Esqueça a Disney: artista cearense cria esculturas fiéis a lendas de sereias e encantados dos rios

Natural do município de Pires Ferreira, Davi Ângelo tem raízes em comunidades ribeirinhas e traduz toda a sabedoria desse povo em criações que impactam e atraem ao mesmo tempo

Escrito por
Diego Barbosa diego.barbosa@svm.com.br
Na imagem, o artista plástico Davi Ângelo com uma das próprias criações, uma sereia produzida em conformidade com as lendas do Ceará
Legenda: Davi Ângelo cresceu às margens do açude Araras, região Norte do Ceará; por meio das águas, começou a ter contato com lendas
Foto: Márcio Tibúrcio

Você saberá o que são sereias de verdade quando vir as sereias de Davi Ângelo. Ou, pelo menos, notará o quão diferentes elas são da fisionomia consagrada pela cultura hegemônica. Esses seres da água, juntamente a outros encantados dos rios, protagonizam o trabalho do cearense natural de Pires Ferreira, dono de mágica história para contar.

Filho de pescador e com raízes em comunidades ribeirinhas, Davi se inspira em lendas de nossa cultura para criar esculturas realistas de criaturas aquáticas. A produção, totalmente artesanal, impressiona por, de fato, desmistificar o modo como encaramos personagens tão emblemáticos do folclore. Mais: atestam a importância das narrativas cultivadas por nosso povo, em movimento de valorização dos relatos orais.

“Cresci às margens do açude Araras, uma das maiores represas de água na região Norte do Ceará. E foi por meio das águas e rios que desembocam nele que comecei a ter contato com lendas”, conta. Pessoas mais velhas da família também colaboraram com esse processo. Não raro, a lembrança boa do artista plástico de estar enrodilhado por mistério e encantamento ao escutar cada conto, aventura e experiência compartilhados à boca miúda.

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Semelhante fascínio guia o moldar manual dos seres. A riqueza de detalhes impacta. Veias, órgãos, pele e outras partes do corpo são reproduzidos com precisão, tudo baseado em pesquisas, estudos e a sabedoria dos antigos. Cada obra pode ter um destino diferente: algumas ganham exposições em galerias de arte; outras acompanham Davi em mergulhos na água, seja na penumbra do começo do dia ou na meia-luz do entardecer.

Para ele, essas entidades não existem necessariamente para arrebatar pela beleza. Mas para nos fazer perceber, nos desígnios da estranheza, realidades extremamente interessantes. “Algo que cative, ainda que não seja propriamente belo”, resume. “As sereias e seres das águas que costumo retratar têm um aspecto mais animalesco. Às vezes, a textura da pele remete a algum animal marinho, peixe, salamandra ou mamífero aquático”.

Na imagem, o artista plástico Davi Ângelo com uma de suas criações, uma sereia produzida aos moldes das lendas contadas no Ceará
Legenda: Num misto de fascínio e estranheza, Davi Ângelo quer convocar público a chegar mais perto de nosso folclore
Foto: Márcio Tibúrcio

No fim das contas, são seres da natureza que se fundem com características humanas, em total comunhão com as lendas – nas quais esse ponto se sobressai. Os contos pertencem sobretudo à cultura indígena, responsável por cravar no imaginário do povo ribeirinho a forma dos encantados mais alinhada à estética de leões e focas marinhos do que à identidade das sereias que conhecemos, concebidas para consumo em massa.

Como as sereias são feitas

Esses elementos permitem que o ofício de Davi Ângelo, com apenas 31 anos de idade, transite entre o ancestral e o contemporâneo. Ao mesmo tempo uma visão artística particular, bebe de uma tradição centenária, em diálogo com relatos dos povos originários brasileiros dos séculos iniciais da colonização. Eles diziam que sereias pertenciam às águas, tinham dentes animalescos e um agir em nada parecido ao humano.

Igualmente, tinham contato com a boca da noite, numa penumbra capaz de fazer gente enxergar várias coisas – desde o que somos induzidos pelo medo àquilo que, de fato, pertence ao movimento natural do cotidiano. Todo esse panorama se refletiu na produção das sereias e encantados no ateliê de Davi, localizado em Sobral.

