As causas e efeitos do Ghosting, sumiço sem explicação que tem abalado relacionamentos

Prática tem sido discutida com cada vez maior frequência, encontrando olhares férteis também na arte

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Segundo sociólogo, estamos começando a nos relacionar com as pessoas do mesmo modo que com os objetos, de forma individualista e puramente usual
Foto: Shutterstock

Tudo vai bem. Você conhece uma pessoa, passa a trocar mensagens, vivencia momentos importantes ao lado dela e, de repente, o baque. Ela simplesmente some sem dar maiores explicações.

Assim acontece o “ghosting”, termo utilizado para caracterizar um modo de terminar relacionamentos, sobretudo na era digital, no qual o indivíduo corta vínculos, deixando de responder mensagens e ligações sem dar nenhuma justificativa. Não à toa, a utilização do conceito é associada a um fantasma (em inglês, “ghost”). 

Pesquisadores têm se debruçado com cada vez maior frequência sobre essa prática. Especialista em Saúde Mental e mestranda em Psicologia Clínica, Talita Queiroz sublinha a relevância de não perdermos de vista o momento histórico em que vivemos, de grandes transformações tecnológicas. “Elas possibilitam novas maneiras de subjetivação que influenciam as formas como nos relacionamos na atualidade”, explica.

Para aprofundar o tema, a estudiosa cita o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017), famoso por cunhar a teoria da fluidez das relações. Segundo ele, estamos começando a nos relacionar com as pessoas do mesmo modo que com os objetos, de forma individualista e puramente usual. Assim, construímos laços afetivos frouxos e com pouca responsabilidade.

Legenda: “Questiono-me quando passou a ser natural a falta de responsabilidade pelo que fazemos com os outros”, provoca psicóloga
Foto: Shutterstock

“As tecnologias trouxeram mudanças importantes, facilitaram muitas questões cotidianas. Porém, construir laços humanos é de outra ordem. O comportamento de ghosting pode estar associado a diversas questões relacionais. Na minha experiência como psicóloga clínica, algumas se destacam, como a dificuldade de gerir conflitos e algumas complicações, tanto para construir quanto para manter relações íntimas com as pessoas”, dimensiona Talita.

Ela percebe uma certa banalização desse comportamento nas redes sociais, e isso tem gerado preocupação. “Questiono-me quando passou a ser natural a falta de responsabilidade pelo que fazemos com os outros”, destaca. 

Quem pratica o ghosting geralmente relata sentir vergonha e culpa. Pode demonstrar, inclusive, grande rigidez em relação às próprias expectativas para com o (a) parceiro (a) – de modo que, quando a pessoa idealizada não cumpre tais expectativas, sentem-se frustrados e não sabem bem como lidar, ocasionando o “sumiço”. 

“Pessoas que praticam o ghosting podem ter sofrido rompimentos dolorosos em sua história de vida, dos quais não conseguiram processar bem. Por outro lado, para quem sofre o  ghosting, pode ser difícil dar conta daquilo que lhe foi negado: uma explicação. O afastamento pode ser experimentado com sentimentos de rejeição e culpa”.
Talita Queiroz
Especialista em Saúde Mental e mestranda em Psicologia Clínica

Tal situação pode reforçar inseguranças já presentes e influenciar relações futuras. Caso ocorra com frequência, pode também indicar padrões de relacionamentos, nos quais aparecem constantemente o sentimento de desconfiança, baixa auto estima e medo da rejeição. Por isso a importância de mantermos a atenção ao que nos aproxima e afasta nas relações, evitando que isso nos condicione a padrões geradores de sofrimento. 

Reflexos na arte

Como não poderia deixar de ser, a arte também tem se apropriado do assunto para alimentar reflexões. Alagoano radicado no Ceará, Valmir Lins lançou nas plataformas digitais, no último dia 21, “Esfinge”, canção que mergulha nos enigmas do ghosting a partir da própria experiência do artista. A música foi a última de uma série de escritos produzidos logo após o término de uma relação de nove anos e de uma paixão avassaladora vivida logo em seguida. 

