shutterstock

Redes de apoio, vínculos leves e amizades profundas se tornaram formas de sobrevivência emocional. Não à toa, vemos com cada vez mais frequência publicações nas redes sociais reforçando o valor dos amigos.

Amizade x epidemia da solidão

É um tempo curioso, porém. Falamos muito sobre a importância da amizade e do desejo de vínculos profundos, ao mesmo tempo com a impressão de estarmos mais sozinhos do que nunca. Em uma época que muitos chamam de epidemia da solidão, é notório: há dificuldade crescente por parte de muitos em cultivar e manter amizades. 

A perspectiva é de Hugo Iglesias Moraes, psicólogo clínico e neuropsicólogo. Em face da vontade geral de relações significativas, ele salienta que muitas vezes esquecemos o fato de elas se alimentarem de pequenos gestos de cuidado, atenção e presença. Nesse cenário, surge algo inusitado: o ghosting, normalmente associado a aplicativos de relacionamento.

“Ele começa a aparecer também entre amigos, inclusive naqueles encontros espontâneos que tinham tudo para crescer, mas que não crescem. É como se, diante da possibilidade de um vínculo mais profundo, faltasse fôlego ou disposição para sustentar essa entrega. E isso diz muito sobre os desafios emocionais do nosso tempo”, pondera o estudioso.

Na imagem, amigos se reúnem em fim de tarde
Legenda: Para psicóloga, amizade é o espaço onde o amor pode existir com coragem, mesmo diante das imperfeições
Foto: Alberto Menendez Cervero/Shutterstock

Não à toa, quando alguém começa um namoro e acaba se afastando dos amigos, pode não se tratar apenas de falta de tempo. Por trás disso, muitas vezes estão padrões emocionais antigos – premissa que a Terapia do Esquema, criada pelo psicólogo americano Jeffrey Young, chama de Esquemas Precoces Desadaptativos. 

Em linhas gerais, é semelhante a uma fusão. Há a ideia, de acordo com a teoria, de que amar é viver “colado”, sem espaço para nada nem ninguém. Aliado a isso, surgem inseguranças, ciúmes e medo de perda. Relações mais saudáveis, pelo contrário, são justamente aquelas em que cabe tudo: amor, amizade e espaço individual. 

“Ter amigos não ameaça o relacionamento amoroso. Pelo contrário, fortalece. Dá autonomia, alivia a pressão, deixa cada um mais livre para ser quem se é. Um exemplo bonito disso é a parceria entre Vinicius de Moraes e Tom Jobim. Eles não eram só parceiros artísticos, eram amigos. E muito diferentes”, ilustra Hugo.

Vinicius era expansivo, intenso e apaixonado. Tom era contido, detalhista e introspectivo. Essa diferença não foi obstáculo, mas justamente o que gerou uma sintonia única, algo que talvez nenhum dos dois alcançasse sozinho. “Às vezes, a amizade toca em áreas que o amor romântico nem sempre alcança. Traz segurança, troca, crescimento. A gente só se conhece de verdade quando se vê refletido no olhar do outro”.

O impacto da amizade no organismo

O sentimento é tão profundo e essencial que mexe até com o comportamento do organismo. A amizade ajuda a diminuir os níveis de cortisol, considerado o hormônio do estresse, e aumenta a liberação de dopamina e oxitocina – ligadas ao prazer e ao vínculo, à sensação de confiança. Tudo isso fortalece o sistema imunológico, melhora a saúde do coração e aumenta a resiliência emocional quando passamos por momentos difíceis.

Veja também

Mas tem algo ainda mais interessante do que essa questão em si. A amizade nos dá um senso de continuidade capaz de nos lembrar quem somos. Ela guarda memórias compartilhadas e, de certo modo, dá sensação de que existe algo que atravessa o tempo. Isso tem peso enorme, principalmente na velhice – quando a solidão costuma apertar mais.

“Ter amigos muda a vida. Isso não vem só de estudos, mas também da experiência. Quem já atravessou um momento difícil sabe como um amigo pode puxar a gente para cima. Quem já dividiu uma alegria sabe como ela ganha mais cor quando é compartilhada”, percebe Hugo Iglesias.

Não sem motivo, para o psicólogo, quando Antônio Carlos Jobim cantou que “é impossível ser feliz sozinho”, não falava de estar cercado de gente o tempo todo, mas daquela felicidade que só cresce quando encontra espaço no outro.

Bodas de ouro de amizade

Se, na vida prática, a solidão de fato costuma atuar com mais força na velhice, o oposto acontece com um grupo de 24 amigas de Fortaleza com nada mais nada menos que 50 anos de parceria. As integrantes da ACAD – sigla do grupo Aprender, Crescer, Ajudando e Divertindo – têm entre 70 e 85 anos, e mensalmente se reúnem para celebrar a união.

“Tenho muitos grupos, mas esse, pra mim, é o mais importante. Todo mês a gente se encontra – quando não na casa uma da outra, em algum restaurante. Se for um mês com alguma data comemorativa, as conversas são temáticas; se não, conversamos sobre a vida mesmo”, conta a educadora física aposentada Vera Lúcia Bastos Tigre, 83, presidente do grupo.

Memórias sobre quando passeavam na Praça do Ferreira de outros tempos, bem como causos gerais sobre esposos, filhos e netos, ganham cores diferentes na fala das participantes. Gostam muito de lembrar de como tudo começou. Foi quando, há cinco décadas, se reuniram para estudar com o objetivo de passar no vestibular.

