IA pode ajudar a decifrar um dos textos mais antigos do mundo; saiba como
Gravado em placas de argila com escrita cuneiforme, o texto literário tem quase quatro mil anos

Um novo projeto que utiliza Inteligência Artificial (IA), chamado Fragmentarium, liderado pelo professor Enrique Jiménez, do Instituto de Assiriologia da Universidade Ludwig Maximilian (LMU), em Munique, Alemanha, tem tentando ajudar a decifrar um dos textos mais antigos do mundo: a epopeia de Gilgamesh. Gravado em placas de argila com escrita cuneiforme, o texto tem quase quatro mil anos.
A iniciativa é liderada pelo professor do Instituto alemão, mas tem como base a Universidade de Fribourg, na Suíça. A equipe do projeto emprega ferramentas de machine learning para superar um dos maiores desafios relacionados ao texto, que é o fato dele ter sido encontrado em cerca de 15 mil fragmentos na Biblioteca de Ashurbanipal em Nínive, atual Mossul, no Iraque.
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O achado da epopeia ocorreu na década de 1850 por Austen Henry Layard, Hormuzd Rassam e W. K. Loftus e a reconstrução completa de Gilgamesh ainda não foi finalizada. Isso, porque diferentes partes dos fragmentos estão em diversos países, como Reino Unido e Estados Unidos. Além disso, há uma escassez de assiriologistas qualificados para concluir a complexa tarefa em tempo hábil, pois a especialidade é considerada extremamente rara.
De modo simplificado, o machine learning (aprendizado de máquina) é um método de análise de dados que automatiza a construção de modelos analíticos. Com o projeto Fragmentarium, a tecnologia reconhece padrões e "encaixa" digitalmente as peças das placas à alta velocidade, superando a capacidade humana de um assiriologista.
Até agora, pesquisadores descobriram novos trechos de Gilgamesh e centenas de palavras e linhas que estavam faltando em trabalhos anteriores. Nos últimos seis anos, a equipe do Fragmentarium conseguiu “encaixar” nesse quebra-cabeça mais de 1.500 fragmentos.
Entre os achados estão um novo hino à cidade de Babilônia e outros 20 fragmentos que somam mais de 100 linhas do texto principal do poema.
Longo trajeto de descobertas
O trabalho para decifrar o texto tem uma história longa. Em 1872, um funcionário autodidata do Museu Britânico, George Smith, encontrou uma placa que acreditava ser um relato bíblico, mas aprendeu a língua suméria sozinho e identificou Gilgamesh. Ele se dedicou a buscar mais partes das placas no Oriente Médio e morreu em uma dessas viagens em 1876, aos 36 anos.
Outros estudiosos deram continuidade ao trabalho, mas as peças não estão todas juntas, tendo aparecido em sítios arqueológicos, depósitos de museus e até em vendas clandestinas. O professor emérito da Universidade de Londres, Andrew George, é conhecido como uma das maiores autoridades no texto milenar e fez traduções de partes já conhecidas.
Há uma estimativa do jornal The New York Times de que existam pelo menos meio milhão de placas de argila em coleções mesopotâmicas internacionais.
Devido à escassez de profissionais habilitados, muitas dessas relíquias em acervos nunca foram corretamente catalogadas, traduzidas ou publicadas. Estima-se que cerca de 30% do Épico de Gilgamesh ainda seja desconhecido ao público após 170 anos de esforços.
Algumas das descobertas do Fragmentarium já foram incorporadas em novas edições do épico, como a de Sophus Helle (2021) e a de George (2020), ambas em inglês. As traduções mais recentes devem ser divulgadas ao público pela Biblioteca Babilônia Eletrônica da LMU.
Após examinar todo o acervo do Museu Britânico com a IA, a equipe do Fragmentarium começa a colaborar com o Museu do Iraque, em Bagdá, para tentar encontrar mais peças perdidas do épico.
O que diz a epopeia?
O texto descreve a trama suméria e narra a amizade entre Gilgamesh, um semideus e rei de Uruque, e um fiel escudeiro, Enquidu. Juntos, eles matam Humbaba, o monstro guardião da Floresta dos Cedros. Em vingança, os deuses matam Enquidu.
Gilgamesh, em luto, busca escapar da morte procurando seu antepassado Utnapistim, que sobreviveu a uma grande tempestade e encontrou o segredo da imortalidade. Após viajar, encontra a deusa Siduri em uma taverna, que o aconselha a aproveitar os prazeres simples da vida.
Gilgamesh a ignora e encontra Utnapistim, que não o ajuda a se tornar imortal, mas compartilha sua vida antes da enchente. A sabedoria é apresentada como a recompensa da jornada. Para alguns estudiosos, Gilgamesh seria um precursor ou inspiração para heróis como Hércules ou Ulisses.