“Acho que a pandemia aflorou ainda mais todos esses sentimentos. Isolamento, incertezas, medo de adoecer, de morrer. Escrever em meio a isso tudo torna as coisas, no mínimo, mais intensas”, percebe. Ao conceber o trabalho, a maior preocupação de Valmir foi confundir as pessoas para que não reconheçam a identidade dele, ainda em formação, com o que ouviriam ali. Para o artista, essa é uma canção gritada, de dentro para fora, com uma força imensa. 

“A gente colocou tanta verdade ali que o meu medo acabou se dissipando. Ainda que a sonoridade seja diferente de ‘Pacto’ (primeira música que escrevi e gravei, em parceria com Tiê e Adriano Cintra), ali sou eu nu, novamente, e acho que dá pra notar isso”. De fato, desde a capa do single – assinada pelo veterano Nicolas Gondim com finalização de Alan Uchôa – é perceptível o compromisso de Valmir em adentrar fundo no próprio eu.

Segundo ele – que vivenciou o ghosting em duas quase-relações após a separação – é doloroso lidar com o vácuo repentino. Nessa situação, o movimento natural é pensar, “o que eu fiz de errado?”, “qual é o meu problema?”. “A gente simplesmente não enxerga à primeira vista que quem agiu foi o outro. A ação foi dele. E sumir repentinamente é uma demanda que não deve ser atribuída a nós. Mas dói. No meu caso doeu e eu fui escrever sobre isso”, conta.

“Vivemos a era do ‘sem tempo, irmão’. Isso vulnerabiliza os laços e acaba fazendo com que a pessoa se sinta no direito de simplesmente desaparecer, pra não ter o trabalho de gerenciar as consequências da própria decisão. Reflexos de uma globalização que resolve tudo no apertar de um botão. É difícil”.
Valmir Lins
Artista multimídia

Não sem motivo, Valmir acredita que os sentimentos precisam ser vividos com toda a intensidade. Afinal, é vivendo que aproveitamos o que é bom e exorcizamos o que é ruim. A arte ajuda a materializar a dor e nomear os gestos, além de ser um espelho absurdo e apaixonante para quem a aprecia. 

“Até hoje ouço ‘Esfinge’ e levanto da cadeira, sinto uma vontade absurda de viver. Entendo o tamanho da capacidade que tenho aqui dentro de me levantar, quantas vezes for preciso. É isso que eu quero que o público sinta. Vontade de viver a dor, pra ela passar mais rápido. Usar o fundo do poço como catapulta pra sair dele e nunca mais voltar. E, através dessa identificação, tocar a maior quantidade de corações que minha voz puder alcançar”, torce.

Legenda: O artista multimídia Valmir Lins vivenciou o ghosting em duas quase-relações após separação: "É doloroso lidar com o vácuo repentino"
Foto: Nicolas Gondim

A pandemia e o ghosting

Nesse sentido, é fato que a interação mediada pelas tecnologias digitais trouxe uma noção de responsabilidade diferente para algumas pessoas. Não é incomum vermos perfis falsos comentando o que bem entendem nas publicações alheias, por exemplo. A pandemia de Covid-19, inclusive, afetou e continua afetando vários âmbitos de nossa vida. Os modos de relacionamento dificilmente sairiam ilesos desse cenário. 

“Esse instante associado à obrigação, por parte de muitos, de se comunicarem apenas por tecnologias digitais, potencializou a prática do ghosting. O aumento do acesso às tecnologias descortinou uma gama de possibilidades de interação que muitas pessoas desconheciam. Relacionar-se já pode ser um aprendizado difícil, imagine em um momento de emergências e inseguranças como a pandemia?”, provoca Talita Queiroz.

Desta feita, se por um lado muitas pessoas precisaram aprender a usar as ferramentas virtuais, do outro algumas viram, na grande gama de aplicativos, a “facilidade” de conversar com vários perfis sem se vincular realmente a nenhum. O súbito desaparecimento surge a reboque dessa dinâmica, otimizando uma reflexão inclusive sobre a não-conclusão de um ciclo. 

Nem sempre as relações terminarão como gostaríamos e é natural os términos trazerem sofrimento. São uma ruptura de expectativas e planos, além do luto daquilo que já se viveu com o outro. Porém, no caso do ghosting, a crueldade está no modo como o afastamento acontece: sem explicações e muitas vezes sem ter havido conflito. 