Na imagem, reunião de integrantes do grupo ACAD, formada por 24 amigas há 50 anos em Fortaleza
Legenda: Integrantes do grupo ACAD, formada por 24 amigas de Fortaleza há 50 anos: união e parceria em todas as horas
Foto: Arquivo pessoal

“Nossos filhos estudavam no Colégio Santo Inácio e estavam tirando nota baixa. Pensei, ‘Como vocês não estão querendo estudar muito, vou começar a estudar’. Então formamos esse grupo”. A primeira reunião foi no BNB Clube, e segue até hoje. A trupe é tão organizada que possui cordel e até mensalidade próprios – esta capaz de capitanear uma festa só delas.

A mais recente, intitulada Festa do Papoco, aconteceu na última sexta-feira (18), no Ideal Clube, regada a muito “som, buffett e palestras”. É como brindam o prazer de ter gente querida ao lado em todas as horas. Vera Lúcia mesmo, ao ficar internada na Unidade de Terapia Intensiva em determinado momento da vida, nunca esquece do gesto das amigas.

“Quando dei por mim, de surpresa, elas estavam lá. Era até proibido, mas aconteceu. Contar com elas quando a gente está numa hora dessa, na solidão, é a coisa melhor do mundo. A amizade é um brilhante na vida, principalmente na nossa idade. Sem amigas, não viveríamos porque os filhos crescem, vão embora, e as amizades ficam. Quando uma precisa da outra, basta ligar. A gente se ajuda, se apoia”.

Na imagem, reunião do grupo ACAD, composto por 24 membros e com 50 anos de amizade em Fortaleza
Legenda: Mensalmente, integrantes do grupo ACAD se reúnem para celebrar a vida e a amizade
Foto: Arquivo pessoal

A psicóloga Angélica Lacerda diz que nossa existência é relacional. Desde o nascimento, é o outro quem nos nomeia, nos inscreve no mundo e dá função às nossas palavras. “Não há subjetividade sem o outro. Ter amigos é fundamental para o nosso desenvolvimento emocional, social e até fisiológico”, considera.

Por isso mesmo, também destaca que, na perspectiva da Psicologia, o que define se uma experiência amorosa é plena não é a forma do vínculo, mas se está alinhada aos valores da pessoa, se promove crescimento, coragem e ação amorosa com o outro e consigo. 

“O amor que dá certo não é o que encaixa numa forma. É o que nos convida a sermos mais inteiros, presentes e honestos conosco e com o outro. A questão não é qual amor traz mais contentamento, mas qual amor me move em direção ao que importa, mesmo que doa”.

Amizades de baixa manutenção: o que é e quais os efeitos

Nessa esfera da união entre amigos, também merece atenção um termo fartamente popularizado por meio das redes sociais: amizade de baixa manutenção. Em resumo, é quando amigos não se falam com frequência, mas ainda se consideram juntos por um elo. Angélica diz que, apesar de parecer confortável, a expressão pode esconder riscos.

Na prática, pode normalizar relações distantes, com pouco envolvimento – claro contraste de relações íntimas e significativas, fundamentais para o bem-estar psicológico. “Intimidade exige contato, exposição, troca afetiva real, mesmo que não seja diária ou intensa. Quando a gente se acostuma com esse tipo de vínculo distante, acabamos reforçando uma ideia de que amar ‘sem dar trabalho’ é sinal de maturidade”.

Na imagem, trio de idosos amigos se encontra para conversar
Legenda: Intimidade, para estudiosos, exige contato, exposição e troca afetiva real, mesmo que não seja diária ou intensa
Foto: Diego Cervo/Shutterstock

Na verdade, considera Angélica, isso pode ser só medo da intimidade, de se mostrar ou de precisar do outro – necessidades nada vergonhosas, diga-se de passagem. A bem da verdade, elas são muito civilizatórias e saudáveis. 

“Se ‘baixa manutenção’ significa flexibilidade, respeito ao tempo do outro e confiança mútua mesmo com alguma distância, tudo bem. Mas se significa descompromisso, ausência de contato e vínculos congelados em nome da praticidade, aí não. Relações que importam não se mantêm sozinhas, elas são cultivadas”.

Hugo Iglesias Moraes, por sua vez, observa que amizades de baixa manutenção aliviam a pressão numa rotina cheia de tarefas, prazos e cobranças. “Claro, nenhuma relação sobrevive sozinha, mas o essencial ali não é quantas vezes a gente se vê, e sim saber que o laço está seguro, mesmo no intervalo, e que existe uma vontade de manter algo bom que está ali. Quase um vínculo atemporal”.

Ter amigos muda a vida

No fim das contas, a conclusão é certa: estar ao lado de quem nos quer bem, com toda gratuidade e liberdade que o amor concede, transforma a vida. Ter alguém com quem se pode ser visto, ouvido e aceito, sem precisar performar, é o que sustenta nosso senso de valor, pertencimento e humanidade. Amizades reais nos ajudam em amplos aspectos.

Na imagem, crianças dividem brincadeira em campo aberto
Legenda: Ter alguém com quem se pode ser visto, ouvido e aceito, sem precisar performar, é o que sustenta nosso senso de valor
Foto: Robert Kneschke/Shutterstock

Entre eles, estão atravessar dores, crescer e permanecer em contato com o que importa, mesmo nas crises. “Manter amigos por perto é uma escolha radical de cuidado. Porque onde há presença genuína, há também possibilidade de transformação”, sustenta Angélica.

Precariedade nas relações íntimas está diretamente ligada à instalação e manutenção de quadros clínicos, a exemplo de depressão, ansiedade e isolamento afetivo.

O oposto também é verdadeiro: vínculos seguros e afetuosos atuam como fator de proteção psíquica e existencial. É como a Psicoterapia Analítico Funcional ensina: “A forma como nos relacionamos pode nos adoecer, mas também pode nos curar.”

Este conteúdo é útil para você?
Assuntos Relacionados