Para fabricar as peças em formato tridimensional, feitas desde 2009, primeiro há um estudo sobre como o encantado será observado – se numa exposição, dentro da água ou para participação em fotos ou vídeos. Em seguida, argila é a matéria-prima principal, sobretudo aquela do próprio açude Araras. O material era utilizado pelo pai e pelos avós do artista, tanto para modelar quanto para fabricação de instrumentos utilitários. 

Com o tempo, Davi foi mais fundo e incrementou outros elementos, a exemplo de silicone (para aproximar a textura à pele humana) e látex de seringueira. O tempo de criação varia. São aproximadamente duas semanas para fazer um corpo que não seja tão grande quanto o humano; quando é completo, leva mais de 20 dias. 

Na imagem, produção de um encantado do rio pelo artista plástico Davi Ângelo, baseado em lendas e contos cearenses
Legenda: Peças são fabricadas em formato tridimensional e passam por diferentes etapas, de estudo à escolha do material
Foto: Márcio Tibúrcio

“Antes desse tipo de criação, desenvolvi uma pesquisa com perspectiva bidimensional voltada para desenho, rascunho, desenho em nanquim e em lápis grafite, coisas que sempre fiz desde criança. Cresci desenhando esses seres”, situa o sereeiro.

E continua. Professor de Artes nos dois primeiros turnos do dia, ele concentra no início da noite todo o esforço para criar novas peças. Sozinho, acende incenso, vela e, então, começa. “Para mim isso tudo é muito interessante porque a fascinação nasce por meio de um conjunto de coisas. Acredito que o ambiente em que você vive é um dos maiores responsáveis por criar fenômenos feitos esses, em que você se depara com algo novo ou estranho”.

Onde ver as peças 

Ainda sem produzir por encomenda, Davi diz que as peças, em número de 50, têm possibilidade de ocupar galerias, protagonizar mostras e integrar produções audiovisuais. Ele mesmo já realizou ações envolvendo, por exemplo, estudantes de escolas, difundindo conhecimentos referentes à nossa cultura a partir do ofício pioneiro e inédito em todo o país.

Na imagem, o artista plástico Davi Ângelo com uma de suas produções, uma sereia criada em conformidade com as lendas e contos do Ceará
Legenda: Desejo é realizar intervenções em praças e rios, para que pessoas possam compreender um pouco do processo de concepção das criaturas
Foto: Márcio Tibúrcio

Para o futuro, o desejo é realizar intervenções em praças e rios, para que as pessoas possam se achegar, fotografar e compreender um pouco do processo de concepção das criaturas. Por meio do uso de silicone, também investir em experiências táteis envolvendo pessoas com deficiência visual. E, claro, estender o trabalho para outras praças, incluindo Fortaleza e várias cidades do Brasil. Em suma: espalhar saberes, exaltar o excêntrico.

“Acho que as obras têm chave. E essas chaves abrem coisas, despertam algo na gente. Ao mesmo tempo, é um desafio ser contemporâneo e trabalhar com algo que remete muito ao passado – principalmente no momento de apresentação da obra, em que você vai contar as lendas contadas na sua infância para um estranho que nem sempre teve aquela vivência. Minha missão é que elas entendam que naquela forma tão difusa, existe encantamento”.

Na imagem, o artista plástico cearense Davi Ângelo com uma de suas criações, uma sereia produzida em conformidade com as lendas e contos do Ceará
Legenda: Espalhar saberes ancestrais e exaltar o excêntrico cearense são alguns dos focos de Davi Ângelo
Foto: Márcio Tibúrcio

Até lá, segue conversando com as próprias criações no ato de moldá-las. Possuem até nome. Em conversa muito franca, elas mesmas dizem como preferem o próprio aspecto. É coisa de magia. Fascinação mesmo. “Finalizo com um sopro no ouvido delas. Encontrar essa sensibilidade e levá-la ao outro por meio da arte, acho isso muito maravilhoso”.

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