“Toda a nossa vida passa por ciclos, alguns mais perceptivos, outros menos. A compreensão de que mudanças acontecem para você e para os outros é o primeiro passo para aprender a lidar com as transformações desses ciclos. Pensamentos podem mudar, desejos podem mudar, sentimentos podem mudar… Os seus e os dos outros. E sem o seu controle! Saber compreender e comunicar tais mudanças é muito importante para trazer encerramento ao que já não faz mais sentido e decisão para tomar novas escolhas. Tal fluidez e flexibilidade é essencial para a manutenção da saúde mental”, defende.

Somos abandonáveis

A discussão é igualmente esmiuçada no romance “Copo Vazio”, da escritora e médica psiquiatra Natalia Timerman. Lançado no ano passado pela editora Todavia, o livro conta a história de Mirela, arquiteta bem-sucedida cuja rotina mergulha em afetos perturbadores quando se apaixona por Pedro. Após o começo idílico do relacionamento, o homem some sem deixar rastros e muito menos explicar a razão para isso.

Natalia explica que o enredo tem uma semente autobiográfica transformada numa árvore ficcional. “Eu queria contar uma história, intuía que ela não dizia respeito apenas a mim. Ao longo do processo de escrita, fui percebendo que os elementos contemporâneos, como as redes sociais e a internet, a distinguiam de outras, mas também a inscreviam numa cronologia, dando-lhe elementos específicos”.

A autora situa o ghosting como algo que pode ser muito perturbador, capaz de aguçar uma ferida primordial que todos portamos: o fato de que somos abandonáveis, verdade exposta em carne viva. “É importante que falemos disso porque, sendo um comportamento que pode deixar marcas, sabermos reconhecê-lo estando dos dois lados, o de quem fica e o de quem some, nos ajuda a evitá-lo, ou ao menos a compreendê-lo”.

Por isso mesmo, ela arquitetou para que, no livro, Mirela fosse ao fundo do poço. A intenção foi mostrar o avesso da personagem, o mais inadmissível. O vergonhoso. Nesse processo, a escuta clínica ajudou bastante Timerman, uma vez que ela tem acesso cotidiano a esses labirintos de pensamento, aos nós que tentamos esconder principalmente de nós mesmos.

“Queria que tudo isso estivesse à mostra, e as palavras, a literatura, me ajudam a cercar, a fazer uma armadilha para capturar aquilo que é mais difícil de dizer”, reforça. “A tecnologia e seus avanços nos dão a ilusão de que estamos evoluindo em todos os âmbitos, mas há algo em nós que é e será sempre precário. É importante admitirmos isso, nos conciliarmos com nossa fragilidade, com nossa insuficiência”.

Legenda: “Eu queria contar uma história, intuía que ela não dizia respeito apenas a mim", diz Natalia Timerman sobre "Copo Vazio", livro que explora a temática do ghostng
Foto: Divulgação

Logo, é possível evitar sofrer as consequências do ghosting, ao mesmo tempo que não realizar essa prática? Talita Queiroz enfatiza não haver uma regra rígida ou receita da melhor forma de nos relacionarmos, seja de modo virtual ou pessoal. Porém, algumas questões podem ajudar na construção de laços saudáveis.

Ninguém está imune a passar pela experiência do ghosting, mas existem determinados sinais que merecem atenção. Pessoas que falam excessivamente sobre si e os próprios desejos, mas pouco perguntam sobre os interesses do parceiro e a respeito de como ele está, devem ser observadas. Indivíduos que insistem no envio de fotos ou vídeos, mesmo quando recebem negativas, também. Assim como aqueles que mudam de assunto facilmente quando a possibilidade do encontro pessoal aparece.

“Caso isso ocorra, tente lembrar que uma relação envolve a responsabilidade mútua e que o ‘problema’ pode não estar em você, ou em algo que você falou. Caso esteja difícil lidar com a situação sozinha (o), buscar a própria rede de apoio é essencial. Amigos, família e ajuda profissional podem trazer um apoio importante”.
Talita Queiroz
Especialista em Saúde Mental e mestranda em Psicologia Clínica

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